29.7.11

A morte do www

Número 432

Rubem Penz

Muitos profissionais implicados na cadeia produtiva da comunicação devem estar satisfeitos (ou aliviados) com a lenta, ainda que certa, morte do www, abreviação de World Wide Web (rede de alcance mundial). É o nome do serviço que propiciou a maior revolução em termos de trocas de conteúdo que se tem notícia desde Gutenberg. Espécie de prefixo que precisamos digitar antes de acessarmos uma página na internet. Ou, na verdade, precisávamos.

Quem deseja entrar em minha página, por exemplo, pode escrever na barra de acesso rubempenz.com.br e, automaticamente, aparecerá o www compondo o endereço completo. Pode experimentar, funciona! Então, por qual razão eu precisaria divulgar meu endereço com a desconfortável sigla, correndo o risco de pagar um mico para milhares de ouvintes de rádio os telespectadores? Ou ninguém ouviu uma pessoa enrolar a língua para citar seu site? Tem até um vídeo clássico de uma senhora sofrendo para se referir a um determinado endereço, febre de acessos por um tempo.

Convenhamos que dábliudábliudábliu é um travalíngua pouco sonoro e muito feio. Só não é pior do que suas alternativas em português: doblevêdoblevêdoblevê e vêduplovêduplovêduplo. Todos eles servem muito bem aos locutores como aquecimento para a articulação das palavras, mas não ajudam no texto. Piora quando o www é citado por alguém com má dicção em entrevistas ou matérias jornalísticas. Verdadeiro martírio que está se tornando dispensável.

Há outro aspecto na questão: todo www dito com conforto consome no mínimo dois segundos de áudio em um spot ou filme comercial. Isto significa quase 10% do tempo disponível nos tradicionais trinta contratados. Reconhecendo nos publicitários o talento dos minicontistas, ou seja, pessoas capazes de compor universos em espaços diminutos de texto, não há razão plausível para desperdiçar tempo e dinheiro. Tal como os bons poetas, o autor da mensagem deve perseguir a forma mínima de máximo significado. No miniconto, na poesia e na publicidade, menos é mais.

Pode-se defender o www por seu caráter pedagógico: nem todos os receptores da mensagem estão familiarizados com os acentos do mundo digital. Mas até a pedagogia tem seu tempo necessário – tudo o que vem depois é dispensável. Um exemplo clássico, mesmo que recente, é a reformulação da telefonia no Brasil após a privatização. Durante anos escutamos as pessoas dizerem "zero operadora onze" antes de um número de São Paulo. As empresas que brigassem entre si para ganhar a eleição dos prefixos. Agora que todos já sabem que a ligação não se completa sem os dois dígitos operantes, pararam de falar em operadora.

O próximo passo é deixarmos também de escrever o www. Ao menos em impressos: cartões de visita, prospectos, catálogos. Em escala planetária, já pensaram quanta tinta podemos economizar? E o tempo de digitar www na comunicação virtual seria melhor aproveitado com um "olá". A mesma quantidade de letras transformando a internet em um ambiente menos árido.

Bom, tanta história apenas para comemorar com os leitores a felicidade de me sentir desobrigado a pronunciar dábliudábliudábliu daqui para frente. No futuro, acharemos muita graça dessa expressão. E, como na Era Digital o futuro chega rápido, lhe convido a dizer www em voz alta. É de matar, ou melhor, de morrer de rir!


