25.12.08

297

REPETÊNCIA

Fazemos o mesmo. O mesmo. Sempre o mesmo.
Qualquer alteração, a qualquer tempo, virá diferir.*

Falei para ele: repetir o ano é o fim. A pior viagem. Inadmissível. Abala nossa auto-estima, destrói a gente por dentro. Estraga o Natal, arruína o Reveillon, mata o ânimo para nossas férias. E pouco me importa o que os outros possam estar pensando. Não é isso que conta. Para mim, a opinião de terceiros, nessa e em qualquer hora, é irrelevante. Minha preocupação é de foro íntimo: as conseqüências da repetência para a vida toda. Sim, pois cada vez que repetimos o ano, é como se o perdêssemos para sempre. Passado.

Falei para ele quando estava em tempo. Sei lá, ainda no começo de outubro, tivemos a oportunidade de tocar no assunto pela última vez. De lá para cá se passaram quase dois meses. Tempo hábil para alguma providência. Sobrando. Tem gente capaz de virar a vida do avesso em sessenta dias! E aí pergunto: o que ele fez? Nada. Certo, nada é exagero. Digamos que nada com relevância para, quem sabe, salvar o ano. Nenhuma atitude afirmativa. E acho que qualquer ação, por menor que fosse, poderia ter dado resultado. Mas não: se ele fosse um carro, teria ficado na banguela. Ou com o motor desligado. A direção, parada. Freio de mão puxado. Agindo assim, só andaria em caso de tornado. Ou enchente, Deus me livre!

Falei, mas ele nem ligou. O pior eu nem te conto: isto sequer está acontecendo pela primeira vez. Sim, daí o meu desespero. Ele já perdeu o ano antes e nem assim toma providências. Repetir virou rotina. Todo mundo avançando e ele lá, marcando passo. De bobeira. Engessado. Satisfeito em fazer tudo outra vez, outra vez, mais uma vez, igualzinho. Todos se ocupando com novidades, conhecendo mais, aprendendo, criando. Olhando para trás com aquela boa sensação de dever cumprido. Cansados, é certo. Uns meio esgotados. Poucos à beira de um ataque de nervos. Mas nem esses últimos em estado tão deplorável quanto ele. É de dar pena.

Antes, em outra ocasião, havia falado sobre piedade. Afinal, posso não ligar para o que os outros pensam. Ele pode não ligar para o que os outros pensam. Mas é impossível controlar o sentimento alheio. Quando despertamos pena, é quase como se estivéssemos deitados no chão. Nocauteados. O árbitro avançando indelével na contagem e nos faltando pernas para levantar. Um lutador pode passar por essa situação: é do jogo. Mas um ser humano não pode assumir essa condição para a vida. Atinge a si e a todos que o amam. Aliás, fica difícil amar quem não se ama. Mais fácil se afastar, negar o problema na esperança de que seja resolvido em um passe de mágica. Repetir o ano, penso agora, é preparar a poção e não ter o feitiço. Puf!

Falei para ele: para o ano que vem, chega de repetência. Ele me olhou com ares de reprovação. É muito dolorido mostrar justo para ele o que é certo ou errado. Esperar dele uma reação. Lembrá-lo que já foi diferente, produtivo, vivaz, sensato. Exemplo de vida! E agora, de um tempo para cá, irreconhecível. Não cogito uma vida de aventuras. Mas, nenhum livro? Nenhum passeio diferente? Nenhum novo amigo? Nenhum novo assunto? Isso que está acontecendo é uma eterna repetição de horas sem serventia, sem encantamento. Sem vida! Quem sabe um hobby? Um animalzinho para se sentir responsável? Faz tempo que dou a idéia de um curso diferente, para o qual tivesse talento. Em vão.

Não sei mais o que faço com meu pai.

*Do poema intitulado Em diferenças, que não considero pronto.

18.12.08

Número 296

PRESÉPIO NÃO TEM SOGRA

Dia desses, com a família, eu participava de um almoço de confraternização natalina entre amigos, quando a conversa fluiu para a tradição à mesa. Não para menos: apreciávamos um magnífico bacalhau na casa de um angolano de nascimento, casado com uma brasileira com raízes igualmente portuguesas. A arte culinária serviu de pretexto para muitas histórias, algumas emocionantes. Ato contínuo, os convivas abriram um tipo de concurso para noticiar especialidades de panela, cada qual fazendo a propaganda de seus dotes. Como não estávamos entre cozinheiros profissionais, muitos dos pratos procediam da singela herança familiar, mantendo a tradição no cardápio. E, quase todos, com receitas passadas de mãe para filha.

Todavia, por mais envolvente que estivesse nossa conversa, faltava para ela algum tempero capaz de transformar o almoço em crônica. Uma angústia chegando a ser indigesta, pois eu sentia no ambiente o aroma de um bom texto. Eu quase o via entre uma baixela com salada e outra de arroz. Escutava-o no tilintar das taças de cristal. Intuía guardado para a sobremesa. Crônica de Natal, conforme meu apetite dezembrino. Ingrediente que chegou, ufa!, com uma constatação lapidar de uma doce senhora que estava entre nós. Dona Terezinha. Pois ela e o marido Édio tiveram apenas filhos homens. Disse, então, e até com uma certa revolta, que desistira de passar suas receitas adiante. Resumiu: não ensino mais nenhum prato para minhas noras – elas modificam-nos.

Soaram os sinos pequeninos, sinos de Belém. Por natais e natais, durante muitas e longínquas eras, foram – são – as filhas mulheres as encarregadas da continuidade do legado materno. A elas cabe o privilégio, o dever e o direito de levar adiante as receitas de sua família. As noras, contaminadas que são por suas próprias influências, destinadas a manter o tempero de suas mães, jamais perderiam a oportunidade de marcar a diferença. Ainda mais que, em se tratando de algo tão íntimo como o alimento, igualar o pudim que fez o encantamento oral do marido em seus anos de infância é impossível. Covardia, até. Por isso, sogras elegantes, justas, jamais deveriam abrir concorrência com suas noras. E noras inteligentes devem estar atentas para essa armadilha.

Imagino, também, que o dilema de dona Terezinha ganhou novos ingredientes com a mudança dos tempos: as moças de hoje brilham – e muito – nas mais diversas áreas do conhecimento. Mas em bom número tendem a ser meio opacas na cozinha, levando à mesa refeições cada vez mais práticas e menos artesanais. Logo, não demonstram o menor interesse em, por exemplo, apurar o molho durante muitas horas, atribuição tranqüila para quem era dona de casa. Por outro lado, em muitos lares, são os rapazes os novos comandantes do fogão. Quem sabe a queixosa senhora esteja perdendo a oportunidade de manter seu legado por não enxergar o óbvio: deve ensinar os pratos de família aos filhos homens! Aqueles mesmos que já transportam adiante a habilidade do pai defronte a uma churrasqueira.

Tudo isso me fez recordar do presépio, uma das mais tradicionais imagens de Natal. Lá estão pai, mãe e criança. Ao redor, pastores e seus animais. Para breve, a chegada dos Reis Magos. Um anjo paira acima da gruta. Zero parentes. E as avós? Não seria o caso de alguma vovó dar uma mãozinha naquele momento tão delicado? Parece, mas não consta nas Escrituras, que ninguém da família de Maria podia acompanhar a moça grávida, quase parindo, na urgente fuga da insanidade de Herodes, o Grande. José, solícito, tratou de convidar sua mãe. Mas ela própria, a sogra da Virgem, torcera o nariz. Desde o advento do Pessach, em que as duas divergiram feio na receita do Charosset, a velha duvidava que Maria fosse assim, sei lá, tão santa.

O mar está para peixe


O mar está para peixe:

Convido vocês para conhecerem minha nova parceria com Eduardo “Dudu” Penz, postada no site da cantora Anne-Florence Schneider, www.myspace/donaflormusic. Em frente ao mar soma-se aos temas Amor platônico e Sambou, tá novo, também disponíveis para audição. O sotaque de Florence é um charme a mais...

11.12.08

Número 295

CONSERVADOR RADICAL

Das tantas possibilidades de classificação dos homens em diferentes grupos – gordos ou magros, fiéis ou disponíveis, otimistas ou informados – uma delas é fazê-lo entre radicais ou conservadores. Difícil, mas necessário, é saber se você é um radical nato, talhado para suportar as exigências que as atitudes extremas impõem, ou um conservador sem noção do perigo. Da mesma forma, é muito útil investigar o dom para a ponderação, pois um radical na condição de “murista” pode quebrar a cara por não ter, no DNA, o equilíbrio necessário para se manter neste patamar. Para isso existe a juventude. Veja o meu caso como exemplar.

Durante toda a minha vida fui convidado a flertar com o perigo. Já me propuseram parceria em aulas de pára-quedismo, mergulho submarino, alpinismo, rafting, kitesurf. Já estive perto de topar envolvimentos com mulheres malucas, sociedade com golpistas, transas sem preservativo, carona de estranhos. Também não foi por falta de oportunidade que levei uma vida distante das drogas ilícitas, dos rachas de automóvel, dos pastéis de rodoviária, dos sogros violentos, da filiação partidária. Aprendi a recusar educadamente: não é para mim. Tudo porque fui vacinado na juventude com passagens radicais mal sucedidas, das quais sobrevivi com poucas seqüelas – mas muitos ensinamentos. Como a memorável passagem pelo tobogã.

