24.9.10

Número 388

CERVEJA DE PANELA

Rubem Penz

Ser um homem feminino não fere o meu lado masculino

Baby, Didi e Pepeu Gomes

Foi-se o tempo em que uma moça deixava a casa dos pais apenas para se casar. Durante este período, ainda recente em nossa memória, lar era quase sinônimo de família. Tanto que havia toda uma preparação, o enxoval. Nele, conjuntos completos de roupa de cama, mesa e banho; jogos de jantar, baixelas, faqueiro etc. Também o divertido chá de panela. O rapaz? Não, ele não se preocupava com nada disso. O negócio dele era estudar e trabalhar. Um bom emprego era tudo o que um homem precisava para constituir uma família. Ah, e uma noiva, de preferência.

No pós-feminismo, por coincidência ou não, sobejam os lares de solteiros. Se antes havia uma espécie de linha direta da mão do pai para a do noivo – e da mãe para a da noiva –, agora quem parte para sua casa o faz com seus próprios pés e pelas próprias mãos. As meninas foram à luta e conquistaram seu lugar no mercado de trabalho. Logo, não precisam mais de um marido para garantir-lhes o sustento. Porém, não perderam de todo suas habilidades de donas de casa. Digo de todo por conhecer mulheres que, como reza o ditado, não sabem fritar um ovo. Mas, em regra, seus apartamentos são um exemplo de ordem e correção.

Para os moços, a parte do sustento sofreu poucas alterações. A novidade da solteirice independente é não terem mais ninguém para aquela mãozinha nas tarefas domésticas. Nossa liberdade, portanto, passa pelo processo inverso: rumamos para a conquista do lar. Para cada mulher que atinge sua valorização com um cargo de gerência ou diretoria, há um homem se vangloriando em saber qual o melhor amaciante na prateleira do supermercado. Umas sofrendo as pressões de planilhas com maus resultados, outros cuidando para não ver frustrada a receita do jantar.

Porém, existe uma diferença conceitual que ainda precisa ser superada: as feministas lutavam pela igualdade por sentirem-se diminuídas no papel de mães e donas de casa. Assim, é muito mais difícil para o homem ostentar com orgulho sua habilidade para, por exemplo, esticar os lençóis. Há algo impregnado no tecido social dizendo para ele que isso é tarefa menor. Homem que é homem, nos padrões machistas, não arruma a cama: arruma uma namorada que faça para ele. Ou, no mínimo, paga uma empregada. É bem difícil promover avanços quando eles parecem retrocessos...

Essas reflexões surgiram pelo súbito interesse que tive em montar uma lista tipo "chá de panela" para um rapaz que veio de outro Estado para cá apenas com seus livros e roupas. Em minutos, e de memória, elenquei mais de trinta utensílios indispensáveis para um lar, desde a área de serviço, passando pela cozinha e chegando ao banheiro. A intimidade com a rotina doméstica me assustou. O ímpeto em ajudar outro homem a ter uma casa decente, sentimento quase maternal, apavorou-me. O fantasma do machismo espreita nossa alma.

Resolvi o dilema com duas constatações tranquilizadoras: o item primeiro da minha lista é um conjunto de ferramentas. Nem escrevi chave de fenda, Phillips, alicate, chaves de boca, martelo etc., por considerar masculinamente óbvio. Depois, achei melhor chamar de "cerveja de panela". Perfeito mesmo, só se o evento coincidir com um Gre-Nal na TV: o negócio é garantir o quorum.

16.9.10

Número 387

DE CABO A RABO

Rubem Penz

Lembro daquela tarde como se fosse hoje: o parque estava cheio e o céu aberto. No horizonte, nuvens em rabo-de-galo prometiam chuva em, no máximo, 48h. Mas quem pensava tão longe enquanto a primavera juvenil brilhava no firmamento? Eis que, de rabo de olho, noto a chegada da mais bela das mulheres. Do grupo que passeia sorrindo, é a única de rabo-de-cavalo. E tenho um fraco por pescocinhos que nem lhe conto... Tomei coragem e puxei conversa: só me faltou abanar-lhe o rabo.

