22.2.07

Número 203

ESCONDE-ESCONDE

Nessa vida, uma das maneiras de aprender sem parar é ter filhos. Uma grande lição acabamos de receber da caçula, que está em plena efervescência por causa da mudança de escola -- e entrada na primeira série. Na expectativa sobre as novas amizades, nos confessou um método que usava na antiga escolinha, sempre que queria livrar-se da companhia indesejada de um determinado colega. Para não ferir os sentimentos do menino, convidava-o para brincar de esconde-esconde. Então, escondia-se e não aparecia mais. Genial!

Quem dera nós, os adultos, podéssemos fazer tal confissão com tanta serenidade (até mesmo para si). Afinal, foi só pensar um pouquinho para concluir que já propus tal jogo muitas vezes durante a vida, em relações de trabalho, amorosas ou mesmo fraternais. Vítima do brinquedo também fui, demorando um bocado de tempo até me dar conta do ocorrido e interromper a busca inútil. Seja me escondendo, seja procurando quem sumiu, quase nunca pensei que o motivo oculto pudesse ser o desejo sincero de não aborrecer (e aborrecer-se) com a verdade incofessável: a companhia em questão ser indesejada.

Até hoje, o uso de subterfúgios para evitar a presença de alguém me soava como uma espécie de covardia. O certo, o justo, o corajoso, seria falar a verdade, fosse ela ferir ou não o interlocutor: "Fulano, tenho mais o que fazer". "Beltrana, este problema é seu". "Sicrano, você está me perturbando". Porém, a partir de agora, seguindo o ponto de vista da filha, me despreocupei um pouco. Na realidade, o uso de jogos de esconde-esconde também pode acontecer por outro motivo, que é a saudável preservação do convívio social. Por mais virtuoso que alguém 100% sincero possa parecer, duvido que ele conte nos dedos muitos amigos. Muita franqueza soa como algo por demais intolerante. Esconder o que pensamos e esconder-se de quem nos perturba, além de necessário, pode ser generoso.

Por falar em tolerância, imaginei a lista enorme de pessoas que eu não tenho a chance de convidar para um bom esconde-esconde e, depois, sumir. Ou, quem sabe, pedir a elas que se escondam para jamais procurá-las. Lamentavelmente, são nomes que vivem em jornais, em programas de rádio e TV. Portanto, por mais que eu queira não vê-los, teimam aparecer na minha frente, me forçando a aturá-los. Eles desaparecerão apenas quando lhes for conveniente, sem dar a ninguém a chance de abrir contagem. Pior: deixando outro bem desagradável no lugar. Coincidentemente, são os seres humanos mais hábeis na arte de dissimular, de ocultar as verdadeiras intenções e julgamentos. Em outras palavras, na arte de fazer política.

Minha menina, no alto dos seus seis anos, intui com muita precisão o jogo de esconder e revelar que a convivência obriga a todos. Me absolve, também, quando apresenta um motivo nobre para, ela mesma -- tão cedo! --, praticá-lo conscientemente. Com ou sem metáforas, me restou uma preocupação: para quem eu estaria neste exato momento de olhos vendados, contando até cinqüenta, enquanto me evita?

16.2.07

Número 202

O BAILE

Existem noites que, assim como gols, merecem uma placa de bronze. Verdadeiras honras ao mérito. Em meus carnavais, tive mais de um momento de exceção que ganharam, na parede da memória, uma plaquinha comemorativa. Nada, porém, comparado com a história que vou contar. Ela aconteceu com uma grande amiga, que chamarei de "amiga" (ou apenas "ela") para que sua face permaneça misteriosa como a mulher atrás da máscara em Veneza.

Ela, então, estava disposta a investir no plano de passar a noite carnavalesca de gala em um famoso baile carioca. Digamos que seja o baile do Copacabana Palace -- exemplo bem emblemático de noite perfeita, assim como o são os camarotes da Sapucaí. Como as fadas madrinhas andam escassas no mercado, a maneira encontrada foi apelar para o infalível jeitinho brasileiro: entrar via porta de serviço. Contando com um amigo influente, que fez todos crerem ser ela uma maquiadora vinda das bandas do sul, ocupou uma das vagas da equipe de produção na última hora para, deste modo, galgar o direito de lá permanecer durante a festa.

O plano estava perfeito e a minha amiga programou-se para instrumentar os verdadeiros maquiadores da noite, alcançando um rímel aqui, um lápis acolá. Ledo engano. Mal chegou na sala de onde sairiam os convidados antes de vestirem suas fantasias, alguém sentou-se à sua frente para receber a maquiagem. Ela sorriu, o rapaz sorriu, os demais ocupantes da sala sorriram. Se houvesse balões como os de revistas em quadrinhos, cada um dos sorrisos estaria dizendo algo diferente. O dela, com certeza, diria "agora ferrou", ou um termo parecido, mais chulo um pouco. Tremendo como vara verde, procurou ganhar tempo perguntando sobre como era a fantasia dele, o que estava esperando para a noite, coisas assim. Enquanto isso, olhava o trabalho que os outros (e verdadeiros) profissionais desenvolviam, discretamente.