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22.7.11

Tratamento de choque

Número 431
Rubem Penz
Um amigo foi submetido a um tratamento de choque. Altíssima voltagem. E com consequências permanentes para a compreensão das circunstâncias ao seu redor. Ao nosso redor. Contarei sua história.
Em recente viagem de trabalho ao exterior, fora do eixo das grandes metrópoles, ele resolveu dar uma passeada por um bairro residencial para bem aproveitar um repouso. E seguiu por uma alameda qualquer, apreciando a fileira de árvores, os gramados bem aparados, os canteiros de flores, janelas abertas, casas bem cuidadas e sem luxo. Cães, crianças e adultos em distraída convivência, absortos com seus afazeres e sequer reparando no atento caminhante.
A idílica sequência de passos, ao invés de prazenteira, foi sendo tomada de uma angústia crescente, sem que ficasse claro o motivo. O mal estar impôs a reflexão: o que há de errado na paisagem, nas pessoas? Por que me perturba viver uma cena que já assisti milhares de vezes em filmes ou na grade de programação da TV por assinatura? Eis a palavra chave: grade. Faltavam grades. Não havia muros, cercados, portões. Nem tramelas, cadeados, correntes. O choque.
Furtos, assaltos, violência física e psicológica, crimes contra a vida e maldades em geral não escolhem lugar ou vítima. Muito menos são exclusividade de países, estados ou cidades. Meu camarada não estava chocado com a existência de um mundo ideal, livre da crueldade dos homens. O grande baque foi perceber que naquela cidade ninguém culpava o cidadão pelos crimes dos quais seria uma vítima em potencial. Em nosso país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, fomos todos condenados.
Vivemos em prisão perpétua e regime semi-aberto: sim, é preciso deixar a cadeia para trabalhar. Antes de sairmos, fechamos a cela, atravessamos as grades e, bem educados, damos bom dia ao carcereiro. Quanto pior for nosso delito, também conhecido pelo nome de prosperidade, maior será a segurança: cerca elétrica, alarmes, muros, sensores de presença, câmeras de vigilância, rastreamento eletrônico, veículo blindado. Trilhões de Reais investidos neste sofisticado sistema prisional.
Não sendo o suficiente, a população ainda precisa suportar a imposição de diversas regras de conduta por parte de técnicos privados e agentes públicos: não ande com muito dinheiro no bolso e separe as cédulas dos documentos; antes de acionar o portão da garagem, investigue os arredores em busca de movimentos suspeitos; não atenda desconhecidos ou dê esmolas; mantenha os vidros do automóvel fechados; evite rotinas e mude trajetos; desconfie de entregas de flores ou mercadorias; investigue o passado dos prestadores de serviços etc. Ao descuidado, o castigo virá cedo ou tarde.
Depois do choque, meu amigo constatou que fomos cozidos tal qual o sapo mergulhado em água fria: lentamente, fogo brando. Trinta anos atrás, poucas eram as casas com muros intransponíveis, grades e segurança. As crianças de todas as classes sociais deixavam a escola a pé, andavam de bicicleta pelos bairros, jogavam bola no terreno baldio. Sentávamos nas calçadas para curtir o final de tarde, porta aberta. Jovens circulavam pela madrugada indo das festas para casa. Já havia ricos, pobres e miseráveis; bandidos e polícia; virtudes e pecados. O que não existia era a pena de prisão imposta ao inocente, cuja culpa pode ser a pretensão de um dia voltar a morar em uma alameda calma, arborizada e livre. Crime hediondo.

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14.7.11

Espelho Mágico

Número 430

Rubem Penz

Ei, você que está sem tempo; que está sem saco; sem paciência: tudo parece pesar sobre seus ombros? Família, compromissos, dívidas, metas, microvarizes, macroeconomia... Tarefas de ontem para hoje ou, pior, de hoje para ontem. Enxaqueca, pressão alta, índices de colesterol e Dow Jones a preocupar.  Clientes, pacientes, impacientes... Você sabe onde foi parar aquele seu sorriso fácil, inocente e franco?

Ele está bem aí, no seu rosto. Só precisa do espelho certo para aparecer.

Eu já comecei a resgatar meu sorrir. Tenho sorte: retiro o espelho mágico de tempos em tempos da gaveta. Fui apresentado para ele faz dez anos e não pretendo esquecer jamais de sua existência. Descobri no olhar dos amigos de infância o reflexo do meu melhor sorriso. Aquele que tenho mais verdadeiro. Melhor: notei que todos ainda sorriem do mesmo modo diante dos meus olhos. E falam bobagens, recordam histórias, mostram a criança que jamais deixará de existir. Ao menos para quem a deseja viva.

Muitos espelhos me aguardam em outubro.

Há uma tradição na escola em que cursei o ensino fundamental e médio: a cada intervalo de dez anos, os formandos preparam uma festa. Nada de extraordinário, apenas música, algo para comer e beber, um salão enfeitado. Porém, a experiência de encontrar centenas de amigos de infância transforma completamente o cenário. Juro que nenhuma festa de casamento, batizado, Natal ou Ano Novo supera o índice de sorrisos do reencontro. Sorrisos-espelho.

