30.10.08

Número 289


SAUDADE NA PONTA DOS DEDOS

Muita gente tenta entender a saudade. Muita gente tenta explicá-la. Outros tantos a cantam em versos dedicados (delicados?). Sevem-se de sua natureza de contrastes – uma alegria triste; uma melancolia que finda em uma lágrima desaguando em um sorriso. Tema recorrente, a saudade – lá vou eu me arriscar em palpites –, antes de ser um o quê, ou sua ausência, é um quando. Igual ao filho que se esconde na casa para assustar o pai que chega do trabalho, a graça da saudade, sua força, seu encantamento, reside em nos surpreender quando estamos distraídos. Mesmo que saibamos que ela estará sempre ali, na espreita, esperando a melhor oportunidade, ela vive de pregar peças.

Saudade é tempo. Saudade é passado. É o que se foi, ou o que um dia fomos. Por exemplo: morro de saudade do Ford Corcel azul 77 que dirigia até os vinte e poucos anos. Ainda sinto o seu cheiro e o toque frio do volante – tão liso de um lado, ondulado de outro. O ronco de seu motor ficará para sempre na memória, mesmo sabendo que nem de perto era contagiante como o dos possantes V8. Friamente, jamais trocaria o carro que tenho hoje para voltar a dirigir um Corcel. Aí que está: saudade, saudade mesmo, tenho de meus dezoito, vinte e poucos anos, e de tudo o que representava aquele carro para mim. Por isso, quando um Corcelzinho bem conservado cruza comigo no trânsito, assim de surpresa, bate a saudade.

Quando morava em um pequeno apartamento de um quarto, de aluguel, bem velhinho e nem tão bem equipado, eu sonhava e ter uma casa. De preferência com pátio. Melhor dizendo, nós sonhávamos, pois naquele espaço apertado nascia a minha família. Justamente por isso, por ser aquele um tempo assim precioso em minha vida, cheio de projetos, basta encontrar um ex-vizinho por entre os corredores de um supermercado para bater a saudade danada do apartamento no simpático bairro Petrópolis. Tão poucos metros quadrados, e tantas boas lembranças...

Ainda no final de semana, enquanto acompanhava meu filho em uma competição esportiva no ginásio da escola, senti saudade dos meus doze anos de idade. Não fui um atleta muito brilhante. Nem posso dizer que fui realmente um atleta, aliás. Porém, quando fora da quadra (por baixo, noventa por cento do tempo), a diversão estava garantida: à minha volta, juntavam-se os companheiros de charanga. Tarol, surdo, tamborim, ganzá e agogô, quase todos emparelhados no mesmo ritmo, enchíamos o espaço de animação. Saudade é um canto improvisado e caótico, motivando o time da turma, exaltando cada ponto ou cada gol.

Mas escolhi falar deste sentimento tão traiçoeiro por causa de uma passagem ainda mais recente. Este mês, em seu aniversário, meu pai teria completado setenta e três anos. No dia, claro, lembrei dele logo cedo. Estranhei um pouco não ter sentido uma arrebatadora saudade. Quase bateu uma culpa por causa da aparente frieza. Terça-feira, assistindo a um show musical, não pensei no pai nem mesmo quando entrou no palco o acordeonista Matheus Kléber – e olha que todo acordeão remete a ele, pois este era seu instrumento de músico bissexto. Permaneci com a memória distraída até reparar no movimento dos dedos do músico na direção das teclas graves: o que vi, foi a mão direita do meu pai. No ato, me deu um aperto no peito.

Não recordo do pai me fazendo qualquer carinho. Não era o jeito dele. Mesmo assim, quando o jovem acordeonista deslizou a melodia pela ponta dos seus dedos, foi como se a mão do pai me tocasse. Suave como um verso triste. Música para a minha pele. Tempo que ficou para trás. Muita saudade.

22.10.08

Número 288

ACHADOS E PERDIDOS

O que é a leitura de crônicas, senão uma visita periódica à sala de achados e perdidos? Dessas que fazemos pela força do hábito, quase como o abrir da geladeira para dar uma espiada na própria fome. Ou, quem sabe, movidos pela clara impressão de que estamos a todo o momento perdendo coisas no caminho, distraídos ou apressados, e que, com certeza, alguém juntou para nós.

É nessa sala de achados e perdidos que encontramos, por exemplo, a nossa infância. Aquele medo do escuro, a teatralidade do Natal, o ataque de risos durante a missa. A amizade descomprometida do colega de escola, a primeira paixão e, logo em seguida, a descoberta de que, naquela altura, ainda não estávamos preparados para as conseqüências do amor. Encontramos a mãe jovem, a irmã implicante, as chegadas e partidas do pai. Lembranças que pareciam perdidas até nos depararmos com elas ali, na crônica.

