28.10.11

Para ser infeliz basta pouco

Número 445

Rubem Penz

Engana-se quem pensa que é preciso muito para ser infeliz. Ao contrário, a infelicidade está ao alcance de todos, sem medir classe social, idade, sexo, credo ou nacionalidade. Também independe de prática ou habilidade, não exige formação técnica nem superior, pré-requisitos ou apadrinhamento. Por fim, constitui direito de todos sair em busca da desventura.

Para começo de conversa, é consenso que a infelicidade está nos pequenos gestos: a falta de um sorriso aqui, o virar de costas ali, o silêncio acolá. Não procure a infelicidade longe, pois ela pode estar bem ao seu lado. Basta reparar na carranca que lhe brindam a todo instante, seja por algo que você deveria ter feito (e não fez) ou por aquilo que realizou sem perfeição. Os motivos para ser infeliz podem chegar ao acaso – por exemplo, quando o garçom confunde seu pedido. Ainda planejadamente, como no caso do diretor que tudo faz para abiscoitar os méritos nascidos de seu trabalho.

O trânsito da cidade grande também pode vir a ser um manancial inesgotável de infelicidade – é preciso estar atento. Duvido que, ao menos uma vez durante o dia, alguém deixe de cruzar na sua frente sem dar sinal. Então, utilize essa oportunidade para ficar de mal com a vida! Faça mais: persiga-o e dê o troco. Caso tenha acontecido por mera distração, você aproveitará para fazer com que os dois sigam infelizes, num processo contínuo e crescente de frustração coletiva. O errado é esperar pelas colisões para morrer de raiva: para o bem de todos – ugh! – elas não acontecem com tanta frequência assim.

Família e infelicidade podem ser parceiros. Comece culpando seus pais por tudo o que tenha dado de errado em sua vida. Mas não fique por aí: diga isso para eles tão logo surja a primeira oportunidade. Além de lhes causar grande tristeza, você será brindado com doses elevadas de desgosto para gerir – muitas vezes tão escondidas que nem cinco anos de análise serão capazes de desvendar. É quando vem o melhor: ao descobrir que os pais fizeram das tripas coração para deixar você contente, e que sua ingratidão lhes consumiu os últimos dias de saúde, a infelicidade será sua companhia diária para o resto da existência!

No casamento, ser infeliz é mais fácil do que parece. A união de dois estranhos, somente propiciada pela cegueira da paixão, promete muitos anos de abatimento. Para tanto, use a intimidade que só a aliança carnal permite com o objetivo de conhecer os pontos frágeis do outro, guardando tudo em um paiol de mágoas. Desde a primeira crise, atire sua munição sem dó nem piedade, provocando o movimento igual em sentido contrário. Assim, ambos terão para si muitos ressentimentos na memória, reciprocidade ideal para fazer crescer a conta bancária dos advogados. E o mau humor será a viva herança deixada para os filhos.

Mas não se engane: se o que foi dito até agora induz a pensar que precisamos dos outros para alcançar o fundo do poço, saiba que não. Não, mesmo! A maior infelicidade está contida na solidão. Explico. Ao fazer de tudo para afastar quem lhe deseja o bem – pais, filhos, cônjuge, amigos, colegas –, e tendo o isolamento como consequência, a infelicidade estará mais do que garantida: será só e plenamente sua, sem que precise dividir com mais ninguém! Não é o máximo?

Agora, se com isso tudo você ainda teima em ficar contente com a vida, aí fica difícil de eu ajudar. Daqui a pouco irá até imaginar que se pode ser feliz com mínima dose de paciência, dignidade, carinho e respeito, e que tudo mais chega ao natural. Olha que horror: já posso ver um leve sorriso nascendo em seu rosto...


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26.10.11

Convite especial

Convido os leitores do Rufar dos Tambores para prestigiarem o lançamento da antologia
Santa Sede - crônicas de botequim, Safra 2011.
Um trabalho maravilhoso que tenho o prazer e a honra de conduzir,
revelando grandes talentos no gênero.


Dia 06/11, 18h, no Memorial do RS, Térreo
durante a 57ª Feira do Livro de Porto Alegre

Dia 09/11, 19h30, no Boteco Matita Perê,
Rua João Alfredo, 626, Cidade Baixa, Porto Alegre
(local onde desenvolvemos o trabalho)


21.10.11

Verdadeiro ou falso?

Número 444

Rubem Penz

(  ) 1. Os organizadores de provas olímpicas decidiram modificar a cerimônia de premiação: agora, desde o momento que o atleta passa para as oitavas de final, cumprirá uma cerimônia completa com direito a pódio, hinos, medalhas, louros, festa e fotos. Sabe como é – se ele desistir de competir na próxima prova, não perderá a oportunidade de ser homenageado. Depois, ao galgar as quartas de final, tudo se repetirá. E outra vez na semifinal. Por fim, na final.