Um encontro marcado comigo mesmo, aos dezessete anos (ou menos).

Nem todas as escolas incentivam este espírito de geração, de turma, de colegas para vida inteira. Sou alguém de sorte. Meus companheiros também. Assim que começamos a organizar o evento, os mais sensíveis se deram conta de que beberão o elixir da juventude: diante de nossa geração, somos todas as idades, inclusive (principalmente) as que ficaram bem para trás. Resgataremos apelidos, vamos nos lembrar dos professores, das roupas e bravatas. Mais: ofereceremos e tomaremos de volta olhares sobre um período formador de nossa história.

 Serão poucas horas que valem dez anos de espera.

Nesta década, desde o último encontro, a vida não parou: entre nós, houve sucessos e fracassos, muitas perdas – algumas tão doídas que brotam lágrimas enquanto escrevo –, nascimentos, formaturas, casamentos, separações, viagens de ida ou de volta. Assunto não faltará caso o presente entre na ordem do dia. Uns podem se surpreender com o menino tímido que hoje é um astro, ou com a moleca transformada em autoridade. Outros, talvez a maioria, reconhecerão no amigo de infância o caminho já traçado em tempos idos: tão bom em matemática, a carreira acadêmica caiu-lhe feito luva.

Do Colégio Anchieta para a vida, sem perder-se das lembranças.

Os espelhos de classe já circulam entre colegas: nossas fotos em 3 X 4 nas turmas, ordenados pelo alfabeto. Ali estou, trinta anos atrás. E os outros, até os que já não mais estão por aqui. Especialmente eles... Nem todos sorriem nas fotos. Mas posso apostar que estarão felizes ao entrarem no salão. Meninos e meninas. Crianças grandes que encontrarão tempo, saco e paciência para dar um nó na rotina e um golpe no calendário. Sorrir tão largo que, de ponta a ponta, alcançará de 1981 até 2011. Como por encanto.

E você: descobriu seu espelho mágico?


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8.7.11

Futebol, essa obsessão

Número 429
Rubem Penz
Quando tinha quinze anos, ainda nas categorias de base, tropeçou em um fio e entrou no campo pulando duas vezes com o pé direito. Naquela tarde, marcou o mais belo gol de sua iniciante carreira – meia bicicleta, logo atrás da marca do pênalti, no ângulo. Dali para frente, jamais dispensou aqueles dois pulinhos que lhe deram tanta sorte.
Em outra oportunidade, nas finais do campeonato regional, ao dar seus dois pulinhos, desequilibrou-se e rolou em uma cambalhota. Quase morreu de angústia. Suava frio perfilado para a fotografia. Porém, marcou dois golos, o segundo aos quarenta e dois do segundo tempo, garantindo a vitória. Ah, que dúvida: adotou a cambalhota.
Era sua primeira partida na Seleção Sub-17. Deu seu dois pulinhos, a cambalhota e aplaudiu de volta as manifestações da torcida. Naquele jogo, não só fez dois golos, como também foi escolhido pela crônica especializada como o melhor em campo. Quem foi que disse que dormiu à noite? Já amanhecia quando teve convicção de quantas palmas batera na entrada em campo.
Sentado no banco de reservas, aguardava com esperança pela chance de compor entre os profissionais, quando uma mosca quase pousou em seu rosto. Enojado, sacudiu as mãos, a cabeça e, surpresa!, chamou a atenção do técnico. Passava dos trinta e cinco do segundo tempo. Deu dois pulinhos, uma cambalhota, dezenove palmas e substituiu o número dez. Mudou o jogo, revertendo um empate vexatório.
Estréia como titular no time. Todos os parentes na arquibancada. Pediu, ou melhor, implorou para ser o último da fila no momento de entrar em campo. Deu dois pulinhos, uma cambalhota, dezenove palmas e sacudiu com violência a cabeça e as mãos ao entrar em campo. A torcida, obviamente, estranhou. Ouviu-se um apupo. Olhando para as sociais, identificou o pai, a mãe e a avó. Saltou e acenou usando toda sua envergadura. Na primeira jogada, mal apitara o árbitro, já estava marcando um gol. O seu mais rápido gol!
Escutou pelo rádio: saíra a convocação para a seleção nacional e seu nome estava na lista! Um amistoso, longe da Copa do Mundo, contra um selecionado obscuro da Europa Oriental, mas era a oportunidade. Fazia muito frio. No primeiro treino, depois de entrar em campo com dois pulinhos, uma cambalhota, dezenove palmas, uma simbólica espantada de mosca e sete polichinelos, deu uma corridinha no mesmo lugar para reforçar o aquecimento. Então, testemunhou uma lesão grave no titular absoluto de sua posição. Imediatamente trocou de colete e viu asfaltada sua estréia como meia atacante da seleção. Adotou a corridinha.
Hoje, Ivanilson tem trinta e seis. Faz três anos que foi repatriado, depois de passar doze jogando nos maiores clubes do mundo. Já foi a quatro Copas. Vende saúde. É sempre determinante nas partidas. Também o único que dispensa aquecimento antes de entrar em campo. Fica ali, divertindo a torcida com novecentos e oitenta e quatro movimentos, integramente repetidos em ordem, algo que já consome quase vinte minutos.
Até abandonar a bola, crê que chegará aos mil amuletos.

