26.11.09

Número 345

NOVO PARABÉNS

Um dia, em um cubículo obscuro de uma repartição nada representativa de um escalão para além de inferior, dois prestimosos funcionários públicos chegaram a uma conclusão definitiva: ninguém aguentava mais cantar Parabéns a Você. Não era possível que, em um país como o Brasil, com sua vasta tradição musical, ninguém fosse capaz de atualizar a maneira de entoar os votos de aniversário. Pensaram em um concurso. Elaboraram um anteprojeto e, de articulação em articulação, percorreram os mais diversos escalões da política nacional. A ideia era convocar os mais talentosos compositores e criar uma nova trilha sonora para o apagar das velinhas.

Como a iniciativa não melhorava em nada a saúde, a segurança, a educação ou a infraestrutura nacional, ela prosperou. E, chegando à mesa da Secretaria de Comunicação do governo ao mesmo tempo em que eclodia mais um escândalo de corrupção, ganhou grande publicidade: o Brasil sempre soube eleger seus temas... Então, atraídos pelo nobre intuito de melhorar a vida das pessoas e, em escala menor, pelo elevado valor do prêmio, alguns artistas mandaram suas contribuições, salvaguardados em cuidadosos pseudônimos. Seguindo a tradição do sigilo em concursos no Brasil, tive acesso a uns fragmentos. Façam suas apostas.

Borges Vem Jor
Que maravilha / Nós gostamos de você / (tuturutututututu) / Que maravilha / Faz mais um pra gente ver / (tuturutututututu) / Quando esse dia foi chegando, ninguém acreditou / Com muito amor, com emoção, você aniversariou, oôu! / Foi há tanto tempo que esqueci do primeiro / Mas dá para ver que continua inteiro / Que maravilha / Nós gostamos de você...

Humberto Vil
Olha pr’esse bolo / Se lhe serve de consolo / Todo mundo vai querer / (vai querer) / Na data querida / Que consiga nessa vida / O melhor para você / (pra você-e-ê) / Apagando a vela / Desejar diante dela / Vai enfim lhe garantir (garantir) / Amor e dinheiro / E saúde por inteiro / No ano que está por vir (no porvi-í-ir!)...

Mico Buarque de Irlanda
Parabéns a você! (breque) / Parabéns a você / Amanhã há de ser / Outro dia! / Mais um ano acabou / E você não dançou / Isso ninguém queri-ia / A saúde vai bem / O dinheiro também / E você merecia! / Mais um ano chegando / E a gente querendo / Muito sua companhia / Parabéns a você! (breque)...

Zeca Tagordinho
Deixa a vida desejar: / Parabéns a você! / Deixa a vida desejar: / Parabéns a você! / Deixa a vida desejar: / Parabéns a você! / Paz, dinheiro e saúde / Para dar e pra vender! / (Só no sapatinho!) Deixa a vida desejar...

João Gil Lerdo
(introdução) Paraaabéns, bim-bom / Paaarabéns, bim-bom / Paraaabéns, bim-bom / Paaarabéns, bim-bom / Paraaabéns, bim-bom / Paaarabéns, bim-bom / Paraaabéns, bim-bom / Paaarabéns, bim-bom (paciência, ainda vai longe)...

Carlinhos Brownie
Parabenaculelê / Parabenaculalá / Paratimbum, paratinalê / Piroperoparará, tô lá! / Indaiaiê: saúde! / Ondanelê: dinheiro! / Parabenaculalé / Zunarecatinguelê! / (Mãinha, me alcança o caxixi) / chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic-chic chic-chic-chic...

20.11.09

Número 344

A MORTE E A MORTE DE UM IMORTAL

Até a pé nós iremos, para o que der e vier
Mas o certo é que nós estaremos
Com o Grêmio onde o Grêmio estiver
Lupicínio Rodrigues


Meu sogro era gremista. Bem gremista. Visceralmente gremista. Tanto que, para estar à altura de sua paixão, decidiu levar esse ardor para além da vida. Ele, que talvez não seja o único, comprou uma sepultura especial no João XXIII: na face do cemitério porto-alegrense que dá vistas ao Estádio Olímpico. Desde 1996, é lá que repousa sua alma. Sobrevive (agoniza?) o plano de acompanhar a saga esportiva de seu amado time, do qual era sócio remido, para a eternidade. Seguindo à risca os belos versos do hino composto por Lupicínio Rodrigues, tornou-se um imortal tricolor.

Quanto respeito e admiração eu, que sou colorado de nascimento e orgulho, devoto ao grande gremista que foi meu sogro! Que honra me foi concedida ao me tornar parte da família de alguém cuja entrega transcende a própria existência terrena! Seu exemplo impõe a mim, esposa e filhos, alvi-rubros, um parâmetro elevadíssimo de apego. Afinal, nesse Grenal de torcidas, desejamos a vitória, mas o empate é o mínimo que perseguimos.

