28.2.08

Número 253

OCASO DE UMA ERA

 

Dois homens estão naquela tradicional cena de fim de noite, sentados no balcão do bar, cada um mais amarrotado do que o outro. O primeiro, Nelson, é completamente calvo. Cláudio, apesar da aparência jovial, não esconde o cabelo grisalho. Garçons varrem o chão em volta das mesas. As poucas luzes estão se apagando. O barman recolhe as sobras de tantos amores que testemunhou fenecer. Há um clima de derrota no ar. No último suspiro, Nelson faz renascer o diálogo.

 

– O ano vai ser difícil. Ainda não me conformo de ele ter se aposentado.

– Bom, a gente sempre soube que isso aconteceria mais cedo ou mais tarde...

– Saber, sabíamos – o homem calvo se revigora. – Porém, depois que aquele outro bailou na curva, virando ícone – mito! –, só restava ele para manter o encanto da coisa, contra tudo e contra todos.

– É... – Cláudio segue reticente. – Mas tem um consolo: ele deixou o irmão firme, na ativa.

 

Nelson bate na mesa e sobe o volume da voz. Reclama que o tal irmão nada fizera de verdadeiramente admirável para merecer figurar entre os grandes. Com um toque apaziguador no braço, Cláudio tenta retomar o tom de confidência:

 

– Ora, com ele ainda na direção, mesmo sem igual brilho, sentimos que existe alguém para manter o legado, não é?

– Nada! A fibra não pode ser reduzida a uma questão genética. Tem outra: sem o mais velho, o caçula nem tinha chegado lá. Às favas com esse irmão!

 

Faz-se uma pausa. Melhor assim: os garçons já estão se olhando, loucos para expulsá-los do bar por algum motivo. Cláudio, que se tornara mais diplomático com o passar dos anos, diz não entender esse desconsolo fora de hora. Afinal, mesmo depois de tanto tempo de afastamento, o circo sequer ameaçava desabar. – Ou você suspeita de algo? – pergunta.

 

– Não é nem isso... O problema é que não vejo na nova geração um expoente capaz de chegar perto da capacidade dele no controle.

– Como assim?

– As coisas estão fugindo das mãos dos homens, você não vê? – Nelson abre os braços, olha para cima e para os lados enquanto fala para microfones imaginários: – Agora é tudo dominado pela máquina: mil olhos vigiam quem está lá, fingindo que dirige.

– Você está bêbado! – Cláudio perde a paciência. – Não tem essa de controle externo: é a mão do homem que está no poder. Sempre foi e sempre será. O resto é mera tecnologia. Pára de ver Big Brother em tudo!

 

Novo silêncio, cada um concentrado em seu copo. A conta chega para os dois, sem que pedissem. É um recado claríssimo. Cláudio alcança o cartão de crédito e vai ao banheiro. Nelson baixa a cabeça e parece chorar. Sim, está bêbado. E desiludido. O barman, ainda que calejado pelas tragédias do cotidiano, se vê condoído. Em um gesto solidário, repousa a mão no ombro do cliente e busca palavras de conforto:

 

– Calma: enquanto viver, o Fidel ainda estará no comando, todos sabem...

 

Nelson olha para ele, incrédulo:

 

– Fidel?! Que mané Fidel, cara?! Estamos falando do Schumacher!

 

Achado não é roubado 2

ACHADO NÃO É ROUBADO

 

A burocracia nacional é pródiga em criar dificuldades, ligeira para vender facilidades e displicente ao entregar o que vende.

21.2.08

Número 252

MENTE SÃ, CORPO SÃO

 

         O rumoroso caso de denúncia de abuso sexual envolvendo a nadadora Joanna Maranhão e o treinador Eugênio Miranda repercutiu na imprensa brasileira. Não é para menos: além de ter como protagonista uma atleta de destaque, joga luz sobre um tema dos mais sombrios em nossa sociedade. Porém, como nocivo efeito colateral, ele alastra uma sombra de desconfiança a toda uma categoria de profissionais – os professores de educação física – educadores e técnicos responsáveis pelo desenvolvimento sadio de nossos filhos em clubes e escolas. Algo compreensível, mas longe de ser justo.

 

         A lista de preconceitos aos quais os professores de educação física estão sujeitos é extensa e antiga. Fácil entender: na média, são homens e mulheres com corpos bem cuidados, trabalham mais expostos, lideram atividades lúdicas e recreativas (mais relaxadas do que aquelas impostas em sala de aula) e costumam ser ídolos para jovens e crianças. Não raro, e aqui não há nenhuma novidade, habitam inconfessáveis fantasias de cunho sexual na comunidade, sem, necessariamente, moverem um músculo nessa direção. Portanto, queiram ou não, suportam no cotidiano uma constante tensão moral, mal disfarçada em piadas e estigmas.