Para total surpresa, ela me deu confiança. Meu ego subiu como um pipa, as pernas amoleceram feito rabilola, seria ela quem me colocaria na linha? Sim, pois sempre fui do tipo que não podia ver rabo de saia... Quedei-me e me afoguei com seu canto de sereia – aquele ser mítico, busto de mulher e rabo de peixe. Fervi como se um rabo quente estivesse em minhas veias. Em pouco tempo estávamos enrabichados.

No dia em que ela me levou até sua casa pela primeira vez, entrei com o rabo entre as pernas. Seu pai, um rábula rabugento, disse que deu um pé na bunda de todos os outros pretendentes. Ela sorriu. Eu, não: que o velho não viesse, pois daria um rabo-de-arraia antes de ele encostar um dedo em mim. Ninguém merece sogro ardido feito rabanete! Mas, por falar em comida, a sogra foi um doce... Levou o marido para ver TV no quarto e só apareceu na sala para nos servir rabanada. E ainda prometeu que me receberia em seu aniversário com uma feijoada completa – com direito a orelha de porco, joelho de porco e outra parte do porco que posso deixar subentendida nessas alturas da história.

O tempo riscou o destino rápido feito rabo de cometa. De intimidade em intimidade fui, enfim, intimado: precisávamos nos casar. Não havia escapatória, pois já tinha o rabo preso. Claro que, no fundo, desejava isso: encontrara a mulher da minha vida, esperar por quê? Na Igreja, de braços com a sogra, vi aquele monumento branco surgir no lado oposto à nave... Que véu enorme, disse. Que decote enorme, disse. Que rabo enorme, levei uma cotovelada. É cauda o que tem no vestido, explicou a sogra. É sinônimo, me defendi. No lugar do rabo-de-cavalo, o penteado alto: continuava ali o meu pescocinho...

Veja você que chegamos aos dias de hoje. Não digo que a vida até aqui foi um mar de rosas – houve, sim, uns arranca-rabos normais, como em qualquer relacionamento. Mas posso dizer que passamos bem. Em termos financeiros, como sou médico urologista, nada nos faltou: a carestia, que para muitos põe o orçamento no pescoço, para nós é água que mal bate no rabo. Por isso, minha mulher é reconhecidamente alguém de sorte. Não tem dia, não tem hora nem lugar em que nós passamos sem que eu escute ao apontarem para ela: olha lá, que rabo tem aquela! O vizinho, o açougueiro, o padre... Até o rabino. As outras mulheres – me divirto! – beliscam seus maridos sem parar. Devem fazer isso de inveja de minha rabudinha, que a todos sorri.

Eu? Sim, sou um homem de sorte. Confesso sem medo que tenho um baita rabo. Há quem diga que até mais do que isso.

 

9.9.10

Número 386


BODAS DE PRATAS DA CASA

Rubem Penz*

Circula no meio literário brasileiro uma observação bem-humorada, segundo a qual basta que se levante uma pedra aqui no Rio Grande do Sul para encontrarmos dois escritores. Evidente exagero. Porém, o número de gaúchos publicando nas melhores editoras do país, indicados ou vencedores de concursos nacionais e internacionais, com suas obras traduzidas e – importante! – abastecendo o mercado com bons livros a cada ano demonstra um fundo de verdade nisso tudo. Da quantidade, sabemos, nasce a qualidade.

Tal fenômeno pode ser explicado em parte pela existência de muitas oficinas literárias por estas plagas. Dentre elas, a mais representativa de todas: a Oficina de Criação Literária da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), ministrada pelo escritor e professor Luiz Antonio de Assis Brasil. Ela, que é a mais antiga em atividade de forma ininterrupta em território nacional, acaba de completar 25 anos de existência. E, para comemorar a data, reuniram-se alguns escritores que por ela passaram para a Aula Inaugural do segundo semestre do curso de Letras da PUC. Dentre oito centenas de egressos, tive a honra de ser um dos seis nomes que compuseram a mesa.