(  ) 2. Os pais decidiram modificar as comemorações de bodas para seus filhos: quando anunciarem namoro, será preparada uma festa de gala para toda a família e amigos. A menina entrará na Igreja vestida de branco, o menino esperará no altar com fraque e alguns colegas de aula estarão ao lado cumprindo o papel de padrinhos e madrinhas. Um padre abençoará o namoro. Sabe como é – se eles desistirem um do outro, já terão um álbum completo para recordação. Caso resolvam noivar, tudo se repete. No casamento, outra vez: igualzinho.

(  ) 3. O cerimonial da República decidiu mudar as regras de posse da Presidência: quando o partido decidir pelo candidato nas prévias, ele já subirá a rampa do Planalto acompanhado do cônjuge e da comitiva. Lá, receberá a faixa do titular e poderá proferir o seu discurso. Se chegar a desistir do pleito, terá o gostinho de uma tomada de posse para recordação. Caso avance para o segundo turno das eleições, tudo se repete. Vencendo, igual.

(  ) 4. Muitas escolas de classe média, média alta e alta decidiram turbinar as regras das formaturas: agora, ao cabo do Ensino Fundamental, impõem aos pais o custeio de uma cerimônia de colação de grau quase idêntica ao Ensino Superior. Azar que todos se encontrarão logo depois das férias no Ensino Médio, quando há planos de outra formatura – ou alguém supõe que essas crianças vão interromper os estudos aos 14 anos?

Respostas: 1 F; 2 F; 3 F; 4 V

Sim, a primeira questão é falsa. As regras seguem inalteradas: para merecer o pódio, todo atleta deve cumprir as etapas classificatórias e, mesmo na final, estar entre os três melhores para ser festejado. Claro que chegar até uma Olimpíada é um grande mérito. Mas nem todos alcançam os máximos louros.

A segunda questão também é falsa. Véu e grinalda ficam reservados para as noivas de verdade. O menino simpático que está namorando sua filha merece acolhimento e atenção. A rica menina que encantou seu filho fica ainda mais querida frequentando sua casa. Mas, nem por isso se deve convencer o padre a fazer uma cerimônia antes da hora.

A terceira, igualmente, é falsa como uma nota de R$3,00. Ao vencer as prévias, o candidato festeja. Se passar para o segundo turno das eleições, festeja mais (e começa a articular aquilo que se convencionou chamar de "alianças políticas", intenções tão límpidas na nascente, quanto poluídas na foz). Só mesmo ao ser eleito subirá a rampa do Palácio da Alvorada.

Por mais estranho que pareça, a quarta questão é verdadeira. Já passei por isso e escuto queixas de pais cujos filhos terminam agora o Ensino Fundamental. Na época, fui voto vencido quando propus apenas uma festa – o que realmente interessa para a meninada. Soube que, agora, chegaram a hostilizar famílias que decidiram não compactuar com a cerimônia despropositada e desproporcional.

Devemos estar errados: vou lançar a ideia de pódio para todo competidor, chuva de arroz na escadaria da Catedral para namorados, faixa e juramento para os candidatos à Presidência. Vai pegar: ninguém mais parece capaz de contrariar absurdos.


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14.10.11

Meu álbum de carinhos

Número 443
Rubem Penz
Cresci em um lar amoroso. Sou grato ao destino por isso, e seria injusto ter queixas de minha infância. Havia um zelo extremado para que nós, crianças, crescêssemos pessoas educadas, responsáveis, ordeiras e solidárias. Cristãos no sentido amplo do termo, homens e mulheres capazes de exercer plena cidadania. Entre os óbvios beijos, abraços e palavras de incentivo, havia outras demonstrações de afeto, ou comprovações de proximidade, nem sempre fáceis de ser compreendidas. Abaixo, alguns exemplos:
Sorteio de tapa – Quando estávamos impossíveis, nos batendo, implicando, bagunçando (ou tudo isso ao mesmo tempo) no banco de trás do Opala da família, depois do quinto pedido para que parássemos e a ponto causarmos um acidente por prejudicar a atenção do motorista, o pai praticava aquilo que chamávamos "sorteio de tapa": sua mão voava para nossa direção sem que ele tirasse os olhos da estrada. Em quem pegasse o safanão, ou onde, não importava muito – estaria bem dado. Funcionava como uma mágica. Certamente preveniu muitos acidentes de trânsito.
Puxão de orelhas – Forma extremamente persuasiva de conduzir uma criança daqui para ali, fazendo com que o foco de sua atenção esteja voltado apenas para a obediência. Nenhuma bailarina do Municipal apresentou tanta leveza para andar na ponta dos pés quanto eu, logo depois de estourar a paciência da minha mãe. Também era uma lição perfeita e acabada da relação entre causa e efeito, cuja aplicação acontecia sempre por minha causa e, em mim, surtia efeito imediato. Rapidamente descobri nas feições da mãe a indicação de que desejava me aplicar novos puxões de orelha, e eles nem precisavam mais acontecer para eu atendê-la.
Beliscões – Recurso predileto de minhas irmãs para convencer-me de que estava lhes causando algum incômodo, com uma obviedade epidérmica. Contra sua aplicação, estava a necessidade de elas estarem próximas o suficiente para aplicá-los – algo que eu evitava de modo diligente. A favor, uma rara discrição: tapas e socos são espalhafatosos e barulhentos; mordidas costumam deixar marcas (assim como os arranhões), e puxões de cabelo funcionam melhor entre meninas, graças à fartura de material. Tinha o beliscão grosso (espremendo muita pele entre os dedos) e o fininho (aplicado com as unhas).
Caneladas – Espingardas de chumbo, canivetes e botas ortopédicas. Essas três armas perigosas povoaram minha infância e estão em desuso. As primeiras por consciência pedagógica. A terceira, substituída por palmilhas adaptadas aos calçados normais. Eu tinha uma espingarda e uma coleção de canivetes, mas não usava contra seres humanos. Porém, as botas ortopédicas do caçula deixaram minhas canelas roxas. De tanto praticar o chute na busca de resolver a seu favor nossas diferenças, ele se tornou o único craque de futebol da família.
Óbvio que eu também submeti meus irmãos às minhas manifestações de carinho – em meio a tanto amor, até voaram objetos. E acomodo essas trocas de afeto nas páginas mais importantes da memória: sem nos gostarmos, sem união verdadeira, na certa guardaríamos mágoas de alguns episódios. Quando escuto testemunhos de pessoas que jamais bateram ou apanharam dos irmãos, ou de filhos cujos pais nunca levantaram a mão para castigar, acho muito bacana. Impressionante, mesmo! Porém, perdoem-me alguns teóricos: meu álbum está mais completo.