Com o lápis delineador nas mãos, mediu o rosto do convidado na vertical, na horizontal (tipo um grande pintor em busca do ângulo ideal) e pôs as mãos à obra. Mantendo um olho no padre e outro na missa que se rezava ao lado, desenhou, pintou, coloriu e contornou a sua inexperiência com as cores fortíssimas da audácia e da superação. Aplicou muita simpatia e sombra nos olhos. Disfarçou a incapacidade de fazer um traço reto na temática tribal que pedia, por sorte, o motivo da festa. Ao terminar, exausta, a primeira cobaia, percebeu que a noite prometia: um segundo convidado já estava à sua frente, e um terceiro anunciou que desejava ser maquiado pela "gaúcha". O negócio era não relaxar e, ao mesmo tempo, relaxar. Um samba do crioulo doido.

Quase cinco horas e dez convidados depois, na sua maioria homens (lindos, segundo a protagonista), ela havia conquistado o mais do que legítimo direito de vestir seu exuberante longo e fazer a festa. No entanto, era preciso vencer mais um desafio: seu próprio cansaço! A mão que se tornara firme por obrigação de circunstância, deveria maquiar o próprio rosto com a intenção de disfarçar o esgotamento que a tarefa lhe custou. Naquele momento, o conforto de um travesseiro rivalizava em sedução com o sonhado baile, por mais inacreditável que isso pudesse parecer. Mas havia uma grande vitória para comemorar no salão.

Algum tempo depois de ouvir essa história, cuja riqueza de detalhes mereceria um capítulo inteiro de uma comédia, jamais uma pequena crônica, me dei conta de que muito pouco foi falado sobre o baile em si. Não guardei quais músicas foram executadas e por quem, se amanheceram na praia, se ela se casou na festa. Caso alguma celebridade tenha feito algum vexame ou tomado algum pileque, passou batido. Foram tantas as nossas risadas acompanhando a teatral descrição das peripécias na sala de maquiagem, que a conversa quase dispensou a entrada no salão. A noite mereceu uma placa de eternidade antes mesmo do primeiro acorde da orquestra, em seu tradicional naipe de metais. Um baile cuja improvisada fantasia esteve sob medida para a minha amiga, metaforicamente, não dançar naquele carnaval.

7.2.07

Número 201

PARIS, LIBERDADE E IGUALDADE

Saiu no jornal: o Judiciário norte-americano condenou a milionária socialite Paris Hilton a três anos de liberdade vigiada. A sentença é devida ao crime de dirigir alcoolizada. Quem sou eu para divergir da justiça, mas, na total ignorância, percebi duas incoerências estranhas na punição da jovem perua: primeiro, ou a tal Paris não era livre, ou antes era dispensada de vigilância (um preceito quase divino). Por fim, como alguém que capitaliza sua celebração mundial ao ser perseguida de perto -- dia e noite -- por um batalhão de paparazzi só agora, depois da sentença, será vigiada? Ela já não era extremamente vigiada antes?

Minha vida não é muito diferente da vida do leitor: sou um eterno condenado à liberdade vigiada. Quando era pequeno, quem me vigiava era a mãe e o pai. As irmãs mais velhas eram outras a vigiar um pouco, outro tanto os adultos responsáveis que me rodeavam. Mais tarde, taludinho, também passei a ser vigiado por professores, diretores e "xerifes" da escola. Na medida em que o tempo foi passando, a vigilância sobre mim -- um inofensivo rapaz latino-americano sem parentes importantes -- ganhou o reforço das Polícias Militar, Civil e Federal, do Tesouro Nacional, dos Fiscais de Trânsito e das demais autoridades constituídas. Nas poucas vezes em que saí do Brasil, os funcionários da Alfândega e da Imigração deixaram claras as suas intenções de vigia. Feliz era a Paris: só agora foi condenada à pena que me acompanha de forma perpétua. Ela, só por três anos, é claro.

Estou exagerando? Os cinco "pardais" que separam a minha casa do centro de Porto Alegre dizem que não. As blitzes constantes nas quais sou convidado a mostrar meus documentos e os do carro também confirmam a tese. Sem falar que, como todos, nem ouso deixar de me comunicar com o pessoal do Imposto de Renda dentro do prazo, bem comportadinho. Se eu me esquecer de pagar por um produto em uma loja do shopping, duvido que a vigilância local vá relevar apenas por meus olhos claros. Até mesmo a esposa, nada ciumenta, gosta de saber por onde ando (um saudável cuidado que igualmente mantenho com relação a ela, sem pressão). Enfim, liberdade vigiada é uma condição da vida em sociedade. Talvez não na hight socite...