Foi em Florianópolis. Devia ter meus vinte anos. Até aquele momento, olhava com desconfiança para o tal brinquedo de parque. Se por um lado ele me prometia segundos de velocidade e emoção, por outro dava margem a muitas possibilidades. Já naquela altura, reconhecia no meu destino a ação constante do improvável, o ímã do infortúnio, o pendor pelo ineditismo. Porém, estava de namorada nova, que pedia a minha companhia para tal passagem. Éramos, os dois, toboganicamente virgens. Eu – óbvio! – não confessei a lacuna no currículo para a menina. Vesti a armadura dos homens vividos e sustentei a pose de encorajador.

Estávamos em dois casais. Pagamos o ingresso e partimos em busca de grandes aventuras. Nossos amigos, experientes, foram primeiro. Lá de baixo, sorriram para nós. E chamaram: venham! É delicioso! Minha namorada quis desistir. Seria vexatório naquele momento. Eu, acreditando na armadura metafórica, propus tutela: desceremos juntos, lado a lado, minha donzela. Dê-me a mão, Branca de Neve. Seremos felizes para sempre na contagem de três. Um, dois...

No três, ela fincou o pé. E desistiu sem soltar a minha mão. Só que eu partira. Resultado: quando livre, deixei o ápice da montanha deitado, sem equilíbrio, até meio de viés. Na primeira ondulada abandonei o contato com o solo e, a partir dali, devo ter pousado umas três ou quatro vezes, a cada uma de forma mais desengonçada. O que sobrou de mim, chocou-se com violência nos sacos de areia do final da pista sob o som de aplausos. Os pés estavam para cima. Se fosse um desenho animado, o tapetinho chegaria logo depois, encostando em minha cabeça com segundos de atraso. Como era a vida real, quem chegou na seqüência foi a namorada, que escutara do funcionário a orientação de jamais – jamais! – deitar-se no tobogã, para não abusar da velocidade.

Como disse, podemos dividir as pessoas em radicais ou conservadores. No meu caso, evitar o radicalismo é questão de conservar a integridade física e mental. Sou parceiro para uma partida de vôlei, xadrez, par-ou-ímpar. Topo relacionamentos estáveis e duradouros, misto-quente na rodoviária, voto secreto. Viver no Brasil já garante uma dose quase inadmissível de incertezas. Sou um conservador radical porque, fora de eixo, saio invariavelmente esfolado. Assombra-me o fantasma do tobogã.

4.12.08

Número 294

ULTIMATO

Enquanto penso, contrações involuntárias – mas não menos precisas – se ocupam em manter a musculatura postural com o tônus adequado para a posição de equilíbrio em que me encontro, de pé, ereto. Trabalham em um sistema de economia de energia: não tenho câimbras nem desabo ao chão. Há uma certa pose.

Enquanto penso, minhas pálpebras disparam piscares ocasionais na medida em que os olhos pedem um pouco de lubrificação. As pupilas se contraem e dilatam para ajustarem-se à luz do ambiente. Adrenalina. Nenhum movimento escapa de minha vista: nem mesmo aquele captado pela visão periférica. Permaneço atento.

Enquanto penso, o diafragma e os demais músculos auxiliares da respiração nem cogitam suspender seu ofício. Os pulmões, inundados de ar a cada onda respiratória, tratam de cumprir sua função de reter o oxigênio para, via corrente sangüínea, contemplar cada uma das células do corpo. Tudo no devido tempo. Ainda vivo.

Enquanto penso, movimentos peristálticos transportam lentamente aquilo que fora antes chamado de almoço por todos os muitos metros de intestino. Estão sendo absorvidos os nutrientes para, em algumas horas, ser descartado o restante. Antes disso, os esfíncteres estarão sob controle de um piloto automático – este que é responsável, entre outras atribuições, por não me fazer passar vergonha. Me controlo.

Enquanto penso, minhas unhas crescem, minha barba cresce, muitas células nascem e morrem. Alguns fios de cabelo caem. Pior: fora de qualquer previsão, uns caem para sempre. Outros, nossa!, antes escuros, estão nascendo brancos. Minha estatura diminui frações de milímetro a cada dia, vítima da implacável força gravitacional. Envelhecerei?

Enquanto penso, o coração compõe um número finito, mas indeterminado, de contrações. É uma ampulheta girada ainda no útero materno, escorrendo a areia da vida de grão em grão, sem volta, sem piedade. Se houvesse silêncio, escutaria suas batidas, teria consciência de seu ritmo, saberia de sua urgência. E nem assim faria muita diferença. Pulso. Repulso.

Enquanto penso, tudo em mim tem uma razão de ser, de estar e de acontecer, independente de meu raciocínio, ou mesmo apesar dele. A saliva continua brotando em minha boca (engulo), a cera em meus ouvidos, o suor na pele, diversos mucos. Mas essa não é a boa ou a má notícia. Quem quer saber?

Enquanto penso, tu me olhas com ar inquisitório, almejando algo mais do que uma existência instintiva, medular, peristáltica – justo essas que agora se mostram. E a lágrima que nasce não será capaz de saciar a sede das tuas expectativas. É isso que agora penso. Penso, também, que o ácido a me arder o estômago é uma resposta insuficiente, pois apenas eu o noto. E que ruborizar será pouco.

Enquanto estou em teu mirar (enquanto penso), meu silêncio aquece a arma que tens na mão. Comicha o dedo que está no gatilho. Agrava nosso impasse. Enquanto tudo no meu corpo funciona à revelia do pensamento, dispensando-o, paradoxalmente, o corpo depende mais do que nunca do que passa em meus pensamentos.

Enquanto penso, tu não pensas.

Luto.

27.11.08

293

TER OU NÃO TER

Parece ser consenso o fato de a classe média estar voltando a ser mais representativa no Brasil. Ainda bem, dirão os economistas, pois ela é o motor do crescimento econômico. Para eles, países desenvolvidos são marcados por ampla predominância desta fatia no prisma social. Ainda bem, dirão os governantes, já que a classe média é a vítima primordial dos impostos e, aqui, “fatia” ganha a conotação mais alimentícia para o apetite público. Segundo pude apurar em declarações recentes, estudiosos de economia e políticos divergem apenas na hora de classificar alguém como pertencente à faixa intermediária de consumo e renda. Na falta do número definitivo de salários mínimos para enquadrar determinada família na classe média, proponho uma classificação semântica: ricos e pobres são classes “e”. Os médios pertencem à classe “ou”. Explico.

Os ricos costumam morar em casas (apartamentos, coberturas, chácaras) amplas e localizadas em endereços considerados nobres. E são eles, também, os proprietários dos carros luxuosos e importados, quase nunca solitários nas espaçosas garagens – a regra costuma ser um para cada componente da família. E são ricos os melhores clientes de agências de turismo, hotéis e companhias aéreas. E as joalherias e as butiques e as escolas particulares e as casas de espetáculo e os restaurantes da moda e uma infinidade de comerciantes e prestadores de serviços são sustentados pelo estilo de vida dos ricos. Enfim, os ricos têm isso “e” aquilo. Fazem isso “e” aquilo. Freqüentam esse “e” aquele lugar.

Os pobres, ao contrário, habitam as mais modestas residências das cidades – algumas, inclusive, que nem mereceriam esta classificação: casebres localizados na periferia, em áreas invadidas, favelas e vilas populares. Pobres andam apenas de ônibus e trens e de bicicleta. Conhecem cidades charmosas pela TV – tela que os apresenta para hotéis, parques, aviões; praias de água cristalina e montanhas nevadas. Têm os filhos nas escolas públicas e têm direito às cestas básicas e recebem doações de roupas e freqüentam lazer gratuito e trabalham nos postos menos qualificados das empresas e são os clientes do mercado informal – o qual, muitas vezes, o compõem. Logo, aos pobres falta galgar quase todas as conquistas da civilização “e” tudo mais. Uma soma repetida de carências.

E a classe média? Bom, diferente dos que não precisam escolher e dos que não têm escolha, ela é a classe do “ou”. Ou moram em uma boa e bem localizada casa, ou guardam um carro de luxo na garagem. Ou conservam os filhos em escolas particulares, ou passam uma temporada por ano conhecendo o mundo. Ou se vestem com roupas de grife, ou estacionam no shopping um carro acima de mil cilindradas. Ou vão ao show do cantor famoso, ou mais de duas vezes por mês em restaurantes. Ou pintam a casa, ou trocam de carro. Ou são sócios do clube, ou pagam a prestação da casa na praia. Ou presenteiam a filha com uma festa de quinze anos, ou lhe proporcionam uma viagem. Ou se esfolam para pagar a faculdade dos filhos, ou já se esfolaram para que o jovem apenas estudasse – bastante – para passar em universidade pública. Ou, ou, ou, em infinitas combinações.

Assim fica fácil de saber se você, leitor, é de classe média: meça o quanto de sacrifício contém cada uma de suas conquistas. Toda vez que estiver abrindo mão de muitos hábitos ou algum patrimônio para galgar um objetivo mais elevado na escala de valores, estará honrando o pertencimento à Associação Permanente Trapezistas do Orçamento (APERTO), cuja bandeira se parece com um cobertor curto. A boa notícia é a enorme satisfação contida em cada esforço premiado. A má notícia é que, quando alguém de classe média alça uma vitória sublime (casa boa, carrão, temporada em Paris), acaba sendo rotulado de rico pelos pobres, e de inconseqüente pelos abonados. De uma forma ou de outra, parecerá viver uma ilusão. Para concluir, me sirvo da grande definição de classe “ou”, que até onde sei não foi cunhada por economistas ou políticos, e sim pela minha esposa: “classe média é aquela que sabe o que está perdendo”. Ou você tem uma melhor?

