30.4.10

Número 367

AS URNAS NÃO FALAM*

Nasci em 1964. Por isso, nem querendo esqueço o recente período de exceção política no Brasil. Ele grita para mim na carteira de identidade. Ecoa em cada cadastro. Aniversaria junto comigo. Já falei disso? Acho que sim... Bom, enquanto eu chegava ao mundo, forças partidárias de um lado caçaram o direito à liberdade para combater quem desejava caçar nossa liberdade de outro. Em correntes polarizadas, a Guerra Fria tanto chorava suas vítimas quanto justificava seus algozes, irmanando-se na dor.

Cresci sonhando com a paz e a liberdade perdidas. Heróis driblavam a censura com metáforas auspiciosas: apesar de você, amanhã há de ser outro dia; com força e com vontade, a felicidade há de se espalhar com toda a intensidade; o sol há de brilhar mais uma vez; Pai, afasta de mim este cálice. Minha cidadania em formação depositava todas as esperanças na democracia para recuperar a dignidade, a decência, a justiça e a ética na Pátria amada, idolatrada, salve, salve. Desejava que as flores, sim, vencessem os canhões.

Agora, na véspera de abrirmos novo pleito majoritário, o sexto para Presidente desde a volta à plena democracia brasileira, por justiça a todos os anos em que sonhei com isso, eu deveria estar eufórico. Porém, o único sentimento que me brota é o desapontamento, a desilusão. Sou um dos tantos traídos pelas falsas promessas da liberdade democrática. Enquanto vejo antigos opressores e perseguidos de mãos dadas, atado, duvido de toda e qualquer boa intenção.

Discordo daqueles que depositam nos governantes a alcunha de salvador, de pai, de protetor. Meu sonho sempre foi mais modesto: habitar um país com liberdade de opinião e instituições – públicas e privadas – capazes de gerir o bem comum. Porém, o desequilíbrio entre o que se arrecada em impostos e o que se devolve em serviços essenciais (saúde, educação, segurança e infraestrutura) aponta para um divórcio de sonhos: o do político parece ser, tão somente, locupletar-se com as benesses do perpétuo poder.

Parodiando versos de um clássico popular do desconsolo, obra do gênio Cartola, cantarei as eleições 2010 convencido de que as urnas, flores que venceram canhões, ainda não responderam (corresponderam) aos nossos sonhos. E aquilo que exalam, não há quem consiga chamar de perfume. Por favor, me acompanhe:


Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vem uma nova eleição, enfim
Volto eu assim
Com a certeza que devo votar
Pois bem sei que o contrário é pior
Para mim
Queixo-me às urnas,
Mas que bobagem,
As urnas não falam
Simplesmente as urnas exalam
O fedor dos que roubam de ti
(de mim)
Deviam vir
Para ver nossos olhos tristonhos
E, quem sabe, sonhar nossos sonhos
Por fim

* Paródia da música As rosas não falam, de Cartola.

22.4.10

Número 366

PÓS-MATRIMÔNIO

A história é mais ou menos essa:

No táxi, enquanto voltava para casa, ela acompanhava com uma certa vertigem a paisagem correr na janela. Trazia na bolsa diversos exames laboratoriais e um diagnóstico preocupante: grave doença, escasso tempo de vida. Não pensava nas dores, no desconforto do tratamento, na despedida em cada sorriso dos netos. Mirando as árvores frondosas nas calçadas do bairro, pensava em como iria se virar seu velho quando ficasse viúvo.

Montaram uma família tradicional, conforme ditava a época: ele era um profissional competente e obtinha o sustento de todos. Ela trabalhava em casa, administrando o lar e a vida do marido e dos filhos. A seu modo, cada um dependia do outro e, também, amparava-o. Porém, esta base não previa a ausência de um dos pilares. Antes mesmo de o táxi chegar ao endereço indicado, ela decidira reequilibrar as tarefas, capacitando seu marido a manter o lar de pé, mesmo quando só. Afinal, estava aposentado.

O Curso de Viúvo começou pelo começo: deu a ele a incumbência de arrumar a cama. Lençóis esticados, trocados a cada semana ou duas, envelopando a colcha ou, no inverno, o cobertor. Travesseiros gostam de sol e ar! Por isso, as janelas devem ser abertas pela manhã, sempre de olho em caso de promessa de chuva. A cobertura de patchwork cumpria, sim, apenas uma função estética. Porém, harmonia e beleza compunham toda a vida da família e mereciam ser preservadas.

Seguiu ensinando a preperar o café, escolher frutas na feira, montar lista de supermercado – reconhecendo marcas de papel higiênico, pasta de dentes, sabonete, xampu, desodorante etc. Apresentou o marido à máquina de lavar, orientou sobre a técnica de estender a roupa no varal e deu dicas preciosas para saber quando a peça estaria efetivamente seca. O marido também aprendeu pratos ligeiros para o dia-a-dia, acondicionamento de sobras na geladeira e freezer, uso econômico do forno de gás e de microondas. Ela mostrou onde a faxineira costumava relaxar durante o trabalho, como manter o guarda-roupas organizado, o lugar de cada utensílio doméstico e, claro, os telefones necessários (farmácia, jardineiro, eletricista, encanador, chaveiro, costureira...).

O tempo foi passando junto com as lições. O marido ficava cada vez mais estupefato com a complexidade que envolvia as tarefas de um lar. Isso que já não tinham mais os filhos em casa! Era um aluno aplicado mas, às vezes, teimoso ao propor um método próprio, contrariando as orientações da professora. Algo plenamente tolerado: parecia, finalmente, que ela teria paz ao partir. O problema é que sua saúde melhorava sem parar, enquanto o marido queixava-se de cansaço.

Tenho certeza de que – tão previsível! – você adivinhou o final: o velho morreu primeiro. Homens têm essa mania. Parece que foi a famosa combinação de pressão alta com coronárias entupidas. Assoberbado de tarefas, mais do que nunca tinha justificativas para não ir ao médico. Homens também têm essa mania. Restou à velha a condição de viúva, sem curso nem nada. O filho socorreu com a burocracia mais imediata e, depois, ela foi aprendendo tudo na base do maior esforço.

Rapazes hoje em dia sabem ser viúvos desde mais cedo, no estágio solteiro. Depois, cursam mestrado e doutorado no lar enquanto estão divorciados. Todavia, poucos usarão tudo o que dominam na viuvez. Ao menos enquanto não aprenderem o endereço do médico.

Sim, meu anjo, isso vale para mim. Amanhã, prometo!

15.4.10

Número 365

UMA HISTÓRIA DE AMOR

Padeiro de ofício, ele deixava a cama na madrugada para dar forma ao perfume nosso de cada manhã ‒ pão francês quentinho. Tinha o cabelo moreno, levemente ondulado de tão farto. Olhos escuros como o carvão, pele um pouco tostada. As mãos fortes e o sorriso jovial e confiante, atributos capazes de superar as agruras do trabalho árduo, imediatamente chamaram a atenção dela. Então a moça, dona de caprichoso pomar, adicionou uma quadra ao trajeto pelo qual, cotidianamente, levava uma cesta de frutas ao pároco da Matriz ‒ tudo para cruzar diante da loja de pães.

A jovem era linda como uma eterna primavera. A beleza saltava discreta ‒ mas sensualmente ‒ pelas poucas fendas do vestido sempre muito claro. O cabelo se mantinha domado em um rabo de cavalo e voava para a esquerda e para a direita no deslocar brejeiro. Sua tez, macia como o pêssego e rosada como as maçãs, trazia convite de morangos frescos. Os olhos, de tom esverdeados, lembravam uvas brancas; e a boca, quase vermelha, cintilava como uma cereja. Diante da padaria, o pescoço pendia como galhos ao vento, espichando a vista.

Compreendendo o recado do insistente olhar, o padeiro adiantou-se em aguardar a moça na calçada com sua melhor oferta: trocar dois pãezinhos por uma das laranjas da cesta. Ela, subitamente tímida, recebeu o mimo, agradeceu e sumiu pela esquina em passo apressado. Isso no primeiro dia, pois, dali em diante, ela já vinha fagueira, tendo sua fruta em mãos, brilhante como o sorriso. E, com o passar do tempo, deixava a frente da padaria com um número cada vez maior de pãezinhos, ainda quentes e crocantes. Então, ela abocanhava a delícia diante dele, gemendo de prazer, antes de sair correndo para a igreja.

Um dia, de surpresa, apareceu um cliente novo na padaria. Alguém de fora da cidade, com certeza. E levou um número considerável de pães, afetando a previsão do comerciante. Temendo deixar muitos clientes desatendidos, o padeiro recusou, embaraçado, a oferta da suculenta laranja de sua amada. Explicou o ocorrido, lamentando não poder abrir mão de um só pão para venda. Ao mesmo tempo, não queria aceitar o presente sem oferecer sua contrapartida. A dona do pomar seguiu o caminho batendo os pés ‒ considerara o gesto como uma ofensa. Da esquina, ao ouvir um até amanhã desenxabido, atirou a laranja no padeiro.

