27.5.11

De onde?

Número 423

Rubem Penz

Você liga para uma empresa e pede para falar com alguém. Do outro lado, a moça pergunta quem deseja falar. Você se identifica. Aí vem a pergunta fatal: – De onde? É quando a porca torce o rabo. Ao menos comigo.

Em tais casos, sempre tenho a impressão de que serei vítima de uma triagem. Uma barreira instituída por escalões superiores para permitir apenas a passagem de assuntos relevantes ou, pior, pessoas relevantes. Uma espécie de filtro de linha para segurar impurezas corporativas. Ação que pode até ser louvável, mas raramente é aplicada sem imprevistos, pois está sujeita às falhas da subjetividade. E subjetividade, nos últimos tempos, poderia ser meu apelido.

É quando tento escapar pela tangente: dou meu nome completo, como quem sugere com polidez ser o suficiente ao destinatário. Funciona algumas vezes e tudo é resolvido com civilidade. Em outras, não: – Sim, mas "da" onde? – insiste a moça (coloco esta variante, com aspas, para agradar os sociolinguistas). Noto que será preciso oferecer mais informações, ou nada feito, e aquilo que era um simples telefonema começa a se complicar...

Dizer que é um assunto pessoal, mesmo sendo a verdade, é um desastre. Ou ela insiste em saber mais, o que beira a invasão de privacidade, ou passa a ligação e simultaneamente passa a imaginar coisas. Em ambos os casos tenho a impressão de estar prejudicando a pessoa com quem desejo falar. Quando opto pelo lacônico "é um amigo", também abro o flanco para as especulações, principalmente quando ligo para uma mulher – a mais libertina variação sexual é a presumida.

Mentir seria boa ideia? Houve um tempo em que foi moda identificar-se como o professor de balé (no politicamente correto, seria piada homofóbica). Mas isso pressupõe a intimidade dos parceiros de longa data. A maior chance para as mentiras, mesmo criativas, é a de não ser atendido – ponto para a triagem. Dizer que é do pronto-socorro (ou da Receita Federal ou da 5ª Delegacia de Polícia) pode até garantir atendimento, mas é brincadeira de mau gosto. Logo, mentir nem sempre é opção.

Excesso de sinceridade é outro problema. Usar o "de onde?" para detalhar elos, justificando-se, é patético e soa como quem vai pedir dinheiro emprestado: – Ele me conhece desde 1978, do colégio. Depois disso, namorei a irmã dele por dois anos e quase nos casamos, sabe? Ultimamente perdemos um pouco o contato, estive morando em Manaus, depois em Macapá, Porto Velho, Santa Cruz de La Sierra... Então, como estou de passagem pela cidade...

Enfim, nada melhor do que saber o telefone celular dos amigos. Porque só tem uma coisa pior do que cair nas garras inquisitórias de uma secretária: ligando para sua residência, ser atendido pela esposa. Ou (encrenca!) pelo marido:

Rubem??? Rubem de onde?


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19.5.11

Dia de faxina

Número 422

Rubem Penz

Quem um dia, durante a infância, não levou um chega pra lá da faxineira? Um chispa daqui, um vai procurar a tua turma? Essas profissionais pragmáticas lidam com um cronograma apertado: muitas tarefas a cumprir em pouco tempo. Também com a combinação nem sempre amistosa de movimentos amplos e objetos delicadíssimos. Logo, não encontram espaço para a diversão, para a criatividade ou mesmo para a poesia que uma sessão de limpeza parece oferecer.  Em outras palavras, faxina não combina com criança, por maior que seja a tentação de encontrar oportunidades quando a casa fica de pernas para o ar.

Uma sexta-feira de faxina e o exílio involuntário de uma menina no playground do edifício é justamente o ponto de partida do livro O mundo de Camila, Editora Projeto. Sua autora, Márcia do Canto, aproveita muito bem a situação para nos conduzir pelos caminhos do pensamento da protagonista. Através dele, revela o quanto uma criança está atenta ao entorno de si. Também nos faz notar uma sutil, porém determinante, diferença entre o perceber e o compreender: ancorados na certeza de que uma criança não compreende a complexidade das relações tecidas na sociedade, corre-se o risco de pensar que aos pequenos passam batidos os nossos conflitos. Então, surge a voz de Camila para revelar – denunciar? – o óbvio: tudo vejo, tudo sei, tudo sinto.