20.11.08

Número 292

AS TRINCHEIRAS DA ETERNIDADE

Múltiplas obras de ficção, tanto de literatura como adaptadas ao cinema, projetam um futuro aparentemente sombrio: homens despidos de suas conquistas tecnológicas e sujeitos, outra vez, às forças hostis da natureza. Quem imagina que tais presságios são fruto de autores ressentidos com os rumos da sociedade, protestando em delirantes brados de alerta, engana-se feio. Escritores são, especialmente, bons observadores. Percebem, assim, a transitoriedade do homem – que se julga tão poderoso – e a força da natureza, eterna em sua capacidade de recuperação.

Para a confirmação desta tese, proponho um exercício prático: escolha um pedaço de chão de qualquer tamanho e faça o mais caprichado jardim, tão lindo quanto possível. Cuide de cada detalhe: ph do solo, nutrientes, sombra, flores, pedras decorativas, folhagens e tudo o que mais lhe agradar. Zele por tal ambiente durante um ano – tempo que, creio, levará para a vida se fazer plena na beleza planejada. Então, finja morrer, isto é, não controle – altere – mais nada. Depois, acompanhe a evolução do seu jardim por igual período, com a acuidade de um cientista. A natureza, em sua vocação de vida, proverá ao espaço delimitado uma imensa diversidade, substituindo o tênue critério da estética humana por outro muito mais seguro: o do equilíbrio ambiental.

Em última instância, é essa visão que assombra os ficcionistas: a natureza aguarda apenas uma distração do homem – um mero acidente de percurso, uma fatalidade qualquer – para seguir seu rumo. Depois, terá muito tempo para restabelecer a ordem, mesmo sendo ela nova, posterior às alterações advindas de nossa passagem na terra. Porém, em nada parecida com os jardins artificiais por nós denominados de cidades – lugares com menos vida, no sentido de diversificação de espécies, do que qualquer inocente matinho de arrabalde. Um exemplo? No Parque Estadual de Itapuã, às margens do Guaíba, ambientalistas preservam as ruínas das casas de invasores para que nós, visitantes, possamos testemunhar a impressionante retomada da natureza, ocorrida em pouco mais de uma década. Calcule, agora, o que restará das habitações em milênios.

Quando os ecologistas defendem uma mudança de rumo na dita civilização, redirecionada ao equilíbrio ambiental, estão mirando muito mais na salvação da humanidade do que no socorro ao planeta em si. Em milhões de anos, a terra viu nascer e sucumbir todo tipo de animal e planta, cujos resquícios nos são oferecidos aos estudos paleontológicos. Se alterarmos demais o ambiente que permitiu nossa presença por aqui, fazemos crescer nosso próprio risco de extinção. Basta olhar o exemplo de tantas outras espécies – vítimas do desmatamento e da poluição –, outrora imponentes, transformadas em criaturas tão frágeis como as flores do nosso jardim. Há um limite nesta sanha de progresso: tornarmo-nos, com ironia melancólica, incompatíveis com o meio que modificamos.

Ao contrário do que se possa pensar, a sociedade não está imune a um colapso energético, tecnológico ou de saúde pública. E não são apenas os escritores a pressentir e temer por isso: há um alerta geral neste sentido, partindo de diversas áreas do conhecimento. Se a nossa vida tornar-se excessivamente dependente das alterações que propiciam um conforto de caráter imediato e consumista, ela estará em sérios apuros. Respeitar a natureza na qualidade de seres transitórios é nossa única chance de acompanhá-la em sua plenitude. Estar em harmonia com a diversidade biológica é a oportunidade de também fazer parte dela. Despoluir o meio ambiente e salvar espécies em vias de extinção é antecipar ações que, no futuro, podem garantir nossa própria continuidade. A vida sempre vencerá a batalha, já está decidido. Logo, é preciso lutar a seu favor, agora mais do que nunca, nas trincheiras da eternidade.

13.11.08

Número 291

EMENDAS E SONETO

Querida,

Se você está lendo esta carta, é porque abriu a gaveta que era só minha. E, prosseguindo na busca de documentos, é certo que chegará ao envelope pardo que está bem no fundo. Por isso, me adianto em explicar seu conteúdo... Caso não tenha desconfiado, sempre sonhei em ser poeta. Quando lhe conheci, compus um soneto dedicado ao mágico sonho que era o amor nascente. Porém, por perfeccionismo – insegurança? –, voltei ao poema a cada março, nosso mês. Minha idéia era revisá-lo para que fosse ao máximo fiel, sem medo de fazer supressões ou acréscimos.

A primeira grande alteração aconteceu depois do casamento. Para melhor, imaginava: muitos versos românticos cederam espaço para um conteúdo mais envolvente. Erótico, ouso dizer. Troquei minha imaginação por nossas descobertas. Seu corpo ganhou mais destaque a cada verso. Cantei suas formas e sabores; seus olhos e suspiros; seu sorriso ao amanhecer. Garanto que não poupei mesuras. Estava quase convencido a lhe mostrar o soneto quando chegou a notícia da gravidez. Senti que era preciso, contigo, esperar.

A chegada do Alfredinho deu novas cores à minha vida. Como havia intuído, meu soneto já pedia outros versos, com o encanto da maternidade, robusta e lânguida. Descobri em você uma nova mulher. Plena, eterna. Perdi noites em busca do melhor tom – um tanto de cantiga de ninar, outro de amor roubado nas madrugadas. Também tínhamos a casa nova, ambiente idílico para versos cabais. Paredes brancas, imaculadas; janelas nuas e poucos móveis. Tudo a me ocupar. Novas rimas, inclusive.

O soneto parecia novamente pronto antes mesmo da mobília estar completa. Mas a vinda de um novo filho impôs paciência. Filho nada: a nossa Ana Maria. O anjo mais lindo que Deus criou, agora estava posto em meus braços. Pergunto: como poderia deixá-la de fora dos versos, se Aninha era poesia em forma de gente? Além do mais, se um dia nossa flor quisesse ler minha obra, morreria de vergonha das confissões sensuais que cometia. Labutei na busca de casar aquele amor carnal à condição de família, legado de um novo tempo. Com o correr dos versos, o erotismo findou sutil, ainda que presente. O soneto, enfim, estava no ponto para ser revelado. O que não aconteceu...

André, rebento temporão, soterrou meu intento. Horror confessar algo tão imerecido, porém verdadeiro: já não conseguia cantar o terceiro filho com o mesmo lirismo de outrora. Junto a isso, sentia culpa em citar com tanta devoção o primogênito e sua irmã, relegando o caçula a uma emenda mal feita. Ou entravam os três com a mesma ênfase, ou saíam todos. Quando vi, o soneto, de pronto, ficou reduzido ao começo e umas rimas soltas pelo meio. Ainda mais que suprimi o cantar da casa, desiludido com aquela teimosa infiltração a nos escurecer as paredes. E você, minha amada, sempre exausta, em nada acudia o poeta.

Foram incontáveis os marços em que movi poucas linhas. Pobre soneto, restou abaixo das mensalidades escolares, das prestações da casa da praia, dos planos de viagens (adiados). Quando, enfim, os filhos saíram de casa, pensei que seria fácil concluir o trabalho: fazer o soneto definitivo. Passei vários anos, a cada fim de verão, lembrando contigo nossos tempos áureos. Aposentado, tinha paz, mas a inspiração me abandonara. Suprimir versos me parecia indiferente. Acrescentar, impossível.

Logo mais você encontrará, minha querida, sacramentadas no envelope pardo quase cinqüenta versões da mesma poesia. E nenhuma será melhor para a despedida do que o soneto original, de todos o mais fiel – meu retorno à magia dos sonhos.

6.11.08

Número 290 + 2 convites

Olá! Quer se encontrar comigo na 54º Feira do Livro de Porto Alegre?

Dia 7/11, sexta-feira, 20h, estarei autografando Pedra, Papel e Tesoura ‒ Contos de Oficina 38, junto com os demais autores, no térreo do Memorial. O livro, organizado pelo Prof. Assis Brasil, surpreende pela qualidade e diversidade de vozes literárias. Recomendo!

Sábado, 8/11, 17h30min, palestra Centenário de Cartola ‒ as rosas não falam, sala Arquipélago do CCCEV, com a Profa. Dra. Maria Regina Bettiol, o poeta Prof. Dr. Marlon de Almeida e o músico Rubem Penz (eu); canja sonora com David Sosa (voz) e Cristiano Fischer (violão), comigo na percussão. Horário bom, de graça e muito bacana!

Ficam os convites e meu abraço.


O OVO OU A GALINHA?

Quem nasceu primeiro: o homem na cozinha, ou a cozinha na área social da casa? Essa dúvida saiu da casca passeando com minha esposa pelas ruas do nosso condomínio. Afinal, em várias residências ‒ quase todas bastante novas ‒ a cozinha é vista na fachada, adiante até mesmo da sala de estar. E, não raro, são os homens que estão lá dentro, pilotando um belo fogão ao invés da churrasqueira. Aqueles mesmos que em tempos recentes se orgulhavam de não saber fritar um ovo ‒ atributo (defeito?) ligado ao machismo ‒, agora ostentam um avental bem-humorado.