Por outro lado, vamos analisar o mundo das celebridades: serão livres os famosos? A resposta pode ser um nada esclarecedor "depende". No meu caso, garanto, ninguém cutuca o companheiro na rua apontando em minha direção para dizer "olha, olha: é o Rubem ali!". Também não soube de fotógrafos e cineastas amadores registrando algum beijo mais ardente, uma gafe durante um show ou o fato de estar na companhia de outra mulher que não a minha, tomando um sossegado cafezinho. A Paris e seus pares (com o perdão do trocadilho) não gozam desta liberdade típica dos anônimos. Logo, o Juiz só fez chover no molhado ao condenar a moça à liberdade vigiada. Suponho que, quando a loura se virou para o advogado e perguntou que diabos de sentença era aquela, o profissional deve ter dito: estás condenada a ser Paris Hilton por três anos. Só resta saber se ela entende ironia.

Admito desconhecer os meandros das leis do povo americano do norte. Vai ver que eles costumam sempre aplicar um "dou-lhe uma!" legal diante de crimes mais brandos, ou de criminosos de costas mais largas. Quem sabe com um caráter educativo... Ou talvez a Paris seja mesmo uma espécie de rainha ou deusa que, só agora, e por suaves três anos, será submetida à vigilância das instituições, postadas lado a lado com os fotógrafos. Por uma questão de igualdade, o método até seria bacana de ser aplicado no Brasil, especialmente na Capital Federal: com tanta competência quanto os fotógrafos que assediam a Dona Marisa Letícia (antes era a Dona Ruth), representantes legais do povo vigiariam Lula, zelando por nossos interesses. Ah, como fui esquecer, isso já acontece: é um dos preceitos do Poder Legislativo. O que, diante da qualidade parlamentar, não é nenhum alívio.

1.2.07

Número 200

Primeiro havia as crônicas semanais e não havia um nome. Na semana 81, o batismo em homenagem ao lado baterista: Rufar dos Tambores. Agora, na aniversariante 200, a newsletter finalmente recebe um formato de verdade. Minha gratidão ao artista gráfico Rogério Gil, um velho amigo, e aos compadres Helio Soares e Lilian Lima – esta última que seu eu chamar de velha amiga, briga comigo!

FORMA X CONTEÚDO

Sempre que leio textos sobre a polêmica relação entre homens e mulheres – cada qual se achando mais valioso –, me recordo de outra disputa igualmente famosa: o que tem mais valor, a forma ou o conteúdo? A essência ou a aparência? A apresentação ou a mensagem? Que se movam os exércitos para um lado e para outro, pois batalhas como essas não têm hora para terminar.

Sou um criador mais afeito ao conteúdo. Meu universo é a palavra e o campo simbólico. Escrevo e falo esperando que o enunciado seja compreendido e "terminado" na mente de quem recebe. Porém, isso é muito mais determinado por minhas deficiências do que por um pretenso talento: na verdade, desde a época de publicitário, morro de inveja dos artistas plásticos e gráficos; dos desenhistas e dos fotógrafos. Estes, sem se gastarem com palavras, falam até demais.


Para não dizer que sou completamente incapaz de produzir imagens, me sirvo da poesia – a maneira de desenhar que dispensa os pincéis. Mesmo assim, gosto mesmo é de combiná-la com a melodia para ver nascer uma canção. E, outra vez, fico dependendo de companheiros talentosos para juntar as notas musicais. Feliz de quem sempre encontra parceria para completar uma obra!


Do mesmo modo como o amor e/ou o sexo utilizam a diferença para perpetuar a espécie, combinando homens e mulheres, a forma e o conteúdo também estão a serviço de algo maior: gerar conceitos. Estes, tal qual um filho, nascerão tão mais bonitos e completos quanto mais herdarem coisas legais dos criadores. De uma idéia nascida em papel pardo escrito à mão até ela se tornar, digamos, um filme cinematográfico baseado em imagens computadorizadas, tudo será regido pelo casamento harmônico (ou não) de forma e conteúdo. Nem a moda, nem a arquitetura, nem a dança, nada escapa desta verdade: o importante é a concepção do conceito.


Evoquei esta relação entre homens e mulheres de propósito, pois simboliza com exatidão minha devoção às manifestações artísticas que não domino: admiro a mulher, mas não desejo ser uma. O que me atrai nela é justamente o que me falta. Assim, quando vejo a capa de um livro, ou sua editoração caprichada, nasce uma inveja positiva, que enaltece aquele que, ao contrário de mim, é apto para produzi-la. O mesmo vale para um encarte de CD, a formatação de uma página de internet, o cartaz de um show. Quero nunca me afastar destes talentosos seres capazes de lidar com a forma a ponto de chegarem ao desejado conceito – mesmo destino que busco com as palavras. No mínimo para compartilhar de ótima companhia durante o trajeto!