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7.10.11

Não é, Noé?

Número 442
Rubem Penz
A extensa planilha Excel de Noé contabilizava as últimas formigas, carrapatos, pulgas e – perigo! – cupins. Tinha fé de que os ácaros haviam embarcado nos pelegos que acomodariam os bichos para dormirem com mais conforto. O barco, robusto e colossal, equilibrava-se nas estacas sobre o solo seco. No ar, junto com a poeira que subia nos redemoinhos da pré-tempestade, pairavam dúvidas sobre a origem e o preço da madeira utilizada. O sábio homem à porta da embarcação desligou o laptop, armou-se do cajado e bradou:
– Superfaturado, mas bem no prazo! Que as águas purifiquem a alma dos outros!
A parede de chumbo sobre o horizonte havia transformado aquela manhã em um quadro impressionista. Trovões percutiam a ira de Deus. Raios cruzavam os céus, ameaçadores. Eis que surge na clareira que abrigava a Arca a figura esguia de Suelen, eriçando os pelos do braço da esposa de Noé, ainda em terra. Segura como uma Gisele Bünchen sobre a passarela, a moça cruza na frente da família. Sobe a rampa tão elegante quanto resoluta – nem FHC, nem Lula, Collor ou Dilma o fariam com tamanha propriedade. E, atrás dela, fecha-se a porta.
E o Homem escolhido pelo Criador para salvar o mundo do pecado toma seu posto na proa, altivo e orgulhoso, de mãos dadas com a viçosa mocinha. A esposa, atônita, grita lá de baixo:
– Noé, que fazeis aí em cima com essa sirigaita?
– Partirei com as águas! Essa é a Arca que preservará as espécies, contendo casais aptos à reprodução, como Deus mandou!
– Tendes ideia do tamanho do pecado que cometeis ao deixar vossa esposa e vossos filhos para trás? Esperais a clemência Divina, herdeiro de uma quadrúpede manca?
– Não temais por mim, fiel e valorosa mulher! Vi uma brecha na lei: tecnicamente, já sou viúvo, é uma questão de minutos. Desposarei Suelen enquanto navegamos guiados pela mão do destino.
Ventava muito naquela altura do campeonato, deixando o diálogo cada vez mais difícil. As últimas palavras de Noé para sua esposa foram algo como vou entrar antes de a chuva estragar a escova progressiva de Suelen, ou coisa assim. A preterida seguiu gritando impropérios até a água lhe cobrir queixo, silenciando-a em borbulhas. Enquanto isso, o velho planejava o Cruzeiro com a nova companheira, iluminados por castiçais e bebericando Romanée-Conti.
***
– Pai, a vovó já me contou essa história, e ela não é assim.
– Quem nos garante, hein? Quem nos garante?
– Noé sobe na Arca com a família dele, pai. Não inventa. Nem tem nada de superfaturamento, ou Suelen, ou brecha na lei...
– Infelizmente tem, meu filho. Sempre... Vou apagar a luz. Durma com os anjos.

***
– Romualdo, precisamos combinar umas coisinhas...
– O que foi agora, Beatriz?
– Você fica proibido de assistir o noticiário antes de colocar o Júnior pra dormir, ok?

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