Fácil de pensar que primeiro nasceu o homem na cozinha. Porque a mulher, depois de ser cozida em séculos de submissão, queimou o sutiã e quebrou os pratos. Assim, por livre e espancada vontade, o homem consentiu em dividir com ela as lides domésticas, cada vez menos realizadas por serviçais. Em um movimento coincidente ‒ e talvez não por coincidência ‒ uma série de inovações foram desenvolvidas para deixar a preparação do alimento mais fácil, prática e agradável. Eletrodomésticos com comandos eletrônicos; frigideiras, panelas e fôrmas antiaderentes; fornos e liquidificadores autolimpantes; cutelaria de luxo e molhos pré-cozidos, tudo criado por obra da engenharia de... homens! A galinha, também, passou a chegar limpa, separada em pedaços e sem pele. Uma barbada.

Porém, mesmo depois disso tudo, faltava o ornamento do prato: importar o status dos grandes chefs de cuisine e transformar o limão em limonada. Neste momento, preparar o almoço se transformou em artifício de sedução. O velho truque de conquistar pelo estômago mudou de lado e, cada vez mais, as mulheres passaram a apreciar os bons de colher de pau. Mas é complicado ser pavão em um ambiente arcaico e relegado aos fundos da casa. Foi quando caíram as paredes da cozinha ‒ que ganhou visual para a sala de jantar ‒ e seus móveis abiscoitaram uma beleza ímpar. Por fim, a peça conquistou um lugar de destaque nas plantas baixas, transformando-se na cereja do bolo. A novidade à mesa? Mulheres que, em matéria de panelas, não entendem um ovo. Com orgulho!

Ou nada disso: o macho da casa resistiu tudo o que pôde antes de esquentar a barriga no forno. Com isso, foi a cozinha em novo status quem primeiro nasceu. Todas as invenções que facilitaram a vida da dona-de-casa, mesmo quando criadas por engenheiros homens, vieram para ser usufruídas, sim, pela mulher. Ela, independente e brilhante, jamais poderia ficar excluída enquanto preparava o jantar, inspirando os arquitetos a integrarem os ambientes. E, só depois da rotina deixar de ser massacrante e a cozinha ganhar status na casa (e a empregada pedir as contas), apenas aí o homem foi convencido a aderir. Agora, mais do que nunca, está frito: o tempo do galo bebendo uisquinho no sofá terminou.

Eu não acredito que os homens sejam altruístas a ponto de revolucionarem a cozinha para suas mulheres e, depois, em generosidade suprema, ajudar em casa. Com a máxima de que a dor ensina a gemer, bastou a esposa começar a trabalhar fora para o mercado perceber a oportunidade de negócios ‒ homem no fogão, só sendo mais fácil e mais bonito. Com isso, o processador de alimentos nasceu depois de um marido chorar com a cebola. O teflon depois de ele gastar as mãos lavando uma leiteira. O forno de microondas para ele poder acordar dez minutos mais tarde. Entre o ovo e a galinha, acho que o primeiro a nascer foi o pinto: um rapazola solteiro, morando sozinho, precisando se virar e ainda conquistar a namorada. Isso: a idéia de integrar a cozinha à sala foi do pinto!

3.11.08

Indicação para pêmio


Com alegria trago uma boa notícia aos leitores do Rufar dos Tambores: o blog foi indicado finalista do 1º Prêmio Gaúcho de Arte Eletrônica. Desde já, divido esta honra com você, leitor!

30.10.08

Número 289


SAUDADE NA PONTA DOS DEDOS

Muita gente tenta entender a saudade. Muita gente tenta explicá-la. Outros tantos a cantam em versos dedicados (delicados?). Sevem-se de sua natureza de contrastes – uma alegria triste; uma melancolia que finda em uma lágrima desaguando em um sorriso. Tema recorrente, a saudade – lá vou eu me arriscar em palpites –, antes de ser um o quê, ou sua ausência, é um quando. Igual ao filho que se esconde na casa para assustar o pai que chega do trabalho, a graça da saudade, sua força, seu encantamento, reside em nos surpreender quando estamos distraídos. Mesmo que saibamos que ela estará sempre ali, na espreita, esperando a melhor oportunidade, ela vive de pregar peças.

Saudade é tempo. Saudade é passado. É o que se foi, ou o que um dia fomos. Por exemplo: morro de saudade do Ford Corcel azul 77 que dirigia até os vinte e poucos anos. Ainda sinto o seu cheiro e o toque frio do volante – tão liso de um lado, ondulado de outro. O ronco de seu motor ficará para sempre na memória, mesmo sabendo que nem de perto era contagiante como o dos possantes V8. Friamente, jamais trocaria o carro que tenho hoje para voltar a dirigir um Corcel. Aí que está: saudade, saudade mesmo, tenho de meus dezoito, vinte e poucos anos, e de tudo o que representava aquele carro para mim. Por isso, quando um Corcelzinho bem conservado cruza comigo no trânsito, assim de surpresa, bate a saudade.

Quando morava em um pequeno apartamento de um quarto, de aluguel, bem velhinho e nem tão bem equipado, eu sonhava e ter uma casa. De preferência com pátio. Melhor dizendo, nós sonhávamos, pois naquele espaço apertado nascia a minha família. Justamente por isso, por ser aquele um tempo assim precioso em minha vida, cheio de projetos, basta encontrar um ex-vizinho por entre os corredores de um supermercado para bater a saudade danada do apartamento no simpático bairro Petrópolis. Tão poucos metros quadrados, e tantas boas lembranças...

Ainda no final de semana, enquanto acompanhava meu filho em uma competição esportiva no ginásio da escola, senti saudade dos meus doze anos de idade. Não fui um atleta muito brilhante. Nem posso dizer que fui realmente um atleta, aliás. Porém, quando fora da quadra (por baixo, noventa por cento do tempo), a diversão estava garantida: à minha volta, juntavam-se os companheiros de charanga. Tarol, surdo, tamborim, ganzá e agogô, quase todos emparelhados no mesmo ritmo, enchíamos o espaço de animação. Saudade é um canto improvisado e caótico, motivando o time da turma, exaltando cada ponto ou cada gol.

Mas escolhi falar deste sentimento tão traiçoeiro por causa de uma passagem ainda mais recente. Este mês, em seu aniversário, meu pai teria completado setenta e três anos. No dia, claro, lembrei dele logo cedo. Estranhei um pouco não ter sentido uma arrebatadora saudade. Quase bateu uma culpa por causa da aparente frieza. Terça-feira, assistindo a um show musical, não pensei no pai nem mesmo quando entrou no palco o acordeonista Matheus Kléber – e olha que todo acordeão remete a ele, pois este era seu instrumento de músico bissexto. Permaneci com a memória distraída até reparar no movimento dos dedos do músico na direção das teclas graves: o que vi, foi a mão direita do meu pai. No ato, me deu um aperto no peito.

Não recordo do pai me fazendo qualquer carinho. Não era o jeito dele. Mesmo assim, quando o jovem acordeonista deslizou a melodia pela ponta dos seus dedos, foi como se a mão do pai me tocasse. Suave como um verso triste. Música para a minha pele. Tempo que ficou para trás. Muita saudade.

22.10.08

Número 288

ACHADOS E PERDIDOS

O que é a leitura de crônicas, senão uma visita periódica à sala de achados e perdidos? Dessas que fazemos pela força do hábito, quase como o abrir da geladeira para dar uma espiada na própria fome. Ou, quem sabe, movidos pela clara impressão de que estamos a todo o momento perdendo coisas no caminho, distraídos ou apressados, e que, com certeza, alguém juntou para nós.

É nessa sala de achados e perdidos que encontramos, por exemplo, a nossa infância. Aquele medo do escuro, a teatralidade do Natal, o ataque de risos durante a missa. A amizade descomprometida do colega de escola, a primeira paixão e, logo em seguida, a descoberta de que, naquela altura, ainda não estávamos preparados para as conseqüências do amor. Encontramos a mãe jovem, a irmã implicante, as chegadas e partidas do pai. Lembranças que pareciam perdidas até nos depararmos com elas ali, na crônica.

É nessa sala de achados e perdidos que encontramos os postais da viagem inesquecível chamada juventude. Paisagens que nem existem mais – a começar pela nossa própria silhueta –, mas que a memória registrou em fotos divertidas, relatou tudo em detalhes ali no verso, endereçou para a eternidade e deixou para o tempo a tarefa de selar. Encontramos muitos sonhos caídos de nossos bolsos sem que tenhamos notado sua ausência – que falta faz uma niqueleira na hora de guardar os centavos da vida – os quais agora perderam sua validade. Mas, na crônica, são resgatados para a nossa coleção.

É nessa sala de achados e perdidos que encontramos aquele detalhe que ainda ontem estava bem na nossa frente e, displicentes, deixamos que fosse levado pelo vento (ainda assim, mantenha as janelas abertas). Encontramos a mentira do político, a beleza da cura, a simplicidade do gesto, a violência das palavras, o encantamento da solidariedade. Encontramos também, meu Deus!, o sorriso franco que nem imaginávamos ter perdido. Encontramos os primeiros passos do filho, o ranço do chefe, o batom da esposa, ovos de gema cor-de-laranja, máscaras, sujeira embaixo do tapete. Como um espaço tão pequeno de texto pode abrigar tanta coisa perdida?

É nessa sala de achados e perdidos que encontramos uns aos outros, todos em busca do que, em algum tempo, nos escapou. É quando ela vira, também, sala de bate-papos, com suas polêmicas e celebrações; revelações e preconceitos; partilhas e apropriações indébitas. Encontramos muita discordância, algumas inamistosas. Mas coincidências e identificações em número superior ‒ ainda bem! Encontrar-se na crônica é uma experiência tranqüilizadora: significa que não estamos loucos e os outros também pensam/sentem o mesmo que nós.

E o cronista é este sujeito meio à toa que vive perdido e, ao mesmo tempo, vive de achados. Se ninguém soltasse aquela frase peculiar, se todos guardassem os temores apenas para si, ou se o acaso não espalhasse os papéis em nossas mesas, o cronista estaria frito. É quando junta uma ilusão antes de ela entrar na boca-de-lobo, ao reparar em uma sutileza esquecida no espaldar da cadeira, no instante em que é o único que viu a graça rolando escada abaixo, nestes momentos o cronista se torna o fiel depositário do cotidiano. No jornal, no blog ou no livro, a porta desta sala de achados e perdidos estará sempre franqueada para quem se dispuser a ler. Bisbilhotar o que os outros perderam, ou mesmo procurar um espelho. Assim, sem muita pretensão, como quem abre a geladeira para averiguar a própria fome.

15.10.08

Número 287 e convite

Convite:
Lançamento de Ponto de Partilha I,

organização de Valesca de Assis & Rubem Penz, Ed. Kalligraphos

Tenho o imenso prazer em convidar você para a tarde/noite de autógrafos dos autores oriundos das oficinas literárias de Valesca de Assis. A saber, foi com Valesca que cursei minha primeira oficina e, ao lado dela, também estreei na função de orientador. Se já não bastasse, tive a honra de participar deste livro cumprindo a função de co-organizador, além de escritor. Venha compartilhar essa nossa conquista! Sua presença nos será grata.

Quando: 20 de outubro, segunda-feira, da 17 às 20h
Onde: Alameda dos Escritores do Shopping Total, Av. Cristóvão Colombo, 545, Porto Alegre

REPARANDO BEM...


“Reparando bem
Todo mundo tem *
Só a bailarina que não tem”

Edu Lobo, Chico Buarque & Censura


Reparando bem na primeira gravação de Ciranda da Bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque, contida no álbum O Grande Circo Místico, o censor da época sonegou dos ouvintes a palavra pentelho. Este tema violentado, parcela de uma obra maior e desenvolvida para um espetáculo do Ballet Guaíra, vinha com a interpretação de um coral de crianças. Quanta ironia! Mesmo assim, seu alvo era, por tudo, o público adulto. Reparando em uma versão mais recente da mesma Ciranda, feita por Adriana Calcanhoto no CD e DVD Adriana Partimpim, o pentelho outrora suprimido aparece pronunciado com todas as letras, sem constranger ou escandalizar ninguém. E, olha a ironia outra vez, faz parte de um trabalho dirigido para crianças!

Reparando bem no manifesto de Pedro Cardoso contra o uso apelativo e indiscriminado do nu em espetáculos de teatro, cinema e TV, fulcro de uma polêmica em voga, é direta a associação de sua proposta com o antigo comportamento da censura. Afinal, tanto antes como agora, o que está em questão é a moral ou, mais especificamente, a pornografia. Reparando nos argumentos de quem repudia a iniciativa do ator, fica evidente que a sociedade está cada vez mais tolerante com a exposição corporal. A nudez, sim, tornou-se algo banalizado: de tanto ver homens e mulheres pelados, nem mesmo as crianças se escandalizam ou se surpreendem. E isso desmontaria a tese do apelo pornográfico no uso constante do nu.

Reparando bem no objeto da polêmica, no caso a mulher tornada objeto (e o homem também), Cardoso está coberto de razão quando denuncia uma grande dose de gratuidade na exposição de atores sem roupas. Cruel, até, pois condiciona os profissionais aos padrões estéticos das revistas especializadas, deixando os critérios da fita métrica em um patamar adiante do verdadeiro talento de interpretação. Reparando em seus detratores, a profusão de artistas desnudos viria a ser um desserviço para o uso do nu com determinada intenção, tenha ela um caráter sensual ou o objetivo de chocar, ferindo de morte tal recurso. Não nos esqueçamos de que um umbigo de fora já foi motivo de escândalo no passado recente!

Reparando bem no pentelho subtraído da música do Edu e do Chico, ele acabou premiado com um valor erótico superior ao da intenção original no momento em que o silêncio toma o seu lugar. Agora, de volta ao poema, o pêlo pubiano regride para a categoria do banal (todo mundo tem) e do infantil (todo mundo fala), quase suprimindo da impúbere bailarina o caráter de pureza. Assim, chega-se à conclusão de que frear em certa medida a nudez indiscriminada será uma forma de devolver ao corpo revelado o seu caráter dramático. E, neste sentido, quem condena o ator Pedro Cardoso por considerá-lo puritano, não vê o quanto, por assim dizer, se valorizará o nu ao evitarmos o exagero.

Reparando bem, o Agostinho/Pedro Cardoso é o verdadeiro sem-vergonha dessa história. E quem permite e promove a superexposição dos corpos, com o tempo, fará nosso ânimo amolecer de vez.

(Mini) Conto Contíguo

Ponto final

‒ Hei! Olá, você aí em cima: procurando o quê, dependurado nessa interrogação?

7.10.08

Número 286

NOTA FISCAL Nº 2180

Filhos sempre pedem. Muitas vezes pedem sem parar. Pedem até esgotar nossa paciência. Aprendem cedo a dizer: – Eu quero! E repetem esta ladainha como um disco arranhado. Alguns pais, por não conseguirem suportar a carga de pedidos, até evitam andar com os filhos na hora de fazer compras. Mas se a criança fica em casa, os comerciais da TV dirão: – Peça! Os vizinhos e colegas com suas mil novidades dirão: – Peça também! Conseguir negar se constitui uma das tantas tarefas dos pais/educadores. Preparar os filhos para lidarem com as frustrações desde cedo e mostrar-lhes o singelo fato de que não se pode – ou deve – ter tudo é o melhor caminho para forjar adultos saudáveis. Enfim, recusar-se é, antes de tudo, uma prova de amor.

Claro que aí tem um problema: os pais gostam de atender os pedidos dos filhos, tenham eles seis ou dezesseis anos. Por que negar um sorvete, uma pastilha de hortelã, uma barra de chocolate? Quando temos condições, qual o problema de comprar um brinquedo, um jogo, uma bicicleta? Será que aquela novidade eletrônica “que todo mundo já tem” precisará ser eternamente sonegada em prol de uma sólida formação de caráter? Ainda mais em uma data comemorativa? Não! O brilho nos olhos de quem tem o pedido satisfeito é indescritível. É muito gratificante ser capaz de oferecer aquilo que, se fôssemos crianças ou jovens, adoraríamos ter. Ainda mais se o filho vai bem na escola e não causa preocupações. A felicidade de quem oferece, ainda mais quando temperada por renúncias pessoais, também pode ser considerada uma das faces do verdadeiro amor.

Como toda criança, pedi muito mais do que fui atendido – e olha que, pensando bem, ganhei horrores de coisas. Lógico: pedi tudo aquilo que em minha época foi moda ou novidade. Agora, vejam só, me tornei julgador de pedidos. Com o risco de estar errando aqui e ali, resta o consolo de que, deixando de ganhar tudo de mãos beijadas, minha gurizada vai crescer com a consciência de que as coisas precisam ser conquistadas. Lembrando dos meus pais, o que me foi oferecido ou negado deve ter seguido mais ou menos os mesmos critérios que adoto na posição invertida, em pleno acordo de casal: balanços de viabilidade econômica, avaliação da real utilidade, palpite sobre o quanto o pedido reflete um desejo verdadeiro e percepção de importância do objeto (ou experiência) na vida do filho.

Tudo isso veio à baila neste momento, bem quando minha mãe me ofertou um documento caprichosamente guardado em sua casa: a nota fiscal de número 2180 da Casa Beethoven, emitida em 22 de dezembro de 1977. Nela, está descrita a compra de uma bateria profissional no valor de onze mil cruzeiros. Incrivelmente, no mesmo dia em que foi encontrado esse papel nas coisas do pai, eu, ainda sem saber, expus para amigos a circunstância daquela compra: a promessa feita e cobrada, o acordo entre pai e filho. Descrevi tudo em detalhes, pois, como não poderia deixar de ser, o dia – aquele Natal – se tornaria inesquecível.

Tenho medo de calcular o que representa na atualidade o valor pago pelo instrumento musical no distante ano de 77. Garanto aos mais jovens que deve ser uma cifra muito, muitíssimo superior ao que custa uma bateria comum nas lojas de shopping. Contudo, nem o dinheiro empregado, nem o barulho que estaria por vir até que eu me tornasse capaz de acompanhar a música, nada dissuadiu meu pai de me dar tal presente. Ainda bem! Tomara que, quando chegar a minha vez de atender a um pedido que venha a determinar a vida dos meus filhos, eu esteja assim atento. Devo isso a eles. E devo, também, ao avô deles.

1.10.08

Número 285

SEDUÇÃO

A mulher traz em seu código genético um compêndio rico e detalhado de estratagemas de sedução. O quanto e quando fará uso destas informações é mais um de seus mistérios. Certo mesmo, apenas a fragilidade masculina em lidar com a situação posta, caso ela resolva conquistá-lo. Vou dar um exemplo: você está lá inerte, desligado, em paz. Eis que chega uma morena com brilho fulgurante nos olhos e um sorriso tão acriançado que provoca, de imediato, o efeito espelho (meninas, sorrir de volta nem sempre é galanteio – pode ser apenas boa educação).

