25.3.11

Cavalo dado

Número 414

Rubem Penz

Setúbal teria sido para sempre de uma só mulher se não fosse por um detalhe sutil: Antonieta pedira divórcio duas semanas antes de completarem bodas de pérola. Segundo ele, assim, do nada. Segundo ela, Santo Deus!, por tudo. Justamente na distância entre estes pontos de vista, mesmo que imprecisos, poderia estar a provável causa do litígio. Ou na abrupta proximidade do casal, depois de ele ser afastado para o Conselho de Administração da empresa.

Agora, morando em um apart-hotel, custava a se adaptar com algumas novas rotinas. Por exemplo, gerir suas próprias necessidades: serviço de café da manhã, arrumadeira, lavanderia, restaurante. Tudo muito bom, mas, segundo Setúbal, sem nenhuma sombra de lar, de cordialidade ou afeto. Em resumo, numa questão de meses, estava sem trabalho e sem família. E muito deprimido.

Antes de vê-lo doente, os amigos resolveram arranjar nova esposa para o Setúbal. Às escondidas, alimentaram um site de relacionamentos com seus dados: peso, altura, idade, cor dos cabelos e dos olhos, preferências musicais e gastronômicas... Essas bobagens que podem indicar o par ideal. Ah, claro, e a situação financeira, seu único sex appel. Por fim, apropriaram-se da aparência da ex para montar o perfil de preferência.

Rodolfo, o mais despachado da turma, foi o responsável pela triagem. Fazia-se passar por Setúbal e marcava encontros com as pretendentes. Depois de umas dezessete tentativas frustradas, e com a turma desconfiando de que Rodolfo estava era tirando proveito da situação, ele anunciou que conhecera a mulher ideal para o solitário amigo. Raquel – seu nome – parecia uma fiel reprodução de Antonieta aos trinta e tantos anos. Tiro certo.

Setúbal, homem de uma única mulher, seria defrontado com uma versão revisada e ampliada de seu amor primeiro. Nos planos da turma, passaria os dias lendo a mesma obra em busca das pretensas atualizações, algumas bastante evidentes, saltando do decote. Teria a oportunidade de voltar às joalherias para reescrever suas observações pessoais em momentos mais brilhantes. Com sorte, em poucos meses, já estaria morando em um apartamento, todo bobo ao acompanhar Raquel escolhendo móveis e artigos de decoração.

À moça, uma única recomendação: jamais comentar nada sobre os dentes do Setúbal, por maior que fosse o estranhamento provocado por eles. Foi agindo assim que Antonieta, a ex, ganhara seu amor e tudo o que o pacote contemplava, incluindo a pensão. Além do mais, sob certo prisma, os dentes eram o único traço distintivo daquele homem de bom coração, mas um tanto convencional.

A aproximação se deu de modo calculadamente fortuito, em um jantar. Tudo estava tão bem articulado, que as primeiras palavras de Setúbal à Raquel foram "Não lhe conheço de algum lugar?", ainda durante o serviço de canapés. Depois, sentaram-se juntos à mesa e pareciam emendar um assunto no outro, como se estivessem a sós na movimentada recepção. Mal terminaram a sobremesa e Setúbal convidou Raquel para darem uma volta pelo jardim. Diante da cena, os amigos comemoraram a vitória. Antes do tempo.

Naquele instante, ao abrir um sorriso mais largo, Raquel revelou um desconcertante pedaço de alimento entre o canino e o pré-molar. Setúbal percebeu e, sem coragem de falar, começou a passar a língua em seus próprios dentes. Notando que Raquel prestava mais e mais atenção, passou a fazer movimentos amplos, ostensivos, que se transformaram em caretas e, estas, foram acompanhadas de pequenos grunhidos.

No relógio, 11h. Setúbal dispensa o café da manhã. No corredor, dá bom dia para a camareira e sorve o tímido sorriso que recebe de volta.