Um dos méritos da obra, no entanto, está em permitir ao mesmo tempo duas leituras sobrepostas. Às crianças, Camila diverte, encanta, conduz com leveza por sua rotina. A mão hábil da autora oferta um discurso atento e puro, muito próximo daquele que escutamos de nossos pequenos. A identificação por parte deles, com isso, é imediata. Por outro lado, lacunas deixadas com perspicácia induzem o leitor adulto a completar o que não está dito com tudo o que é possível ser compreendido. Aos pais, este livro oferece o dobro de páginas, escritas em um denso e reflexivo subtexto. Nada ali aparece gratuitamente, em todas as passagens surge o importante alerta de que estamos, sempre, expostos.

Tudo isso no livro inaugural da autora é alvissareiro, mas não gratuito. Márcia do Canto carrega consigo uma considerável bagagem. Atriz, produtora de teatro, rádio e TV, comunicadora e psicopedagoga, Márcia conduz com Ineida Aliatti desde 2007 o programa Alô Pai e Mãe, transmitido semanalmente pela Rádio FM Cultura (RS) e outras emissoras. Nascido para dar voz tanto aos especialistas (pedagogos, psicólogos, psiquiatras) quanto aos leigos (pais, mães, avós, tios), o encontro semanal diante do microfone tem se mostrado um grande fórum de debates. Mal comparando, as pessoas são convidadas para participarem de uma espécie de faxina nas relações familiares e sociais.

O mundo de Camila termina com a protagonista indagando se já não estaria na hora de voltar para casa para o almoço. Neste ponto, nós, leitores adultos, já fizemos uma limpeza em muitos conceitos. Resta saber se nossos movimentos amplos não partiram algum sentimento mais delicado. Ou se a casa permaneceu de pernas para o ar.


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13.5.11

Ex citante

Número 421

Rubem Penz

Caríssima ex,

É voz corrente que você costumava me citar a todo o momento. Estivéssemos em um grupo mais íntimo, sem a menor cerimônia vinha você e me citava. Na cozinha, na sala de estar, nos jardins. Na frente de estranhos, também. Até diante de uma platéia você dava um jeito de me citar. Eu? Nossa... Ficava muito envaidecido, é claro! E vermelho. Chegou um momento em que fazia até questão de frequentarmos eventos concorridos para ver você me citando na frente de todo mundo. Bons tempos.

Hoje, você diz que parou de me citar porque eu parei de lhe citar bem antes. Muito estranho. Jurava que lhe citava com assiduidade, desde a hora em que nos conhecemos. Aliás, quando começamos, acho que lhe citava sem parar! Ah, loucuras de quem só pensa no amor: um não tira o outro da cabeça... e cita desavergonhadamente. Você só pode estar enganada. No máximo, admito, se deixei de lhe citar, foi sem me dar conta do que fazia. Quer dizer, do que não fazia. Ou... Viu só: agora fiquei até confuso! Para vocês, mulheres, ou estamos lhes citando o tempo inteiro, ou não lhes citamos nunca mais. Sem meio termo: homens têm que citar suas parceiras e pronto!

Pensando bem, o que pode ter acontecido conosco é caso típico de calúnia e difamação. Muitas de suas amigas, desejando muito nos ver separados, podem ter espalhado a notícia de que citei outras mulheres por aí, quando não elas mesmas. E citei no trabalho, no clube, até na igreja. Mais: que citei ex-namoradas outra vez. E citar amores antigos por acaso é crime? Para mim são apenas boas lembranças, quase inocentes na medida em que o tempo vai passando. É citação à distância, enfim. Nada de grave. Não que eu esteja admitindo que seja verdade, me poupe! Suas amigas me citarem é uma coisa, colocarem palavras em minha boca é bem outra.