Ela puxa uma conversa sobre amenidades e, com maestria, divide o olhar entre um mirar direto e um desviar (falsamente) tímido. Fala de perto, quase sussurra – quando a mulher diminui o volume, usa um tom mais grave e gasta mais ar do que o necessário, permitindo que seu hálito se insinue. Preocupado em escutar, você se distrai do olfato e da visão, que passam a trabalhar contra a sua vontade, mandando relatórios sobre eventuais ferormônios e volume dos seios. A temperatura corporal sobe e, ato contínuo, todas as percepções sensoriais se aguçam, curiosas. Mais um pouco você estará fantasiando cenas luxuriantes.

Mas, digamos que você não reage (sei lá: é distraído, comprometido, tímido) e o silêncio se impõe. Neste momento, ela volta à carga parecendo responder a pergunta que não foi feita, brejeira: Sou laboratorista. Mas desejo mesmo cursar psicologia e trabalhar com crianças (falar de crianças assim, nessa situação – e com tal desfaçatez – é quase um crime). Gosta de crianças? E agora? Como negar? Impossível, todos gostamos de crianças... É tudo que ela precisa para engatar mais cinco minutos de hálito fresco e sorriso franco. Sua estrutura começa a ser corroída, mas você se mantém teso, cerimonioso. Ela avança: Soube que você é escritor. (ah, soube? como?) Minha mãe quem me contou.

Horror! Com uma mãe interessada por você, se é quase genro. Pior: você repara que a menina está naquela idade eqüidistante entre ser criança e ter trinta anos. Nada menos do que a melhor. Ela diz que não foi assistir a sua palestra porque estava em aula. Mas quer comprar o livro. E espera um autógrafo: Lindo! (massagem no ego, golpe baixo) Nocauteado em pé, você apenas agradece, preso no córner. Então, sem misericórdia, ela mordisca o próprio lábio inferior e desfaz o gesto com novo sorriso – maior, sem-vergonha. Traz o dedinho apontado e o encosta em seu rosto: Você tem um monte de pintinhas! Que bonitinho! Deixa eu contar...

Sedução, enfim, é isso: astúcia, ousadia bem medida, controle da situação. É muito do que experimentamos ao escrever. Quem cria textos sabe o quanto é excitante planejar o modo de conduzir o leitor pelo caminho imaginado. Por exemplo: agora, você pode estar pensando que o que foi narrado aconteceu de verdade, que a moreninha existe e, dia desses, veio falar comigo. Pensa também que uso essa crônica para contar o fato aos amigos, deixando-os podres de inveja – ainda mais depois de sugerir um final que só quem aprecia dedos curiosos sabe onde pode chegar. Isso, ou que eu tenha criado tudo para testar o humor da esposa, que lê todas as crônicas antes de serem publicadas.

Quem me conhece sabe do que eu seria ou não capaz.

23.9.08

Número 284



VÔO DE TAXI

Foram muitas as implicações da entrada em vigor da nova lei brasileira versando sobre a combinação de álcool e direção que, leio agora, aumentará o valor das multas. Por ela ser draconiana, penalizando com severidade o motorista que apresentar o menor traço de alcoolemia, reflexos negativos foram sentidos nas casas noturnas – especialmente em bares e restaurantes. Outros setores, com destaque para os serviços de táxi, desta vez saíram ganhando. Os pronto-atendimentos agradeceram a maior tranqüilidade na madrugada, e isso merece ser comemorado: as vidas poupadas. Porém, na mesma proporção em que os cidadãos ao volante decidiram não beber, quem resolveu deixar o carro em casa se viu autorizado a enfiar o pé na jaca. E isso sempre traz conseqüências.

Táxis costumam andar ao rés-do-chão, se considerarmos assim também os viadutos e elevadas. Entretanto, na medida em que a noite avança, o trânsito se desobstrui e a fiscalização some, alguns voam, mesmo sendo isso apenas uma metáfora autorizada a cruzar sinais vermelhos. Porém, voando ou andando devagar, o certo é que os motoristas têm colhido passageiros cada vez mais altos. Obrigado a deixar o automóvel na garagem, um ou outro apela para o sistema da compensação: uma vez que já estou de castigo, o negócio é transgredir. E tome trago! Beber migra de possibilidade para obrigação. Beber muito, um ato de protesto. Se o whisky era para Vinícius de Moraes “o cão engarrafado”, agora ele passa a ser “o cara-pintada on the rocks”.

A coleta de passageiros que exageraram na bebida está exigindo adaptações aos motoristas de táxi. A primeira, e talvez mais importante, é uma acuidade auditiva que beira a decodificação de mensagens cifradas. Compreender o endereço indicado por alguém que enrola a língua é complicado e exige talento. Piora com nomes bem difíceis de pronunciar até mesmo em estado natural, justamente por não serem em português: Rua Comendador Rheingantz, Rua Zamenhoff, Praça Gustavo Langsch. Isso quando o pobre sabe para onde deseja ir. Exagero? Não, pois eu vivi uma situação dessas dando uma carona certa madrugada – história que prometi jamais transformar em crônica, apesar da extrema tentação.

Outra adaptação é desenvolver uma espécie de talento para a consultoria sentimental. Afinal, não faltarão alcoolizados dispostos a dividir com o motorista as dores do mundo. Taxistas insensíveis e maus conselheiros podem fazer subir as estatísticas de suicídios na cidade. Ou separações de casais, fugas de casa, crimes passionais, parricídios. Não convém atirar gasolina em quem já está de fogo, com o perdão do trocadilho. Por alguns instantes, o tempo exato que durar a corrida, quem está no volante será alçado ao patamar de melhor amigo, confidente, irmão mais velho. Doses equilibradas de paciência, ponderação e distanciamento (para não se tornar cúmplice de uma tragédia) farão parte dos serviços prestados.

Porém, a mais importante adequação que o táxi precisará sofrer com os tempos pós-lei de tolerância zero de álcool e direção, o aproximará definitivamente dos serviços de transporte aéreo. E não terá nada com as metáforas de vôos ou altura como sendo o estado etílico. Sob o risco de perder corridas sucedâneas na noite, saquinhos para vômito precisarão estar em local bem sinalizado e de fácil acesso ao passageiro, a exemplo do que acontece nos aviões. Isso, ou o motorista não terá a resposta correta para quando o passageiro perguntar: “Moço, onde eu coloco a pizza de calabresa?”

17.9.08

Número 283


O AMANTE DE LULI

O mal silencioso chamado ciúme nasce na cabeça, tal e qual o par de aspas (quanta ironia). Porém, há quem julgue que ele brota no coração. Consenso mesmo é o de que, para prosperar, ele se alimentará do adubo produzido pelas entranhas do ser. Assim, tanto faz se a pessoa amada dá ou não motivos para que o outro tenha ciúme: dependendo da profundidade de suas raízes, muito mais porcaria o sustentará. Este parecia ser o caso de Amadeu. Certo de ter sua bela mulher assediada, e desconfiado de que ela correspondia a tais apelos, decidiu agir.

Em segredo, Amadeu montou uma página em um site de relacionamento como sendo ele próprio a sua esposa. Luiza virou Luli, apelido íntimo dos tempos de namoro. Alimentou o perfil com fotos verdadeiras e fez questão de ser o mais fiel possível em todas as informações, exceção feita ao campo do estado civil, deixado em branco de propósito. Caprichou na descrição da mulher. Criou um e-mail específico para contatos, com o qual passou a trocar mensagens em nome dela. Luli fez amizades instantâneas e, de modo incriminatório, logo atraiu um suposto ex-colega de escola no grupo. Rogério, o seu nome. Ele a chamou de Lu, demonstrando ter bastante intimidade. Luli, digitou Amadeu: agora sou Luli.

O homem tratou de colher informações sobre a relação de Rogério e Luiza com a própria, enquanto aproveitavam o domingo de sol para caminhar no parque. Ele era um menino muito doce, segundo lembrava, mas um pouco tímido. A amizade entre os dois ficara prejudicada com a partida da família do rapaz para Pernambuco. Uma pena.

– Mas de onde você conhece o Rogério, afinal? – quis saber Luiza.

– Ah, sabe como são essas coisas... – disse Amadeu de modo evasivo – quando menos se espera aparece alguém conhecido.

De volta para a sala de bate-papos virtual, Luli perguntou se a família de Rogério continuava em Recife. Retornaram, é? Veja só: moravam na mesma cidade outra vez. Ah, desde os tempos da faculdade? Nos encontramos na época? Nossa, é mesmo, que cabeça! E no fim, você é? Urologista... Meu Deus, tem gosto para tudo! E por que ainda solteiro? Gay, confessa! Por que não? Imagina, a julgar pela foto, e por ser tão bem sucedido, duvido que faltassem interessadas. Eu? Eu não quero falar sobre isso, não agora. Gosto de ser secretária executiva: menos glamouroso do que parece, mas o salário compensa. Trilingüe – não leu meu perfil? Adorou a foto, é... Bobo! Vou trocá-la, então!

Aos poucos as suspeitas de Amadeu se confirmavam: Luiza fazia amizades muito facilmente para jamais ter um caso extraconjugal. Vivia cercada de homens, também. E agora esse tal de Rogério, aparecido por encanto dos tempos de escola. Precisava saber até onde isso poderia chegar. Permitiu que a troca de mensagens entre Luli e Rogério rumasse para o lado afetivo, deu linha ao Casanova do ginásio e puxou o anzol: marcaram o encontro em um motel.