Por isso, em respeito à memória do Seu Telmo, quero registrar o protesto com relação à provável demolição do Estádio Olímpico, parte do projeto de uma arena esportiva em outro ponto da cidade. Caso se confirme, representará uma segunda morte imposta a um grupo de torcedores diferenciados e que elevaram suas intenções terrenas ao mundo dos céus. Verdadeiros tricolores imortais! Pessoas que dedicaram suas vidas ao Grêmio, e, para sempre, a morte também.

É claro que o tema suscita a história recente de Porto Alegre, na qual o Sport Club Internacional deixou o Estádio dos Eucaliptos para mudar-se para o Gigante da Beira-Rio. Porém, nossa nova casa (hoje quarentona) foi construída conforme o exemplo do lendário Olímpico: com recursos próprios, com participação da imensa nação colorada, com o suor e o sangue de mais de uma geração. O que se avizinha no horizonte tricolor é um estádio edificado por terceiros, dispostos a explorar comercialmente a paixão de uma torcida. Pior: caso o empreendimento naufrague em seu transcurso, como já ocorreu no recente e bem intencionado caso ISL, nossos irmãos azuis restarão despejados, prejudicando o equilíbrio que sustenta e eleva a dupla Grenal no cenário futebolístico mundial.

Em respeito ao imortal tricolor que foi (é) meu sogro, lamentando a impossibilidade de salvaguardar seu último desejo, faço um alerta: gremistas, roguem para que os deuses da bola não punam aqueles que decidiram macular a vontade derradeira dos que, hoje sepultados, viveram e morreram arrebatados pelo Grêmio. Será que seus heróis precisavam de um novo templo? Ou bastava a modernização de uma casa histórica, construída com os bravos recursos da paixão? Afinal, nada será maior do que um fracasso capaz de deixar o tricolor gaúcho mais do que (até) a pé: sem ter para onde ir.

12.11.09

Número 343

LONGEVIDADE

Existem expressões, modos de falar ou metáforas que, de tão perfeitas, sobrevivem por um longo tempo, mesmo após a extinção do ato ou objeto gerador. Por exemplo: dar a mão à palmatória. Com o perdão do trocadilho, pode-se contar nos dedos as pessoas vivas que presenciaram (ou sofreram) tal castigo nas escolas. Oscar Niemeyer talvez seja um. Porém, o atual sistema de ensino não oferece um substituto com igual adequação. Ninguém em sã consciência vai considerar a possibilidade de, para demonstrar arrependimento, falar que “sim, me submeto a um convite à reflexão”. Mesmo sendo politicamente correta, a nova expressão nasce sem a metade da força.

Outra: caiu a ficha. Não imaginam o sorriso largo dos meus filhos no dia em que, vasculhando gavetas, encontraram um ficha telefônica de verdade. Foi um assombro darem-se conta de que aquele disco de metal significava, fisicamente, créditos para a conversa. Explicamos que, ao completar a ligação, ou quando terminava o tempo pago, a ficha realmente caía para dentro do telefone público, vulgo orelhão. Essa geração bem poderia dizer que “completou o download”. Então, por que continuam falando que a ficha caiu? A única justificativa que encontro me remete outra vez à palmatória: cair a ficha também é uma ação concreta, rica em movimento, som e significado. Tudo indica que sobreviverá Era Celular adentro.

Ainda no telefone, dois termos se inscrevem na categoria de expressões que, de tão bacanas, torço para que sobrevivam à nascente: passar um fio e ficar pendurado no gancho. Podem até ser usadas em uma única frase, por mais paradoxal que pareça: “o fulano ficou de me passar um fio, mas fiquei pendurado no gancho...”. Já andam raros os telefones com fio – só lembramos de instalar um desses quando a casa fica sem luz. E o gancho, a exemplo do disco, virou peça de museu. Mas, convenhamos, que maravilha de metáfora para a espera tediosa a de ficar pendurado no gancho. Ainda mais no tempo em que todo telefone tinha fio, o que obrigava uma imobilidade implícita!

Outro dia percebi que, nos supermercados, já não existem mais filmes fotográficos para vender. De tão raros, agora só em lojas especializadas. Com a popularização das câmeras digitais, ninguém mais corre o risco de, por acidente, ver queimado o seu filme. Mesmo assim, duvido que alguém reclame do outro dizendo: “ô meu, desse jeito você vai deletar minha imagem!”. Outra vez temos uma manifestação física suplantando em força de significado uma ação virtual. É um caso idêntico ao de virar o disco. “Camarada, você já me encheu: troca a pasta desse i-pod!” tem muito menos poesia do que “deixa de ser chato e vira esse disco!”. Isso sem falar na tagarelice repetitiva denunciada pelo disco arranhado...

Outra expressão que já não encontra mais eco em nosso cotidiano, mas, mesmo assim, é de perfeita e duradoura compreensão é “desandar a maionese”. Na época em que ela foi cunhada, as donas de casa empreendiam longo tempo e laborioso esforço para servir à mesa este alimento tão delicioso quanto calórico. Bater a maionese requeria cuidado, pois, caso desandasse, o trabalho restaria perdido e sem a menor chance de recuperação. Algo parecido com faltar luz justo agora, antes de eu salvar esse texto (ufa, salvei!). A noivinha que, hoje em dia, só conhece um fogão de ouvir falar, corre o risco de queixar-se para a mamãe que desandou a maionese no seu casamento sem jamais imaginar que o acepipe pode ser feito em casa, à mão.

Enfim, chego à conclusão de que as boas expressões, ricas em cores, sabor, movimento e plasticidade, sobrevivem ao tempo e enriquecem nosso vocabulário. Claro que as inovações tecnológicas podem deixar, por sua vez, seu próprio legado – isso o futuro dirá. Afinal de contas, não vão deixar o cavalo passar encilhado, né?!

PS: Quem lembrar-se de outras expressões e quiser me mandar, por favor: pegue esse bonde andando!

5.11.09

Número 342

LENHAS & LINHAS

Eu era bem pequeno, mas recordo a luta da mãe e suas irmãs para convencerem a minha avó a migrar do seu tradicional fogão à lenha para o fogão com bicos de gás. Frau Seth foi reticente e tinha argumentos inquestionáveis: estava habituada à cocção nas chapas de aço, não via nenhum desconforto em rachar e armazenar lenha e, principalmente, cozinhar em fogão com chamas de gás alterava o sabor dos alimentos. Não procurava a praticidade do moderno nem ligava para a economia de energia e tempo. Também na cozinha da outra avó, Morena, a transição foi nada veloz. Durante muitos e muitos anos os dois modelos acomodaram, lado a lado, a base das panelas.

Meus filhos acompanham outra peleja: não há Cristo que faça a minha mãe usar o forno de microondas. Ela até tem um, mas nem ligado na tomada o pobre permanece. Enlouqueço quando a vejo aquecer o leite na leiteira: um dos meus traumas de juventude era lavar a louça quando lá estava aquela panela de leite com seu tradicional anel de gordura a ser vencido. Haja sabão e Bombril! Ela usa, também, o fogão e três panelinhas para aquecer uma comida pronta, ao invés de servi-la gelada, direto no prato, e colocar no micro.

Minha mãe, de modo cíclico, é reticente e tem argumentos inquestionáveis: está habituada à cocção nas chamas azuis, não vê nenhum desconforto em lavar panelas e, principalmente, o aquecimento em microondas altera o sabor dos alimentos. Minha sogra, não: usa o micro todos os dias. Mesmo assim, reconhece que o eletrodoméstico jamais de substituirá inteiramente o fogão tradicional, o que projeta uma longa convivência de ambos em sua cozinha.

Lembrei disso para meter minha colher torta na entrada do e-book no mercado livreiro com mais efetividade. Fico pensando se a resistência de muitos será bastante eficaz a ponto de frear o processo. Mais: começo a ter muitas dúvidas se ela é, enfim, correta. O motivo para isso é o singelo exercício de imaginar grandes cidades como São Paulo com seus milhões de habitantes cozinhando em charmosos fogões à lenha.

A celulose, qualquer piá sabe, é a matéria prima para se fazer papel. Vem da madeira, aquele elemento que arde no fogão à lenha. Mesmo que na atualidade ela seja obtida exclusivamente de florestas artificiais e renováveis, o processo, no mínimo, utiliza-se de insumos e espaços agriculturáveis. Com o aumento brutal da população humana e a festejada redução dos índices de analfabetismo, o futuro fica complicado. E livros exclusivamente de papel podem ser algo tão anacrônico, poluidor e impraticável quanto fogões queimando lenha nos apartamentos das metrópoles.

E agora? Agora começa o período de tempo indeterminado (eterno?) em que livros tradicionais e eletrônicos passarão a conviver em nossas casas e bibliotecas. Muitas avós, pais, mães e tios serão alvo de incompreensão ao optarem pela compra de grandes volumes de brochuras ao invés de carregarem seus e-books. Se tudo isso resultar no desejável consumo da literatura, alimento insubstituível, tudo bem. Quem sabe, e eu rogo por isso, muito mais se produza e muitos mais terão acesso aos bons livros.

Porém, ninguém me convence de que é igual. Reticente, tenho argumentos inquestionáveis: estou habituado ao apelo tátil das páginas, não vejo nenhum desconforto em suportar o peso de alguns livros e, principalmente, ler em telas altera o sabor do que está escrito.

PS: dia 11/11, 19h30, na Casa do Pensamento, Armazém A do Cais do Porto, na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, estarei na mesa redonda A Literatura na Era Digital: possibilidades e desafios, ao lado de Dodô Azevedo e Luiz Paulo Faccioli. Feito o convite!