É nessa sala de achados e perdidos que encontramos os postais da viagem inesquecível chamada juventude. Paisagens que nem existem mais – a começar pela nossa própria silhueta –, mas que a memória registrou em fotos divertidas, relatou tudo em detalhes ali no verso, endereçou para a eternidade e deixou para o tempo a tarefa de selar. Encontramos muitos sonhos caídos de nossos bolsos sem que tenhamos notado sua ausência – que falta faz uma niqueleira na hora de guardar os centavos da vida – os quais agora perderam sua validade. Mas, na crônica, são resgatados para a nossa coleção.

É nessa sala de achados e perdidos que encontramos aquele detalhe que ainda ontem estava bem na nossa frente e, displicentes, deixamos que fosse levado pelo vento (ainda assim, mantenha as janelas abertas). Encontramos a mentira do político, a beleza da cura, a simplicidade do gesto, a violência das palavras, o encantamento da solidariedade. Encontramos também, meu Deus!, o sorriso franco que nem imaginávamos ter perdido. Encontramos os primeiros passos do filho, o ranço do chefe, o batom da esposa, ovos de gema cor-de-laranja, máscaras, sujeira embaixo do tapete. Como um espaço tão pequeno de texto pode abrigar tanta coisa perdida?

É nessa sala de achados e perdidos que encontramos uns aos outros, todos em busca do que, em algum tempo, nos escapou. É quando ela vira, também, sala de bate-papos, com suas polêmicas e celebrações; revelações e preconceitos; partilhas e apropriações indébitas. Encontramos muita discordância, algumas inamistosas. Mas coincidências e identificações em número superior ‒ ainda bem! Encontrar-se na crônica é uma experiência tranqüilizadora: significa que não estamos loucos e os outros também pensam/sentem o mesmo que nós.

E o cronista é este sujeito meio à toa que vive perdido e, ao mesmo tempo, vive de achados. Se ninguém soltasse aquela frase peculiar, se todos guardassem os temores apenas para si, ou se o acaso não espalhasse os papéis em nossas mesas, o cronista estaria frito. É quando junta uma ilusão antes de ela entrar na boca-de-lobo, ao reparar em uma sutileza esquecida no espaldar da cadeira, no instante em que é o único que viu a graça rolando escada abaixo, nestes momentos o cronista se torna o fiel depositário do cotidiano. No jornal, no blog ou no livro, a porta desta sala de achados e perdidos estará sempre franqueada para quem se dispuser a ler. Bisbilhotar o que os outros perderam, ou mesmo procurar um espelho. Assim, sem muita pretensão, como quem abre a geladeira para averiguar a própria fome.

15.10.08

Número 287 e convite

Convite:
Lançamento de Ponto de Partilha I,

organização de Valesca de Assis & Rubem Penz, Ed. Kalligraphos

Tenho o imenso prazer em convidar você para a tarde/noite de autógrafos dos autores oriundos das oficinas literárias de Valesca de Assis. A saber, foi com Valesca que cursei minha primeira oficina e, ao lado dela, também estreei na função de orientador. Se já não bastasse, tive a honra de participar deste livro cumprindo a função de co-organizador, além de escritor. Venha compartilhar essa nossa conquista! Sua presença nos será grata.

Quando: 20 de outubro, segunda-feira, da 17 às 20h
Onde: Alameda dos Escritores do Shopping Total, Av. Cristóvão Colombo, 545, Porto Alegre

REPARANDO BEM...


“Reparando bem
Todo mundo tem *
Só a bailarina que não tem”

Edu Lobo, Chico Buarque & Censura


Reparando bem na primeira gravação de Ciranda da Bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque, contida no álbum O Grande Circo Místico, o censor da época sonegou dos ouvintes a palavra pentelho. Este tema violentado, parcela de uma obra maior e desenvolvida para um espetáculo do Ballet Guaíra, vinha com a interpretação de um coral de crianças. Quanta ironia! Mesmo assim, seu alvo era, por tudo, o público adulto. Reparando em uma versão mais recente da mesma Ciranda, feita por Adriana Calcanhoto no CD e DVD Adriana Partimpim, o pentelho outrora suprimido aparece pronunciado com todas as letras, sem constranger ou escandalizar ninguém. E, olha a ironia outra vez, faz parte de um trabalho dirigido para crianças!