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17.3.11

Homo Zappiens, koyaanisqatsi e cavernas

Número 413

Rubem Penz                                 

Homo Zappiens é a terminologia presente em uma obra de Ben Vrakking e Wim Veen dirigida aos atuais educadores. Nomina os seres humanos nascidos em um ambiente tecnológico. De rara felicidade, ela é muito mais do que supõe o bom trocadilho: resume e define a geração dos nossos filhos. Aqueles que têm em casa um jovem, um adolescente ou uma criança, compreendem o que digo.

O universo fragmentado e multifocal da meninada nos assusta em alguma medida: parece que são incapazes de sossegar o pito em uma atividade que requeira mais do que poucos minutos. E, mesmo quando estão estudando, teoricamente concentrados, a TV teima em permanecer ligada. O computador também, e com mensagens brotando na tela feito cogumelos durante a chuva. O i-pod despeja melodias direto no cérebro, tudo ao mesmo tempo e na mesma passada de sentidos.

Nessas horas, a primeira reação que tenho é a de frear o processo: ao menos para as atividades escolares, por favor, desliguem a TV e a música! – é o que digo. Amigos mais avançados falam que, se eles estão indo bem na escola, significa que apreendem conhecimentos sem abrir mão dos múltiplos estímulos. Custo a crer nessa possibilidade. E as boas notas no boletim podem tanto significar que estou certo, quanto que eu exagero. Quem vai saber qual será o reflexo disso tudo na vida adulta...

Mas, pensando bem, noto em mim características destes tempos vorazes – já trago nos hábitos algumas inquietudes com a quietude. Sou um homem da tela lascada, por assim dizer. Acompanhei boa parte da escalada tecnológica, vivi a transição do Homo Sapiens para o estágio Homo Zappiens, só me falta a naturalidade dos que já nasceram com tudo digitalizado, acelerado, imediato, simultâneo. Em resumo, ainda me espanto com as novidades, mas não desejo retroceder.

Quando publicitário, ainda nos anos 1980, criava de modo manuscrito, passava a limpo em máquinas de escrever e acompanhava a lenta magia do papel branco transformando-se em layout pelas mãos de diretores de arte e ilustradores. Cada anúncio cumpria o ciclo de um amanhecer, desde as primeiras luzes iluminando as nuvens altas, até o sol se desprender do horizonte laboral. Agora, processo semelhante é quase instantâneo. Virou koyaanisqatsi – termo que na linguagem Hopi significa "vida em turbilhão", usado para nominar uma obra cinematográfica visionária de Godfrey Reggio com imagens da natureza em contraponto com a cidade (1982). O filme utilizava apenas o som de Phillip Glass para contar muito de nossa História recente. Impactante.

Enfim, sinto-me como um homem pré-histórico alçado sucessivamente para saltos de tempo: quando me acostumo com uma ferramenta, ela já está obsoleta. O dia a dia me traz de volta a encantadora vertigem de Koyaanisqatsi. Todavia, na mente videoclipada e estroboscópica dos meninos e meninas, com seus cortes quase instantâneos de imagens e sons, a vida turbilhonada parece encontrar uma harmonia insuspeitada. Eles estão em outra batida. Outro ciclo. A agilidade treinada nos videogames contamina expectativas e reações. Intuem os caminhos prometidos pela tecnologia, migram de suporte em suporte e de linguagem em linguagem como se a velocidade das mudanças fosse algo normal.

Caso viva mais vinte, trinta anos, alcançarei a geração dos netos crescidos. Há uma chance de ver meus próprios filhos, autênticos Homo Zappiens, com dificuldades para acompanhar novas mudanças, repetindo o ciclo em que me encontro. Escutarei, então, suas queixas com relação ao comportamento das crianças. Soará Phillip Glass no fundo da memória. "Koyaanisqatsi" retumbando nas paredes da minha caverna.