Foi uma oportunidade invejável para os convocados, Cíntia Moscovich, Daniel Galera, Jaime Cimenti, Marcelo Spalding, Robertson Frizero e eu, em nome dos demais, agradecermos o privilégio de cursar a Oficina do Assis, como também chamamos. E de testemunhar diante do Magnífico Reitor, professor homenageado, mestres e alunos, o quanto seus dois semestres de duração foram importantes em nossa vida pessoal e literária. Sem combinarmos nada, um complementou o que o outro decidiu ressaltar, dando uma ideia do que nos acrescentou cada seminário, exercício, referência ou dica proposta pelo mestre.

Outra coincidência valiosa: bastaria a leitura de qualquer fragmento da obra dos autores ali presentes para trucidar a tese de que oficinas literárias formam escritores padronizados, todos urdidos à semelhança do professor. É abissal a distância entre seis, sessenta ou seiscentos de nós, pois o talento, acrescido de técnica, evidenciou ainda mais nossas diferenças, fortalecendo traços individuais. Algo que também pode ser comprovado nas Antologias que já alcançam a marca de 40 – esta mais recente com lançamento marcado para sábado, 17h, na Livraria Saraiva do Praia de Belas Shopping.

Concluo com o grande consenso da solenidade de aniversário: mesmo que da Oficina de Criação Literária da PUCRS não houvesse saído escritores respeitáveis, e são vários os acima da média, sua existência estaria plenamente justificada pelo surgimento de oitocentos excelentes leitores. Leitores críticos, preparados, sensíveis, exigentes, experimentados, detalhistas. Leitores capazes de valorizar o labor dedicado a cada palavra que compõe o bom conto, poema, romance ou crônica, pois conscientes do tempo e do esforço despendido. Logo, para que aqueles dois escritores que estão debaixo da pedra conquistem um lugar ao sol literário, será demandado muito empenho. Também por isso, obrigado professor Luiz Antonio de Assis Brasil!

*Aluno da turma de 2007

3.9.10

Número 385

NÃO SEI EM QUEM VOTAR*

Rubem Penz

 

Esta é uma obra dedicada ao nosso sistema político e partidário que, mesmo imperfeito, não pode ser responsabilizado pelas falhas dos homens que o denigrem ainda mais a cada pleito. Nasceu para ser interpretada por um eleitor e um político – candidato ao Legislativo ou Executivo, tanto faz. Como foi escrita para ambos, é possível depreender o nome da dupla: Caracu. O político é o cara. O eleitor entra com o talento que lhe resta.

 

Eleitor: — Eu sei que vou votar...

Político: — Eu sei que vais votar...

Eleitor: — Por toda a minha vida eu vou votar...

Político: — É nossa salvação regimentar.

Eleitor: — Em cada escurtínio eu vou votar...

Político: — Encare o sacrifício de votar.

Ambos: — Democraticamente, assim se vai votar!

 

Eleitor: — E cada voto meu

Político: — E cada voto teu

Eleitor: — Será

Político: — Será

Eleitor: — Pra mal dizer

Político: — Pra eu poder

Eleitor: — eu não saber votar...

Político: — só me locupletar...

Ambos: — ... por toda minha vida!

 

Eleitor: — Eu sei que vou chorar

Político: — Eu sei que vais chorar

Eleitor: — A cada ausência tua, vou chorar

Político: — A cada ausência minha, vais chorar

Eleitor: — Mas cada falcatrua há de custar

Político: — Mas cada falcatrua há de gerar

Eleitor: — Bem mais que tua ausência me custou

Político: — Bem mais do que a campanha me custou

 

Eleitor: — Eu sei que vou sofrer

Político: — Eu sei enriquecer

Eleitor: — A eterna desventura de viver

Político: — Na eterna boaventura de viver

Eleitor: — A espera de te ver ao lado meu

Político: — A espera de viver salvando o meu

Ambos: — Por toda nossa vida...

 

*Paródia propositalmente sofrível, pois sofrida, de Eu sei que vou te amar, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes