25.12.08

297

REPETÊNCIA

Fazemos o mesmo. O mesmo. Sempre o mesmo.
Qualquer alteração, a qualquer tempo, virá diferir.*

Falei para ele: repetir o ano é o fim. A pior viagem. Inadmissível. Abala nossa auto-estima, destrói a gente por dentro. Estraga o Natal, arruína o Reveillon, mata o ânimo para nossas férias. E pouco me importa o que os outros possam estar pensando. Não é isso que conta. Para mim, a opinião de terceiros, nessa e em qualquer hora, é irrelevante. Minha preocupação é de foro íntimo: as conseqüências da repetência para a vida toda. Sim, pois cada vez que repetimos o ano, é como se o perdêssemos para sempre. Passado.

Falei para ele quando estava em tempo. Sei lá, ainda no começo de outubro, tivemos a oportunidade de tocar no assunto pela última vez. De lá para cá se passaram quase dois meses. Tempo hábil para alguma providência. Sobrando. Tem gente capaz de virar a vida do avesso em sessenta dias! E aí pergunto: o que ele fez? Nada. Certo, nada é exagero. Digamos que nada com relevância para, quem sabe, salvar o ano. Nenhuma atitude afirmativa. E acho que qualquer ação, por menor que fosse, poderia ter dado resultado. Mas não: se ele fosse um carro, teria ficado na banguela. Ou com o motor desligado. A direção, parada. Freio de mão puxado. Agindo assim, só andaria em caso de tornado. Ou enchente, Deus me livre!

Falei, mas ele nem ligou. O pior eu nem te conto: isto sequer está acontecendo pela primeira vez. Sim, daí o meu desespero. Ele já perdeu o ano antes e nem assim toma providências. Repetir virou rotina. Todo mundo avançando e ele lá, marcando passo. De bobeira. Engessado. Satisfeito em fazer tudo outra vez, outra vez, mais uma vez, igualzinho. Todos se ocupando com novidades, conhecendo mais, aprendendo, criando. Olhando para trás com aquela boa sensação de dever cumprido. Cansados, é certo. Uns meio esgotados. Poucos à beira de um ataque de nervos. Mas nem esses últimos em estado tão deplorável quanto ele. É de dar pena.

Antes, em outra ocasião, havia falado sobre piedade. Afinal, posso não ligar para o que os outros pensam. Ele pode não ligar para o que os outros pensam. Mas é impossível controlar o sentimento alheio. Quando despertamos pena, é quase como se estivéssemos deitados no chão. Nocauteados. O árbitro avançando indelével na contagem e nos faltando pernas para levantar. Um lutador pode passar por essa situação: é do jogo. Mas um ser humano não pode assumir essa condição para a vida. Atinge a si e a todos que o amam. Aliás, fica difícil amar quem não se ama. Mais fácil se afastar, negar o problema na esperança de que seja resolvido em um passe de mágica. Repetir o ano, penso agora, é preparar a poção e não ter o feitiço. Puf!

Falei para ele: para o ano que vem, chega de repetência. Ele me olhou com ares de reprovação. É muito dolorido mostrar justo para ele o que é certo ou errado. Esperar dele uma reação. Lembrá-lo que já foi diferente, produtivo, vivaz, sensato. Exemplo de vida! E agora, de um tempo para cá, irreconhecível. Não cogito uma vida de aventuras. Mas, nenhum livro? Nenhum passeio diferente? Nenhum novo amigo? Nenhum novo assunto? Isso que está acontecendo é uma eterna repetição de horas sem serventia, sem encantamento. Sem vida! Quem sabe um hobby? Um animalzinho para se sentir responsável? Faz tempo que dou a idéia de um curso diferente, para o qual tivesse talento. Em vão.

Não sei mais o que faço com meu pai.

*Do poema intitulado Em diferenças, que não considero pronto.

18.12.08

Número 296

PRESÉPIO NÃO TEM SOGRA

Dia desses, com a família, eu participava de um almoço de confraternização natalina entre amigos, quando a conversa fluiu para a tradição à mesa. Não para menos: apreciávamos um magnífico bacalhau na casa de um angolano de nascimento, casado com uma brasileira com raízes igualmente portuguesas. A arte culinária serviu de pretexto para muitas histórias, algumas emocionantes. Ato contínuo, os convivas abriram um tipo de concurso para noticiar especialidades de panela, cada qual fazendo a propaganda de seus dotes. Como não estávamos entre cozinheiros profissionais, muitos dos pratos procediam da singela herança familiar, mantendo a tradição no cardápio. E, quase todos, com receitas passadas de mãe para filha.

Todavia, por mais envolvente que estivesse nossa conversa, faltava para ela algum tempero capaz de transformar o almoço em crônica. Uma angústia chegando a ser indigesta, pois eu sentia no ambiente o aroma de um bom texto. Eu quase o via entre uma baixela com salada e outra de arroz. Escutava-o no tilintar das taças de cristal. Intuía guardado para a sobremesa. Crônica de Natal, conforme meu apetite dezembrino. Ingrediente que chegou, ufa!, com uma constatação lapidar de uma doce senhora que estava entre nós. Dona Terezinha. Pois ela e o marido Édio tiveram apenas filhos homens. Disse, então, e até com uma certa revolta, que desistira de passar suas receitas adiante. Resumiu: não ensino mais nenhum prato para minhas noras – elas modificam-nos.

Soaram os sinos pequeninos, sinos de Belém. Por natais e natais, durante muitas e longínquas eras, foram – são – as filhas mulheres as encarregadas da continuidade do legado materno. A elas cabe o privilégio, o dever e o direito de levar adiante as receitas de sua família. As noras, contaminadas que são por suas próprias influências, destinadas a manter o tempero de suas mães, jamais perderiam a oportunidade de marcar a diferença. Ainda mais que, em se tratando de algo tão íntimo como o alimento, igualar o pudim que fez o encantamento oral do marido em seus anos de infância é impossível. Covardia, até. Por isso, sogras elegantes, justas, jamais deveriam abrir concorrência com suas noras. E noras inteligentes devem estar atentas para essa armadilha.

Imagino, também, que o dilema de dona Terezinha ganhou novos ingredientes com a mudança dos tempos: as moças de hoje brilham – e muito – nas mais diversas áreas do conhecimento. Mas em bom número tendem a ser meio opacas na cozinha, levando à mesa refeições cada vez mais práticas e menos artesanais. Logo, não demonstram o menor interesse em, por exemplo, apurar o molho durante muitas horas, atribuição tranqüila para quem era dona de casa. Por outro lado, em muitos lares, são os rapazes os novos comandantes do fogão. Quem sabe a queixosa senhora esteja perdendo a oportunidade de manter seu legado por não enxergar o óbvio: deve ensinar os pratos de família aos filhos homens! Aqueles mesmos que já transportam adiante a habilidade do pai defronte a uma churrasqueira.

Tudo isso me fez recordar do presépio, uma das mais tradicionais imagens de Natal. Lá estão pai, mãe e criança. Ao redor, pastores e seus animais. Para breve, a chegada dos Reis Magos. Um anjo paira acima da gruta. Zero parentes. E as avós? Não seria o caso de alguma vovó dar uma mãozinha naquele momento tão delicado? Parece, mas não consta nas Escrituras, que ninguém da família de Maria podia acompanhar a moça grávida, quase parindo, na urgente fuga da insanidade de Herodes, o Grande. José, solícito, tratou de convidar sua mãe. Mas ela própria, a sogra da Virgem, torcera o nariz. Desde o advento do Pessach, em que as duas divergiram feio na receita do Charosset, a velha duvidava que Maria fosse assim, sei lá, tão santa.

O mar está para peixe


O mar está para peixe:

Convido vocês para conhecerem minha nova parceria com Eduardo “Dudu” Penz, postada no site da cantora Anne-Florence Schneider, www.myspace/donaflormusic. Em frente ao mar soma-se aos temas Amor platônico e Sambou, tá novo, também disponíveis para audição. O sotaque de Florence é um charme a mais...

11.12.08

Número 295

CONSERVADOR RADICAL

Das tantas possibilidades de classificação dos homens em diferentes grupos – gordos ou magros, fiéis ou disponíveis, otimistas ou informados – uma delas é fazê-lo entre radicais ou conservadores. Difícil, mas necessário, é saber se você é um radical nato, talhado para suportar as exigências que as atitudes extremas impõem, ou um conservador sem noção do perigo. Da mesma forma, é muito útil investigar o dom para a ponderação, pois um radical na condição de “murista” pode quebrar a cara por não ter, no DNA, o equilíbrio necessário para se manter neste patamar. Para isso existe a juventude. Veja o meu caso como exemplar.

Durante toda a minha vida fui convidado a flertar com o perigo. Já me propuseram parceria em aulas de pára-quedismo, mergulho submarino, alpinismo, rafting, kitesurf. Já estive perto de topar envolvimentos com mulheres malucas, sociedade com golpistas, transas sem preservativo, carona de estranhos. Também não foi por falta de oportunidade que levei uma vida distante das drogas ilícitas, dos rachas de automóvel, dos pastéis de rodoviária, dos sogros violentos, da filiação partidária. Aprendi a recusar educadamente: não é para mim. Tudo porque fui vacinado na juventude com passagens radicais mal sucedidas, das quais sobrevivi com poucas seqüelas – mas muitos ensinamentos. Como a memorável passagem pelo tobogã.

Foi em Florianópolis. Devia ter meus vinte anos. Até aquele momento, olhava com desconfiança para o tal brinquedo de parque. Se por um lado ele me prometia segundos de velocidade e emoção, por outro dava margem a muitas possibilidades. Já naquela altura, reconhecia no meu destino a ação constante do improvável, o ímã do infortúnio, o pendor pelo ineditismo. Porém, estava de namorada nova, que pedia a minha companhia para tal passagem. Éramos, os dois, toboganicamente virgens. Eu – óbvio! – não confessei a lacuna no currículo para a menina. Vesti a armadura dos homens vividos e sustentei a pose de encorajador.