 

         Avaliações apressadas com base no conceito de que a ocasião faz o criminoso podem incidir em enormes iniqüidades. Depois de cursar a Escola de Educação Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ESEF/UFRGS) e, por dois anos, trabalhar na área, afirmo com conhecimento de causa: nada pode ser mais contraproducente na relação professor/aluno ou treinador/atleta do que o contato erotizado. Se isso fosse freqüente como faz crer a série de reportagens nascidas da denúncia de Joanna Maranhão, as aulas de educação física e a prática de esporte não alcançariam qualquer êxito (o afastamento entre a atleta e o técnico, se ocorreu pelos motivos expostos, prova o argumento). Ao contrário, é a respeitosa abordagem do professor que gera a confiança necessária no aluno. Com base nela, o esporte se desenvolve.

 

         Pai de duas crianças, também sou assombrado com a idéia de ter os filhos molestados por um pedófilo. Entendo o sofrimento de dona Teresinha, mãe de Joanna, e amplifico sua indignação. Considero muito corajosa e repleta de valor a iniciativa de denunciar atos brutais: é apenas com a revelação que as eventuais culpas serão imputadas. Mas ela servirá, antes de tudo, para aguçar nossos ouvidos para as queixas infantis, muitas vezes desesperadas em transmitir um pedido de socorro. Afinal, especialistas apontam o abusador como alguém quase sempre próximo da vítima, gozando de seu respeito, afeto ou admiração. Isso não livra ninguém, nem os pais, de igual suspeição.

 

         Que este episódio, triste sob qualquer prisma, seja base para discussões nos bancos e quadras de nossas ESEF, além de pauta de reuniões de Círculos de Pais e Mestres. Estejam atentas as direções de clubes e escolas: o desenvolvimento do esporte brasileiro, a saúde de nossos jovens e a crença na atividade física como fator de integração social dependem de tal vigilância. As piadas e mitos em torno dos profissionais em nada combinam com a responsabilidade a eles atribuída. Reitero grande respeito e confiança nos tantos professores que conheço – meus mestres, antigos colegas e mestres dos meus filhos. Pessoas de mente sã, responsáveis por tantos corpos sãos.

(Mini) Conto contíguo 2

 
(MINI) CONTO CONTÍGUO
 

 

AQUELE BEIJO

 

Para ter uma idéia, máscaras de despressurização caíram na nossa frente.

14.2.08

Número 251

 

IRRESISTÍVEL

 

Você mesmo já presenciou esta cena – quando não foi o protagonista: no tradicional passeio pelas areias do litoral, o olhar abandona o curso ao ser atraído por algo completamente irresistível. Sim, está ali, repousando na areia como que chamando para uma conferida. Não é nenhuma novidade, em quase nada se difere de outros, vemos muitos durante a vida, é natural que esteja ali – e naquela posição –, mas não adianta... O olhar é arrebatado pela força de mil ímãs e mira na direção exata.

 

Depois de reparar que todos olhavam, aproveitei-me do fato de estar trinta, quarenta minutos de pé, cuidando os filhos no mar, e parei ao lado de um bom exemplar. Então, prestei atenção nas diversas reações dos passantes diante daquele que é feito para guardar e – por que não? – mostrar também. É o que dá a esposa não acompanhar o marido na beira da praia para colocar a leitura em dia: ficamos por ali só pensando em bobagens.

 

Há os passantes discretos. Estes se aproveitam da coincidência na trajetória e, sutilmente, espicham os olhos. Nada comentam: seguram para si as impressões da visão furtiva, que raramente contempla os detalhes. Às vezes, os passantes discretos estão em duplas ou trio. Nesses casos, um cutuca o outro para todos olharem. Se entre eles está um mais entendido no tema, esperam elegantes passos adiante para comentar algo sobre tamanho, forma ou variedade. Essas coisas. Mas sem alarde.

 

Os passantes indiscretos, por sua vez, não tomam tantos cuidados. Ao perceberem que não passarão ao lado, mudam desavergonhadamente a rota para se aproximar ao máximo dele. Então, diminuem o passo e afundam olhos invasores com vontade. Chegam a arquear o corpo para ver mais detalhes. Quando em grupo, os indiscretos emitem opinião em voz alta, envaideça quem envaidecer, doa a quem doer. Óbvio: consideram que, se está ali exposto, só pode ser de propósito. No caso de não encontrarem o que de longe esperavam ver, costumam ser sarcásticos.

 

Por fim, existem os passantes entusiastas. Estes não se contentam em mudar o curso para chegar pertinho: eles param ao lado. Olham com prazer e puxam assunto. Sim, falaram comigo, inclusive. Eu expliquei que mal tinha reparado – estava cuidando das crianças, aquelas dentro da água. Mentira. Notei que os entusiastas, se pudessem, colocariam logo as mãos. (Não, não chegam a tanto. Quer dizer, com oferecimento explícito, sim...) Falam de si, contam vantagem. Mas são, em grande número, ex-atletas, por assim dizer. Seguem adiante com o olhar perdido e uma nostalgia de dar dó.