No dia e hora certa armou campana defronte ao local escolhido. Desastre! O tal Rogério apareceu de verdade, dando materialidade ao ciúme que todos diziam infundado. Ele parecia bem mais forte do que sugeria a foto que mandara pela internet. Seu carro, também, era um espetáculo. Quisera Amadeu ter dinheiro para dirigir um desses... Ainda por cima era paciente, pois entrara pontualmente e aguardava por Luli há mais de meia hora. Quanto mais o tempo passava, mais nojo sentia da mulher: o que ele estaria esperando fazer com ela? Aposto em coisas que Luiza se nega a fazer em casa, delirava num misto de raiva e excitação. E, acariciando o cano de sua arma, planejava em voz alta:

– Mas uma hora o calhorda vai sair por aquela porta. Aí quero ver o quanto ele é homem com meu trinta e oito enfiado na boca!

16.9.08

CONVITE

CONVITE

“Rubem Penz tem aquele talento especial para transfigurar os pequenos acontecimentos do cotidiano em boa, muito boa literatura. Os textos trazem humor, delicadeza, compaixão, contundência: uma espécie de vida em voz alta, como diria outro Rubem, o Braga.”

Valesca de Assis – escritora.

O que:
Autógrafos de O Y da questão e outras crônicas, de Rubem Penz, Literalis
Onde:
Livraria Cultura Market Place Shopping Center, Av. Dr. Chucri Zaidan, 902, SP
Quando:
29/09/2008, segunda-feira, 19h

10.9.08

Número 282

QUARTO 208

É a quarta vez que chego ao mesmo hotel. Também a última, ao menos por um tempo indeterminado: finda o compromisso que tenho na cidade. Quando da primeira vez, me indicaram na recepção o quarto 208. Na semana seguinte, seria o 109. Perguntei se o 208 estava vago e, após a confirmação, pedi para ocupá-lo. Depois, quiseram me acomodar no 209 por duas vezes, mas preferi repousar no mesmo quarto do primeiro dia. Aliás, já vinha pensando nisso no caminho: estando livre, quero ficar no 208. Numerologia? Superstição? Pior... Acho que aprecio uma certa dose de rotina.

Sobre o 208: ao abrir a porta, entramos em um pequeno hall com a porta do banheiro na frente e o quarto à esquerda. Sua simplicidade é acolhedora, o banho bem quente e as toalhas macias. A cama de casal tem a cabeceira almofadada em tecido sintético marrom que imita couro, criados mudos com duas gavetas e lâmpadas de cabeceira que não funcionam. Defronte, o roupeiro de duas portas é contíguo com uma estante contendo prateleiras, gavetas e a prancheta embutida que me serve de apoio para escrever. Completam as acomodações uma TV de 20 polegadas com controle remoto, um ar condicionado que nunca liguei, um frigobar que desligo para poder dormir e uma ampla janela para o jardim interno. O que vi neste quarto para querer voltar? A chance de, na segunda vez, conhecê-lo a ponto de circular até no escuro (especialmente porque as lâmpadas de cabeceira...).

Há quem durma bem em qualquer lugar ou circunstância. Eu, não. Estranho os ruídos, as sombras, a orientação da cama, a altura do travesseiro e por aí vai. Sem frescura, não me deixo abater – apenas acordo cinco vezes durante a noite. Ou 42 vezes, se não desligo o frigobar – esse eletrodoméstico costuma disparar (e me despertar) a cada dez minutos. Mas eventuais desconfortos reduzem muito quando consigo repetir o aposento do hotel. Qualquer quarto, se volto duas ou mais vezes, passa a ser um pouco meu. Pois é...

Essa necessidade de apropriar-se de um local e de uma rotina pode até estar me prejudicando para além do sono. Por exemplo, nesse mesmo hotel, quem sabe o quarto 109 não é equipado com uma TV de 29 polegadas? Ou o 209, que tem uma varandinha, não é maior? Vai ver que, de todas as lâmpadas de cabeceira, só essas duas estão estragadas... (Incrível: em quatro semanas, nem eu, nem ninguém reclamou disso!) De fato, nenhum quarto supostamente melhor me daria conforto igual ao 208 que pude repetir. Metade pela descrença em acomodações muito superiores no hotel, metade pelo bem-estar do espaço conhecido.

Tal assunto sobre pernoites em hotéis, quartos iguais ou diferentes, lâmpadas e sono inconstante deve abrigar alguma boa metáfora escondida sob as cobertas. Ou, à luz da psicanálise, dizer algo definitivo a meu respeito e das pessoas que sentem o mesmo. Na velha e boa filosofia de botequim, poderia indicar que sou um camarada fiel, ou inseguro, maniático, ficando velho. Ou meio maricas, até. Eu mesmo fiquei cismado a ponto de dedicar uma crônica ao fato. E, graças ao texto – o qual escrevo aqui, agora, dentro do 208 –, decidi mudar de atitude! Vou deixar de ser assim conformado. Termino esse parágrafo, fecho o bloco, oculto a prancheta embutida e tomo uma iniciativa mais ousada. Sim: enquanto é tempo, pois nem abri a bagagem. Vou pedir para que me troquem as malditas luminárias de cabeceira!


Pos-scriptum: retornei no ônibus da madrugada, deixando o hotel ainda de dia. No fim, tomei uma ducha e esqueci de pedir novas luminárias. Na próxima viagem, caso dêem para você as chaves de um quarto 208, verifique as lâmpadas antes de mais nada.

3.9.08

Número 281

A“SE” / D“SE”

As teorias científicas são formuladas a partir de uma ou mais hipóteses. Depois, uma série de experimentos terá curso em busca das conclusões – as tais que podem tanto comprovar quanto desmentir as hipóteses (perdoem a simplificação). O problema é que muitos delírios também seguem o mesmo caminho, com uma sutil diferença: partem de uma hipótese impossível de ser comprovada – ou desmentida – e oferecem uma conclusão. Os casos mais corriqueiros deste fenômeno acontecem quando alguém nos diz: “mas se eu não tivesse feito tal coisa...” e, a seguir, apresenta uma conclusão. Pergunto: como podemos comprovar que alguma coisa aconteceria baseado em algo que não aconteceu? Ou mesmo desmentir? Aí que mora o problema.

Desconfio que as pessoas bem sucedidas na vida – aqui no sentido amplo, não restrito ao fator monetário – habitam o universo que chamarei de Antes do Se (A“SE”). Este lugar, que na verdade está mais para um tempo, antecede as hipóteses. Quando chegam a formular um “se”, ele está ligado a uma ação futura: “mas, e se eu der um beijo nela?”. Depois do beijo, caso venha o tapa, a conclusão será de que não foi uma boa idéia. Porém, na hipótese de ser correspondido, o beijo mostrará que ele não era o único interessado. Quem costuma projetar suas hipóteses para o futuro pode até dar com os burros n’água, mas sempre terá uma vida de certezas.

No segundo grupo, localizado em Depois do Se (D“SE”), estão os que tendem a ter a vida empacada. Como se colocam adiante das hipóteses, passam o tempo todo especulando sobre o que poderia ter sido, ao invés de sobre o que será. Para ficar no mesmo exemplo do parágrafo anterior, são as pessoas que passam meses (anos) imaginando o que teria acontecido “se eu tivesse dado um beijo nela” – isso depois de a moça ter deixado o recinto sem nem desconfiar que houvera tal plano. Na realidade, pouco importará a projeção de um casamento feliz ou a morte em um crime passional imposto pelo ex-namorado: sobre o que não aconteceu, todo raciocínio é delirante. Quem vive D“SE”, só tem as dúvidas para se agarrar.

Este tema me ocorreu ao assistir um debate esportivo na TV. Nele, a afirmação delirante de que “se o Bernardinho tivesse convocado o Ricardinho (levantador), o vôlei brasileiro não teria perdido a medalha de ouro na final olímpica de Pequim”. Muito antes de isso ser um enorme desrespeito com os atletas que lutaram muito para conquistar uma medalha de prata, é, no mínimo, uma falácia. Este “se”, referindo-se ao que não aconteceu, pode servir de base para todas as conclusões (inclusive a de que o Brasil seria eliminado na primeira fase, devido aos problemas de relacionamento no vestiário). Os treinadores, assim como os cientistas, formulam suas hipóteses antes dos das partidas e as põem em prática. Se não alcançarem os resultados, partem para novas possibilidades. Mas nem mesmo essas últimas serão garantia de nada – no máximo trarão uma maior probabilidade de acerto.

Imaginar que tudo poderia ser melhor caso outras decisões tivessem sido tomadas, ou outra seqüência de fatos ocorressem, pode até parecer reconfortante, mas, no caso, não passa de especulação mal intencionada. Pior: paralisa o sujeito no passado e transforma o presente em uma eterna frustração. Em tempo, lanço uma hipótese no estilo A“SE”: se nosso país continuar escutando comentaristas dando opiniões sobre o que poderia ter sido – mas não foi – o esporte nacional corre o risco de não ver fechada nem mesmo a ferida aberta na Copa do Mundo de 1950.