Estávamos em dois casais. Pagamos o ingresso e partimos em busca de grandes aventuras. Nossos amigos, experientes, foram primeiro. Lá de baixo, sorriram para nós. E chamaram: venham! É delicioso! Minha namorada quis desistir. Seria vexatório naquele momento. Eu, acreditando na armadura metafórica, propus tutela: desceremos juntos, lado a lado, minha donzela. Dê-me a mão, Branca de Neve. Seremos felizes para sempre na contagem de três. Um, dois...

No três, ela fincou o pé. E desistiu sem soltar a minha mão. Só que eu partira. Resultado: quando livre, deixei o ápice da montanha deitado, sem equilíbrio, até meio de viés. Na primeira ondulada abandonei o contato com o solo e, a partir dali, devo ter pousado umas três ou quatro vezes, a cada uma de forma mais desengonçada. O que sobrou de mim, chocou-se com violência nos sacos de areia do final da pista sob o som de aplausos. Os pés estavam para cima. Se fosse um desenho animado, o tapetinho chegaria logo depois, encostando em minha cabeça com segundos de atraso. Como era a vida real, quem chegou na seqüência foi a namorada, que escutara do funcionário a orientação de jamais – jamais! – deitar-se no tobogã, para não abusar da velocidade.

Como disse, podemos dividir as pessoas em radicais ou conservadores. No meu caso, evitar o radicalismo é questão de conservar a integridade física e mental. Sou parceiro para uma partida de vôlei, xadrez, par-ou-ímpar. Topo relacionamentos estáveis e duradouros, misto-quente na rodoviária, voto secreto. Viver no Brasil já garante uma dose quase inadmissível de incertezas. Sou um conservador radical porque, fora de eixo, saio invariavelmente esfolado. Assombra-me o fantasma do tobogã.

4.12.08

Número 294

ULTIMATO

Enquanto penso, contrações involuntárias – mas não menos precisas – se ocupam em manter a musculatura postural com o tônus adequado para a posição de equilíbrio em que me encontro, de pé, ereto. Trabalham em um sistema de economia de energia: não tenho câimbras nem desabo ao chão. Há uma certa pose.

Enquanto penso, minhas pálpebras disparam piscares ocasionais na medida em que os olhos pedem um pouco de lubrificação. As pupilas se contraem e dilatam para ajustarem-se à luz do ambiente. Adrenalina. Nenhum movimento escapa de minha vista: nem mesmo aquele captado pela visão periférica. Permaneço atento.

Enquanto penso, o diafragma e os demais músculos auxiliares da respiração nem cogitam suspender seu ofício. Os pulmões, inundados de ar a cada onda respiratória, tratam de cumprir sua função de reter o oxigênio para, via corrente sangüínea, contemplar cada uma das células do corpo. Tudo no devido tempo. Ainda vivo.

Enquanto penso, movimentos peristálticos transportam lentamente aquilo que fora antes chamado de almoço por todos os muitos metros de intestino. Estão sendo absorvidos os nutrientes para, em algumas horas, ser descartado o restante. Antes disso, os esfíncteres estarão sob controle de um piloto automático – este que é responsável, entre outras atribuições, por não me fazer passar vergonha. Me controlo.

Enquanto penso, minhas unhas crescem, minha barba cresce, muitas células nascem e morrem. Alguns fios de cabelo caem. Pior: fora de qualquer previsão, uns caem para sempre. Outros, nossa!, antes escuros, estão nascendo brancos. Minha estatura diminui frações de milímetro a cada dia, vítima da implacável força gravitacional. Envelhecerei?

Enquanto penso, o coração compõe um número finito, mas indeterminado, de contrações. É uma ampulheta girada ainda no útero materno, escorrendo a areia da vida de grão em grão, sem volta, sem piedade. Se houvesse silêncio, escutaria suas batidas, teria consciência de seu ritmo, saberia de sua urgência. E nem assim faria muita diferença. Pulso. Repulso.

Enquanto penso, tudo em mim tem uma razão de ser, de estar e de acontecer, independente de meu raciocínio, ou mesmo apesar dele. A saliva continua brotando em minha boca (engulo), a cera em meus ouvidos, o suor na pele, diversos mucos. Mas essa não é a boa ou a má notícia. Quem quer saber?

Enquanto penso, tu me olhas com ar inquisitório, almejando algo mais do que uma existência instintiva, medular, peristáltica – justo essas que agora se mostram. E a lágrima que nasce não será capaz de saciar a sede das tuas expectativas. É isso que agora penso. Penso, também, que o ácido a me arder o estômago é uma resposta insuficiente, pois apenas eu o noto. E que ruborizar será pouco.

Enquanto estou em teu mirar (enquanto penso), meu silêncio aquece a arma que tens na mão. Comicha o dedo que está no gatilho. Agrava nosso impasse. Enquanto tudo no meu corpo funciona à revelia do pensamento, dispensando-o, paradoxalmente, o corpo depende mais do que nunca do que passa em meus pensamentos.

Enquanto penso, tu não pensas.

Luto.