Nas manhãs seguintes, o caminho para a Matriz seguiu a lógica do menor esforço. Desesperado, o padeiro mandou entregar um pacote de presente na casa onde morava o pomar: cinco pães e uma flor. Foi assim durante uma semana, dez dias, um mês, meio ano. Estranhamente, os pães nunca voltavam. Fruta que é bom, não mais aparecia. Mas o jovem padeiro, com a força de suas mãos, mantinha a oferta sem relaxar ‒ tinha fé de que um dia ela voltaria a passar diante da padaria, saltitante, com sua laranja nas mãos e o mesmo sorriso no olhar.


O marido não pergunta a razão de terem à mesa pães tão saborosos sem jamais passarem sequer perto da padaria. Os dois simplesmente saboreiam aquelas delícias sempre chegadas ao alvorecer, trazidas por rapazolas variados pedalando ligeiras bicicletas. No centro da mesa, contumaz, uma nova flor oferece suas cores. O homem também não repara o olhar distante da jovem esposa, mirando aquelas tantas árvores do pátio teimando em florescer e frutificar. O único que conhece a história é o padre, mas guarda segredo de confissão. E já não sabe mais como orientar a penitência para um pecado que sai do forno a cada dia, todos os dias.

9.4.10

Número 364

RESGATANDO AMÉLIA


Tudo que você vê, você quer
Ai meu Deus, que saudade de Amélia
Aquilo sim é que era mulher
Ataulfo Alves & Mário Lago


Se há algum consenso, este é de que Amélia, a tal mulher de verdade eternizada pelo samba de Mário Lago e Ataulfo Alves, não existe mais. Ela, dependente, conformada e sem vaidade, hoje foi substituída por outra, super atuante, realizadora e, ainda assim ‒ ou até por isso ‒, vaidosa. Porém, mesmo correndo o risco de ser chamado de machista, considero a ode, à época, até justa, pois estava atrelada ao paralelo com um terceiro tipo de mulher: megera insensível, fútil e mimada. E as virtudes de Amélia, reconhecendo que virtude não seja o termo mais adequado, nasciam tão somente da comparação entre as duas.

Mas, se morreu Amélia (e acho que sim), teria desaparecido também sua imagem invertida, motivo dos ais de saudade? Lendo os versos com atenção, as melancólicas queixas do homem com relação à nova companheira bem que podem ter permanecido dentro de casa, apenas se deslocando para os filhos. E as vítimas da tirania que fez nascer o lamento de Mário Lago agora são os pais ‒ tanto compreendidos como o casal, quanto, separadamente, pai e mãe.

Mesmo parecendo, esta tese não é de todo estapafúrdia. Afinal, é fácil identificar tais queixas entre nossos amigos e conhecidos: “Não aguento mais meus filhos! Nunca vi fazerem tantas exigências. Parecem não ter consciência da realidade à sua volta, sequer de nossa condição financeira. Pensam apenas em luxo, conforto e riqueza ‒ tudo aquilo que veem nas vitrines do shopping, querem. Assim não dá!” Por fim, não seria surpresa se algum pai verbalizasse em tom de desabafo: “Ai meu Deus, que saudade da Amélia!”

Calma: não creio que seja preciso exagerar, esperando que nossas crianças e jovens passem fome ao nosso lado achando bonito não ter o que comer. Ou estejam despidos de toda vaidade, e totalmente conformados: “Meu pai, o que se há de fazer...”. Porém, vários relatos de homens e mulheres vencedores revelam privações significativas em seus anos de formação. E muitas delas foram determinantes no momento de forjar o espírito para as futuras conquistas. Um prato vazio à mesa, quando nos serve de metáfora, também ensina a lutar pelo que se quer. E a dar valor para o que se tem.

A eficácia ‒ que novidade! ‒ deve estar no equilíbrio. Seria um erro brutal desejar filhos “Amélias”, mas nem por isso devemos nos submeter à tirania de quem tudo tem e tudo quer. As escolhas continuam sendo nossas, a educação sempre cabe aos pais. Com sorte, com afinco e perseverança, ganharemos a oportunidade de olhar para nossos herdeiros e dizer: isso sim é que é homem, isso sim é que é mulher de verdade!

PS.: Há algo que o Mário Lago não explicou: teria o homem deixado da Amélia, ou a Amélia dele? Na resposta, pode estar contida a data do óbito deste tipo de mulher... Arrisquem seus palpites!