Reparando bem no manifesto de Pedro Cardoso contra o uso apelativo e indiscriminado do nu em espetáculos de teatro, cinema e TV, fulcro de uma polêmica em voga, é direta a associação de sua proposta com o antigo comportamento da censura. Afinal, tanto antes como agora, o que está em questão é a moral ou, mais especificamente, a pornografia. Reparando nos argumentos de quem repudia a iniciativa do ator, fica evidente que a sociedade está cada vez mais tolerante com a exposição corporal. A nudez, sim, tornou-se algo banalizado: de tanto ver homens e mulheres pelados, nem mesmo as crianças se escandalizam ou se surpreendem. E isso desmontaria a tese do apelo pornográfico no uso constante do nu.

Reparando bem no objeto da polêmica, no caso a mulher tornada objeto (e o homem também), Cardoso está coberto de razão quando denuncia uma grande dose de gratuidade na exposição de atores sem roupas. Cruel, até, pois condiciona os profissionais aos padrões estéticos das revistas especializadas, deixando os critérios da fita métrica em um patamar adiante do verdadeiro talento de interpretação. Reparando em seus detratores, a profusão de artistas desnudos viria a ser um desserviço para o uso do nu com determinada intenção, tenha ela um caráter sensual ou o objetivo de chocar, ferindo de morte tal recurso. Não nos esqueçamos de que um umbigo de fora já foi motivo de escândalo no passado recente!

Reparando bem no pentelho subtraído da música do Edu e do Chico, ele acabou premiado com um valor erótico superior ao da intenção original no momento em que o silêncio toma o seu lugar. Agora, de volta ao poema, o pêlo pubiano regride para a categoria do banal (todo mundo tem) e do infantil (todo mundo fala), quase suprimindo da impúbere bailarina o caráter de pureza. Assim, chega-se à conclusão de que frear em certa medida a nudez indiscriminada será uma forma de devolver ao corpo revelado o seu caráter dramático. E, neste sentido, quem condena o ator Pedro Cardoso por considerá-lo puritano, não vê o quanto, por assim dizer, se valorizará o nu ao evitarmos o exagero.

Reparando bem, o Agostinho/Pedro Cardoso é o verdadeiro sem-vergonha dessa história. E quem permite e promove a superexposição dos corpos, com o tempo, fará nosso ânimo amolecer de vez.

(Mini) Conto Contíguo

Ponto final

‒ Hei! Olá, você aí em cima: procurando o quê, dependurado nessa interrogação?

7.10.08

Número 286

NOTA FISCAL Nº 2180

Filhos sempre pedem. Muitas vezes pedem sem parar. Pedem até esgotar nossa paciência. Aprendem cedo a dizer: – Eu quero! E repetem esta ladainha como um disco arranhado. Alguns pais, por não conseguirem suportar a carga de pedidos, até evitam andar com os filhos na hora de fazer compras. Mas se a criança fica em casa, os comerciais da TV dirão: – Peça! Os vizinhos e colegas com suas mil novidades dirão: – Peça também! Conseguir negar se constitui uma das tantas tarefas dos pais/educadores. Preparar os filhos para lidarem com as frustrações desde cedo e mostrar-lhes o singelo fato de que não se pode – ou deve – ter tudo é o melhor caminho para forjar adultos saudáveis. Enfim, recusar-se é, antes de tudo, uma prova de amor.

Claro que aí tem um problema: os pais gostam de atender os pedidos dos filhos, tenham eles seis ou dezesseis anos. Por que negar um sorvete, uma pastilha de hortelã, uma barra de chocolate? Quando temos condições, qual o problema de comprar um brinquedo, um jogo, uma bicicleta? Será que aquela novidade eletrônica “que todo mundo já tem” precisará ser eternamente sonegada em prol de uma sólida formação de caráter? Ainda mais em uma data comemorativa? Não! O brilho nos olhos de quem tem o pedido satisfeito é indescritível. É muito gratificante ser capaz de oferecer aquilo que, se fôssemos crianças ou jovens, adoraríamos ter. Ainda mais se o filho vai bem na escola e não causa preocupações. A felicidade de quem oferece, ainda mais quando temperada por renúncias pessoais, também pode ser considerada uma das faces do verdadeiro amor.

Como toda criança, pedi muito mais do que fui atendido – e olha que, pensando bem, ganhei horrores de coisas. Lógico: pedi tudo aquilo que em minha época foi moda ou novidade. Agora, vejam só, me tornei julgador de pedidos. Com o risco de estar errando aqui e ali, resta o consolo de que, deixando de ganhar tudo de mãos beijadas, minha gurizada vai crescer com a consciência de que as coisas precisam ser conquistadas. Lembrando dos meus pais, o que me foi oferecido ou negado deve ter seguido mais ou menos os mesmos critérios que adoto na posição invertida, em pleno acordo de casal: balanços de viabilidade econômica, avaliação da real utilidade, palpite sobre o quanto o pedido reflete um desejo verdadeiro e percepção de importância do objeto (ou experiência) na vida do filho.