 

Pois: nos trinta, quarenta minutos em que fiquei parado feito um poste na beira do mar, um olho zelou pelos filhos e o outro observou a reação dos passantes para ele, à minha esquerda. De modo discreto ou ostensivo, parando ou seguindo adiante, raríssimas exceções, todos olharam para o pequeno balde plástico (fazendo a função de samburá) do pescador que estava adiante. Foi o que bastou para me convencer de quão fascinante e mágico é este objeto na beira da praia. Irresistível.

Vim de verso 1

VIM DE VERSO
 
AMOR PÓS-MODERNO

 
o eterno

começo

meio

a fim

7.2.08

Crônica número 250

 

INTERVALO COMERCIAL

 

Intervalo de almoço em uma empresa pública (ou privada, tanto faz). Cinco homens vão juntos ao banheiro, um deles com uma grande sacola preta de nylon ao ombro. Há uma discreta ansiedade no ar. Afinal, ali está a nova coleção de cuecas da Zorba. Entre uma urinada e a escovação de dentes, todos manuseiam as peças íntimas, comparando a qualidade, testando o elástico, comentando sobre as cores ou estampas. Um sexto rapaz entra no local e imediatamente se junta aos demais. Três dos cinco experimentam os modelos. Dois fecham negócio, pedindo para só depositar o cheque no dia 10. Ainda dá tempo para conferirem umas calcinhas e sutiãs rendados para as esposas, de lambuja no mostruário (quem sabe para o aniversário de casamento...). Saem do toalete prometendo avisar os outros colegas sobre a excelente coleção.

 

          Você não caiu nessa, não é? Forcei? É: creio que a cena descrita no primeiro parágrafo nunca aconteceu. Nem jamais acontecerá, seja com cuecas, meias, camisas, bermudas ou gravatas. Porém, na mesmíssima hipotética cena, se trocarmos os homens por mulheres e as cuecas por calcinhas, eu teria descrito uma passagem quase cotidiana da vida empresarial. Mesmo sem ter freqüentado o banheiro feminino em contexto além do imaginativo, suponho que o comércio seja uma das trezentos e cinqüenta e sete ações coletivas praticadas pelo sexo oposto quando a porta do toalete se fecha. E, ao final da história reescrita, uma mulher voltará do almoço com dois cheques para garantir uma renda suplementar para casa.

 

          Assim é a vida: enquanto os homens são dependentes confessos do salário ao final do mês, as mulheres se mostram ágeis e dinâmicas na busca de complemento de remuneração. No trabalho, elas compram e vendem de tudo: cremes ou loções de diversos os tipos, perfumes, bijuterias, roupas íntimas, utensílios domésticos, xampus, maiôs, shake para emagrecer, capas de almofada... A lista é grande demais para o espaço de uma crônica. Algumas fazem cursos e se tornam consultoras disso e daquilo. Aprendem rápido quem merece pagar em três vezes e quem só pode receber o produto mediante dinheiro vivo. Decoram as datas de aniversário da família e chegam ao requinte de fazer visitas a domicílio. Homens investem seus intervalos em discussões sobre se determinado time deve jogar em 3-5-2 ou 4-4-2, as vantagens dos motores 1.5 ou 2.0 para o uso misto (cidade e estrada), ou se a Sandrinha está mais ou menos gostosa depois de voltar das férias.

 

         Bom, estão certas as mulheres e certíssimos os homens. Elas nada mais fazem do que aproveitar nichos de negócios: vendem porque compram e vice-versa. Eles não se arriscam a passar vexame ao convidar os parceiros de futebol para dar uma olhadinha em uns cremes, sungas ou artesanato no vestiário, por melhores que estejam os preços. O máximo que vão conseguir é perder o lugar no time.

 

A única exceção que lembro era o Alfredo. Ele sempre partia para o trabalho com uma mala preta de rodinhas. Dentro, coleções completas de chaves-de-boca (milimétricas e de polegadas), chaves-de-fenda, Allen, chave-estrela, cachimbo, extensores, martelos, formões, plainas, lâminas importadas para serra. Mais: furadeira portátil importada, aparafusadeira elétrica, multi-teste, pequenos tornos de bancada, luvas, máscaras, óculos de proteção e outros tantos itens igualmente cotados. Depois do almoço, quando abria a mala, causava furor no escritório. Mas durou pouco: foi proibido pelo ortopedista depois de ganhar menos dinheiro do que hérnias de disco...

5.2.08

Achado não é roubado 1

ACHADO NÃO É ROUBADO
 
Lógica 
 

Povo ingrato: que são cartões corporativos depois de nos franquear o voto?