11.3.11

Soterrados

Número 412

Rubem Penz
Estamos bien, los 33
Bilhete enviado pelos mineiros Chilenos

Os últimos tempos têm sido pródigos em empilhar catástrofes: deslizamentos, terremotos, tempestades, tsunamis, enxurradas, desmoronamentos etc. Também, especialmente no Brasil, tragédias cotidianas como os acidentes em estradas fazendo muitas vítimas, em grande parte, fatais. A violência, a tirania e as guerras se acumulam sobre nossas cabeças. Nas (in)consciências, domina o pó  dos entorpecentes. De alguma forma, nos sentimos, todos, soterrados.
Por isso, aqui do fundo do poço escuro e imobilizador, parte meu bilhete: "Estamos bien, nosotros...".
Vivos, apesar das toneladas de lixo que separam nosso abrigo íntimo da mãe natureza. Entulho responsável pela contaminação das nascentes e pela poluição do ar. Escombro que destrói o entorno, violando o bom senso, desfigurando as encostas, alterando a ordem natural;
Saudáveis, mesmo que paire tantas dúvidas sobre os alimentos que ingerimos e os hábitos que adquirimos.  Céticos quanto às chances no longo prazo para nossos anticorpos na escalada bacteriológica. Dependentes dos fármacos e fragilizados diante das ameaças ao organismo;
Razoavelmente seguros, mas cada vez mais isolados dentro do solitário refúgio da desconfiança – prisão sem grades. Paralisados pela ousadia dos chacais e por ordem de quem deveria nos proteger: Não reaja! E não reagimos;
Solidários em alguma medida, caso contrário nada mais faria sentido, nem mesmo a sobrevida dos dilacerados. Dividindo um pouco de consolo, de lágrimas, de carinho. Oferecendo e tomando emprestadas poucas migalhas de luz;
Insurgentes contra os que tomaram as decisões que nos trouxeram para cá. Mas igualmente revoltados contra nós mesmos, surdos que fomos para os alertas que partiram da razão e do sentimento;
Organizados diante do caos, metódicos frente ao inesperado, capazes de improvisar antes mesmo de conhecer o próximo acorde da melodia – ainda que o conjunto soe meio desafinado para os mais puristas;
Inacreditavelmente esperançosos, estupidamente humorados, inevitavelmente famintos, especialmente amorosos.
Estamos muito mal, mas "estamos bien":
Agarramo-nos com a força insondável do instinto nos mínimos ruídos que partem da superfície. Cremos que algo ou alguém de fora deste buraco tenha mínimo interesse em seguir com as missões de resgate. Ou, quem sabe, que surja aqui de dentro um meio de suplantar a pilha de dor.
O tempo não está do nosso lado, minando gradativamente a resistência, fazendo novas vítimas, enlouquecendo até mesmo aqueles mais sensatos. Vemos escassear as reservas de fé. E, a cada dia, as manchetes pelo mundo nos atiram mais para baixo.
"Estamos bien, nosotros, los sobrevivientes." Mesmo que soterrados pelas notícias de violência e de mortes evitáveis.

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3.3.11

Anjos e demônios

Número 411
Rubem Penz


Eis um clássico dos desenhos animados e dos quadrinhos: quando o protagonista se defronta com um dilema, surge sobre seus ombros um anjo de um lado e um demônio do outro. Ambos concorrem em conselhos buscando influenciar a consciência – território do livre arbítrio. Em jogo, o pendor das ações. Se o ser humano fosse virtuoso por natureza, o demônio colocaria o tridente no saco e abandonaria o emprego. O problema é que não somos assim tão bonzinhos, e os argumentos do capeta são muito convincentes.


O grande talento do demoniozinho fictício é o de soprar em nossa orelha uma oferta irrecusável, aquela que sempre acena com a vantagem pessoal. O anjo, por sua vez, rechaça qualquer privilégio. Por exemplo, quando há uma fila enorme de automóveis em um engarrafamento, surge o dilema e começa o debate:


Capeta: Ô babaca, pega o acostamento e passa por todos!