Tudo isso veio à baila neste momento, bem quando minha mãe me ofertou um documento caprichosamente guardado em sua casa: a nota fiscal de número 2180 da Casa Beethoven, emitida em 22 de dezembro de 1977. Nela, está descrita a compra de uma bateria profissional no valor de onze mil cruzeiros. Incrivelmente, no mesmo dia em que foi encontrado esse papel nas coisas do pai, eu, ainda sem saber, expus para amigos a circunstância daquela compra: a promessa feita e cobrada, o acordo entre pai e filho. Descrevi tudo em detalhes, pois, como não poderia deixar de ser, o dia – aquele Natal – se tornaria inesquecível.

Tenho medo de calcular o que representa na atualidade o valor pago pelo instrumento musical no distante ano de 77. Garanto aos mais jovens que deve ser uma cifra muito, muitíssimo superior ao que custa uma bateria comum nas lojas de shopping. Contudo, nem o dinheiro empregado, nem o barulho que estaria por vir até que eu me tornasse capaz de acompanhar a música, nada dissuadiu meu pai de me dar tal presente. Ainda bem! Tomara que, quando chegar a minha vez de atender a um pedido que venha a determinar a vida dos meus filhos, eu esteja assim atento. Devo isso a eles. E devo, também, ao avô deles.

1.10.08

Número 285

SEDUÇÃO

A mulher traz em seu código genético um compêndio rico e detalhado de estratagemas de sedução. O quanto e quando fará uso destas informações é mais um de seus mistérios. Certo mesmo, apenas a fragilidade masculina em lidar com a situação posta, caso ela resolva conquistá-lo. Vou dar um exemplo: você está lá inerte, desligado, em paz. Eis que chega uma morena com brilho fulgurante nos olhos e um sorriso tão acriançado que provoca, de imediato, o efeito espelho (meninas, sorrir de volta nem sempre é galanteio – pode ser apenas boa educação).

Ela puxa uma conversa sobre amenidades e, com maestria, divide o olhar entre um mirar direto e um desviar (falsamente) tímido. Fala de perto, quase sussurra – quando a mulher diminui o volume, usa um tom mais grave e gasta mais ar do que o necessário, permitindo que seu hálito se insinue. Preocupado em escutar, você se distrai do olfato e da visão, que passam a trabalhar contra a sua vontade, mandando relatórios sobre eventuais ferormônios e volume dos seios. A temperatura corporal sobe e, ato contínuo, todas as percepções sensoriais se aguçam, curiosas. Mais um pouco você estará fantasiando cenas luxuriantes.

Mas, digamos que você não reage (sei lá: é distraído, comprometido, tímido) e o silêncio se impõe. Neste momento, ela volta à carga parecendo responder a pergunta que não foi feita, brejeira: Sou laboratorista. Mas desejo mesmo cursar psicologia e trabalhar com crianças (falar de crianças assim, nessa situação – e com tal desfaçatez – é quase um crime). Gosta de crianças? E agora? Como negar? Impossível, todos gostamos de crianças... É tudo que ela precisa para engatar mais cinco minutos de hálito fresco e sorriso franco. Sua estrutura começa a ser corroída, mas você se mantém teso, cerimonioso. Ela avança: Soube que você é escritor. (ah, soube? como?) Minha mãe quem me contou.

Horror! Com uma mãe interessada por você, se é quase genro. Pior: você repara que a menina está naquela idade eqüidistante entre ser criança e ter trinta anos. Nada menos do que a melhor. Ela diz que não foi assistir a sua palestra porque estava em aula. Mas quer comprar o livro. E espera um autógrafo: Lindo! (massagem no ego, golpe baixo) Nocauteado em pé, você apenas agradece, preso no córner. Então, sem misericórdia, ela mordisca o próprio lábio inferior e desfaz o gesto com novo sorriso – maior, sem-vergonha. Traz o dedinho apontado e o encosta em seu rosto: Você tem um monte de pintinhas! Que bonitinho! Deixa eu contar...

Sedução, enfim, é isso: astúcia, ousadia bem medida, controle da situação. É muito do que experimentamos ao escrever. Quem cria textos sabe o quanto é excitante planejar o modo de conduzir o leitor pelo caminho imaginado. Por exemplo: agora, você pode estar pensando que o que foi narrado aconteceu de verdade, que a moreninha existe e, dia desses, veio falar comigo. Pensa também que uso essa crônica para contar o fato aos amigos, deixando-os podres de inveja – ainda mais depois de sugerir um final que só quem aprecia dedos curiosos sabe onde pode chegar. Isso, ou que eu tenha criado tudo para testar o humor da esposa, que lê todas as crônicas antes de serem publicadas.

Quem me conhece sabe do que eu seria ou não capaz.