Para piorar nosso caso, noto você citando outros homens de maneira proposital e despudorada, principalmente quando sabe que estarei por perto. Já peguei você citando meu chefe, os colegas de pôquer, os pedreiros da esquina, o filho da vizinha. E citando de modo superlativo! Quando eu era o dono do campinho, até ficava orgulhoso quando você citava os homens ao redor, porque era assim que me citava também. Mas, a partir do momento em que faz questão de não me citar mais, é citando os outros que pretende terminar com a minha auto-estima.

Não sei por que ainda sofro. Já que tudo começou por você sentir que não lhe citava mais, mesmo quando eu achava que seguia lhe citando, farei questão total e absoluta de nunca lhe citar de novo. E, se citei agora nessa carta – contra a vontade! –, foi apenas para você saber o que perdeu.

Por fim, de agora em diante não me cite mais nem de brincadeira. É humilhante até para você ter um ex citado com saudade, ou um ex citado com malícia, ou um ex citado como piada. E citação depois de tanta mágoa é muita vontade de referir.


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6.5.11

Espelhados

Número 420

Rubem Penz

Nenhuma diferença entre os dois, dissera o corretor de imóveis, eles são absolutamente espelhados. Então o rapaz optou por alugar o apartamento 702. A mudança aconteceria em poucos dias. Para a moça da sala de espera, e que se ergueu enquanto ele se despedia satisfeito, não restou escolha. Porém, caso houvesse, teria mesmo ficado com o 701: 7+1=8, o número do infinito. Sorte. Também pressa – suas coisas já estavam a caminho, vindas do Espírito Santo.

Cruzaram-se novamente bem no meio do corredor do sétimo andar. Ele trazia nas mãos o tocadiscos Technics SL 1210 MK2, uma preciosidade. O grosso das coisas subiria pelo elevador de serviço. Ela levava consigo algumas pastas com trabalho e uma expressão de noite mal dormida. A famosa cara de poucos amigos. Nem bom-dia, nem olá, nem ao menos um oi.

Ao cair da tarde, diante da janela, enquanto ele se deixava impressionar pela nova paisagem ao som de Aretha Franklin, Natural Woman, uma luz estranha acendeu à suas costas. Entrava através porta do banheiro, invadindo a sala de estar. Foi conferir e, para grande espanto, ali estava a mesma moça da manhã com o olhar fixo para ele. Bem do outro lado do grande espelho que ocupava toda a parede sobre a pia. Ele abanou, fez uma careta, dançou para ela que, alheia, apenas conferia as próprias olheiras. Absolutamente espelhados, lembrou. E sorriu.

Maravilha! It's cool, diria se fosse personagem de comédia romântica. Acompanhou um xixizinho, o lavar das mãos e, quando ela apagou a luz, ao partir, o reflexo original voltou para o espelho, ainda que fugidio em razão da penumbra. Ele tratou de acender suas duas luzes: a do teto e o spot do espelho. Tateou, percutiu, quase encostou o rosto para ver se havia algum truque. Normal. Anormal. Sensacional!

Eram dias muito ocupados e noites com ainda mais interesses para conferir. Ele, satisfeito com a paisagem, nem fazia muita questão de encontrar a bela vizinha pessoalmente. Ainda mais que ela estava sempre com aquela cara de me deixa só e não perturba. Tão linda e asseada, mas fria como o toque no vidro. Seria timidez ou soberba? Chegou a forçar um esbarrão na garagem, entre os carros, esperando o enunciado: você não se enxerga no espelho? A resposta na ponta da língua – Não!

Desde o princípio, também, ele desconfiou que o efeito espelhado pudesse acontecer de lá para cá, cuidando para não fazer algo que viesse a chocá-la. Ao contrário, caprichava nas poses, caras e bocas como se estivesse participando do mesmo Big Brother que tanto o distraía. Resolveu usar e abusar do artifício da nudez. Entretanto, nada de ela o perceber, logo ele que tinha tanto orgulho de seus dotes. Nem bom-dia, nem olá, nem ao menos um oi.

Quando ela partiu, e mal transcorrera o ano de contrato, ele foi incansável ao batalhar por uma chave do 701. Precisava muito saber se era visto pela vizinha, dúvida atroz. No grande espelho sobre a pia, escrito com batom vermelho, adeus.


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