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1.7.11

Rua dos Bobos, nº zero/ap.101

Número 428

Rubem Penz

Era um apartamento muito engraçado. Não tinha teto: à noite, o que tinha era um tablado de dança flamenca. Única explicação para tanto salto batendo sobre a cabeça. Mas não parava por aí, não. De manhã, caso resolvesse recuperar o sono perdido sob influência andaluz, o teto virava algo parecido com uma pista de boliche. Há quem tenha compulsão em mudar toda a mobília de lugar, agravada pela incapacidade de elevar os móveis do chão. Logo, a expressão "uma manhã que se arrasta" ganhava outros contornos.

Ninguém podia entrar nele, não. Ao menos sem antes passar por um gradeado de quase três metros de altura à beira da calçada. Ali, um porteiro eletrônico com aquele ruído de linha aberta dava a impressão de que alguém mais escutava a conversa. Depois, outra barreira: a porta do prédio, sempre trancada a sete chaves, com ordem expressa de assim permanecer a qualquer horário. Por fim, mais uma grade, agora diante da porta do apê. Qualquer semelhança com presídios e celas é mera coincidência com nossa (in)segurança pública...

Ninguém podia dormir na rede, porque no apartamento não tinha paredes. O que ele tinha, com boa vontade, eram estruturas divisórias. Pendurar quadros já era uma temeridade, que dirá uma rede... Qualquer broca de maior calibre arrombaria a parede do vizinho. Essa, aliás, era a explicação para não ser necessário som na TV, caso ao lado estivessem ligados no mesmo programa. Também a resposta para sabermos há quantas andava o relacionamento afetivo uns dos outros: primeiro a DR, depois a briga e, mais tarde, a reconciliação. Às vezes, uma segunda reconciliação.

Ninguém podia fazer pipi sem que o ruído circulasse pelo fosso de luz, anunciando para todos no prédio o volume do jato. Essa era a melhor notícia. Pior, mesmo, eram os momentos de indisposição intestinal. Ou quando algum acidente de percurso exigia que chamassem o Hugo – eufemismo simpático para o ato de regurgitar em abundante jorro. A rádio fosso de luz, recuperando-se dos ruídos fisiológicos, transmitia os hits de chuveiro de todos os moradores. Também a terceira reconciliação pós DR, agora sobre a pia ou dentro do box.

Era decorado com humilde esmero: na sala, um sofá de dois lugares herdado de uma tia, caixa de maçã apoiando a TV de 14' e mesa dobrável com quatro cadeiras. No quarto, o colchão repousava direto no carpete, defronte ao armário de duas portas. Na cozinha, a infalível geladeira Frigidaire branca que um dia fora da família.

E era pago com sofrido esmero – quase a metade do salário sumia entre aluguel e condomínio. O restante tinha finalidade bem mais nobre: cerveja para receber os amigos e vinho para impressionar as meninas. Ah, claro: comida suficiente para se manter vivo.

Mas era curtido com muito esmero! Todos aqueles que tiveram apartamentos parecidos com esse, ou mesmo um JK, descobriram a dor e a delícia de ser independente. A delícia vinha do despojamento juvenil, algo tão fora de moda. E a dor também, é claro. Um banho meio frio que o diga.

*Crônica inspirada em A casa, de Vinícius de Moraes


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