Anjo: Nada disso! As pessoas na sua frente chegaram antes e merecem a primazia. Além do mais, segundo a lei, o acostamento não é pista de rodagem.


Capeta: A culpa do engarrafamento não é sua. Sai agora ou chegará atrasado!


Anjo: Se fosse previdente, teria saído mais cedo...


Capeta: Ó, acabou de passar um pela sua direita! Vai agora, antes que o acostamento engarrafe também!


Anjo: Não! Essa vantagem é ilícita!


É quando, no exemplo, a virtude arrisca ir para o brejo... Como a honestidade é a marca do anjo, ele reconhece que há vantagens para quem coloca seus interesses acima dos demais. Principalmente quando a regalia segue de mãos dadas com a impunidade: lei sem fiscalização só castiga os obedientes.


O anjo, representando o bem, pensa no outro. O demônio, em nome do mal, é egoísta. Em tese, se ninguém prejudicasse ninguém, todos seriam beneficiados. Na prática, a ordem é cada um por si e o sistema falho que nos livre!


Isso vale para os automóveis e para tudo: pedófilo e estuprador pensam no prazer, azar da vítima; o assaltante deseja os bens alheios, mesmo que incida em prejuízo para quem caiu em sua teia, ou mesmo lhe custe vida; o traficante conhece o preço social da fissura, e lucra com isso; o corrupto e o corruptor dão uma banana para a coletividade, e assim por diante. O demônio que habita o ombro quer nosso benefício exclusivo, imediato e ilimitado. Oferta muito tentadora.


Voltando ao trânsito, como todos já devem saber, um motorista atropelou de propósito dezenas de ciclistas em Porto Alegre. O ato, flagrado por câmeras de celular, repercutiu no mundo inteiro. Poucas vezes tive a oportunidade de testemunhar tamanha fúria e inconsequência. O anjo que deveria estar no ombro do cidadão só pode ter saído para dar uma volta, pois um mínimo de pensamento lógico, lúcido ou amistoso seria suficiente para evitar o que quase virou tragédia.


Sem querer justificar o injustificável, falharam também os anjos dos ciclistas que bateram com suas mãos na carroceria do automóvel antes de ele acelerar sobre a massa, atiçando as brasas até o ponto de labareda. Deve (ao menos deveria) estar pesando na consciência daquelas pessoas os ferimentos dos companheiros. Afinal, um conselho típico de anjo é o de não agredir ninguém, especialmente um desconhecido que parece apressado e furioso, pois a reação nem sempre é proporcional.


Anjo: Isso! Use esse artigo para dizer que venho perdendo terreno para o egoísmo; que as pessoas devem me escutar mais e cultivar a paz e a tolerância.


Capeta: Que nada, deixa pra lá, não te envolve... Nem foi contigo! Qual será a vantagem?


1.3.11

Santa Sede Safra 2011

SANTA SEDE, oficina de crônicas em botequim, abre inscrições para sua Safra 2011
Antologia Santa Sede, crônicas de botequim, Safra 2010


Estão abertas as inscrições para a Safra 2011 da oficina Santa Sede – crônicas de botequim. A inédita experiência  de ambientar a turma no habitat natural dos cronistas – a mesa de bar –, depois do pleno êxito no ano passado, aguçou o paladar para outra rodada.
A exemplo do livro Santa Sede, crônicas de botequim Safra 2010, nas livrarias, a nova turma escreverá sua própria antologia, com lançamento marcado para o segundo semestre. Os encontros acontecerão nas terças-feiras, 20h, no Boteco Matita Perê, Rua João Alfredo, 626, Cidade Baixa.
Rubem Penz no balcão do Matita Perê, foto de Carolina Albuquerque

Especialmente criada para jornalistas e escritores provenientes de outras oficinas literárias, Santa Sede explora as muitas nuances do gênero crônica sem jamais trair a descontração do entorno. Mais informações no site www.rubempenz.com.br  ou pelo fone (51) 3446-3320. Vagas limitadas.