27.8.08

Número 280

Olimpíadas de A a Z

Terminadas as Olimpíadas de Pequim, começam os balanços. E as cobranças. E as desculpas. Alguma lavação de uniforme em público, cifras vindo à tona, esperança submergindo... Nunca tive ilusões de medalhas em quantidade: os países colhem os resultados que plantam em políticas educacionais e esportivas de base – com o adubo da continuidade – e esse não é o caso brasileiro. Aqui, longo prazo é a próxima eleição, e olhe lá... Porém, antes que o cheiro de pólvora dos fogos da despedida se dissipe, vamos fazer um balanço bem despretensioso da festa do esporte:

A – Alívio. Isso é o que sentem os que não gostam de atletismo, natação, tiro ao alvo, hóquei, handebol etc, e só tinham essas opções para assistir na TV.
B – Boxe sem medalhas do ouro para Cuba: sinal mais evidente de o país de Fidel estar nocauteado em pé.
C – Cielo, César. E já pensou se o nome dele fosse César Acqua!?
D – Dunga e a maldição do apelido. Ao terminar o jogo contra a Argentina, teria dito: Ah, não!
E – Etiópia, junto com Belarus, Quênia e Jamaica – países inexpressivos adiante do Brasil no quadro de medalhas. Mas isso não quer dizer nada...
F – Futebol olímpico. Piada que, faz tempo, perdeu a graça.
G – Galvão Bueno e a esperança nacional: que se percam as malas na volta para o Brasil.
H – Hipismo. Esporte com o maior número de casos de doping na Olimpíada. Acho que andaram usando doses cavalares.
I – Iguais. São assim os chineses: todos conquistando ouro.
J – Jornalistas. Em Pequim, estavam em maior número do que os atletas!
L – Liberdade ao molde chinês: pode tudo, menos o que o governo proíbe.
M – Maurren Maggi. Agora, talvez aproveite o impulso e salte para as páginas da Playboy para cair na grana!
N – Ninho do Pássaro. Obra do arquiteto chinês Jon Dee Balo.
O – Orelha do Phelps. Se o tecido do maiô faz diferença, ninguém vai estudar o efeito delas na performance? Para mim, é caso de doping morfológico.
P – Pedro Dias, judoca português que ganhou a luta de João Derly. Merecia medalha de ouro em imbecilidade ao noticiar para o mundo que é corno.
Q – Quatro, na China, é o número do azar. Para o Ronaldão, é o 24. Para a Argentina, o 34: sua posição no quadro geral – um pequeno consolo...
R – Rio 2016. Diz que o Zeca Pagodinho cuidaria do fogo olímpico.
S – Satisfeito. Conceito do Presidente ao ser perguntado sobre o desempenho do Brasil logo após o almoço.
T – Tombo. Definição: desequilíbrio seguido de queda e muito, muito choro.
U – Usain Bolt. O jamaicano bateu os recordes dos 100, 200 e de irreverência.
V – Vara e suas variações: ao invés de ajudar a atleta a varar o obstáculo, sumiu, deixando Fabiana varada.
X – Xi Jinping: vice-presidente da China. Xi Jinpong, seu oponente no tênis de mesa.
Y – Yelena Isinbayeva. A mais perfeita harmonia entre mulher e salto alto!
Z – Zapping. Esporte praticado por quem tem TV por assinatura e não quis perder nada na Olimpíada.

20.8.08

Número 279

REGRAS DO JOGO *

A pedra afia a tesoura. O papel embala a pedra. A tesoura corta o papel. Conte até três e, mão estendida, revele-se diante do oponente. A má escolha não garantirá sua derrota. Nem a boa levará à vitória. Sim: bastam três variáveis para demonstrar que o acaso rege o destino. Isso é o que acontece com as escolhas que fazemos na vida.

Que pedra estará em jogo? A pedra que afia e também fere, recorda e constrói. Aquela que, de um momento para o outro, abandona a inércia e voa, impulsionada pelo afã do vingador insuspeitado. Pedra que é obstáculo, silêncio, mas que pode manter abertos os caminhos. Pouso seguro para recordar o passado e peso terrível a se carregar por toda uma vida. Pode ser preciosa e não mudar o destino, nem comprar felicidade. Tornar-se lembrança do amor que não se concretizou, ou do que jamais poderá existir. E pode ser arma fatal, na violência real ou imaginada.

Que papéis estarão em jogo? O papel que embala e também ilude, embeleza, enternece. Não suporta o peso de um gesto mais ríspido, mas guarda e reproduz vidas inteiras. É o desejo que separa o filho de sua mãe, ou o que une dois amantes em sua arte singular. A folha que registra o vazio cronometrado da existência ou o milagre de uma vida repleta de impossibilidades. O bilhete que a dor enegreceu, a mensagem jamais revelada, a notícia de morte oculta na frieza dos diagnósticos. Os papéis todos que a vida nos impõe, descobre ou liberta.

Que tesoura estará em jogo? A tesoura que corta e salva, aborta e contorna. Enquanto uma lâmina acaricia a face da outra – tão íntimas e letais –, partem o que entre elas se intromete. A tesoura que rompe as ilusões serve também para dar fim ao sofrimento. Ela oferece ao poeta o desfecho ferino e à prostituta, a vingança sutil. Seu corte preciso parece ceifar a vida que se vai precocemente, mas é instrumento que não se guia por si – sempre haverá uma mão a lhe indicar a liberdade ou a tirania.

Entre pedra, papel e tesoura, eu e mais quatorze colegas escolhemos escrever. Contamos até três e, almas estendidas, revelamo-nos uns aos outros durante a Oficina 38. Perdemos um tanto de ingenuidade. Ganhamos um pouco mais de experiência. Mas, tal escolha – cursar a Oficina de Criação Literária da PUCRS – não nos garantiu vitórias ou derrotas: habilitou-nos ao jogo. Que jogo? Pode ser aquele que começou em dois semestres do ano passado e agora apresentamos nas páginas da Antologia Pedra, papel e tesoura – Contos de Oficina 38.

A Antologia – organizada por Luiz Antonio de Assis Brasil e editada pela Bestiário – terá seu lançamento no dia 26 de agosto em Porto Alegre, no Cult Pub (Comendador Caminha, 348, ao lado do Parque Moinhos de Vento), às 19h30min. Partindo dos sentidos literais e simbólicos dos elementos, cada autor foi provocado a escrever três contos inéditos. O resultado não poderia ser mais surpreendente: um livro em que quinze escritores de vozes literárias distintas alcançam uma combinação ao mesmo tempo multiforme e coesa. Uma obra que pode ser lida do começo ao final ou pinçando-se cada autor, sem que a proposta original se perca. Apareça lá! Conte até três e estenda os olhos: o leitor é parte da regra do jogo.

*Crônica adaptada do texto de apresentação do livro Pedra, papel e tesoura, Contos de Oficina 38. O convite logo abaixo é para você!

CONVITE!


14.8.08

Número 278

SEM TEMPO A PERDER

“Ainda assim acredito ser possível reunirmo-nos
Tempo Tempo Tempo Tempo num outro nível de vínculo
Tempo Tempo Tempo Tempo”

Caetano Veloso


Eusébio não gostava de perder tempo. Por isso, deixou de ir ao supermercado: mandava a lista de compras para o gerente via computador e, também assim, pagava a fatura. Ganhava os quinze minutos de ida, os vinte de passeios pelos corredores, os cinco da fila do caixa e os quinze minutos de volta. Contando os deslocamentos entre o apartamento e a garagem, a soma alcançava uma hora.

Érika também não gostava de perder tempo. Por isso, jamais almoçava em restaurantes: pedia para um colega de escritório trazer um lanche quando voltasse ao trabalho, mandando o dinheiro com ele. Ganhava os quinze minutos de ida, os vinte diante da mesa de refeição, os cinco na fila do caixa e os quinze minutos de volta. Contando os deslocamentos entre seu cubículo e a portaria do prédio, a soma alcançava uma hora.

Escobar era outro que não gostava de perder tempo. Por isso, parou de freqüentar o estádio de futebol: assinou um pacote de TV que contemplava todos os campeonatos da primeira, segunda e terceira divisões nacionais – fora os certames estrangeiros. Ganhava os quinze minutos de ida, os quinze de volta e, na melhor das hipóteses (jogo de meio de semana no início do campeonato regional), os trinta minutos de antecedência para sentar-se em um bom lugar da arquibancada. Logo, a soma mínima alcançava uma hora.

Sem falar em Elisa, que odiava perder seu precioso tempo. Por isso, abandonou o hábito de ir ao cinema: passou a alugar filmes na volta do trabalho, deixando-os na caixa de coleta da locadora na manhã seguinte. Ganhava os quinze minutos de ida, os cinco procurando uma vaga no estacionamento, outros cinco entre o carro e a fila do ticket, mais os quinze minutos de volta. Contando o tempo de segurança para entrar no shopping com a antecedência necessária para garantir o ingresso, a soma alcançava uma hora.

Egon e Edna, ao contrário, não viam tantas vantagens assim em aproveitar as facilidades da vida moderna. Muito menos se deixavam cair na tentação de virar workaholics, vidiotas ou ermitões. Conheceram-se diante de uma prateleira refrigerada de iogurtes, quando trocaram impressões sobre uma ou outra marca, sorrisos e números de telefone. Passaram a almoçar juntos de vez em quando, aproveitando que não trabalhavam muito distante um do outro. Descobriram afinidades insuspeitas, como o gosto por filmes de ação e cores clubísticas. Viram a amizade evoluir para uma paixão tranqüila e acabaram juntando as escovas de dentes.

Um dia, enquanto o casal aproveitava para tomar um café antes da sessão de cinema, Egon falou que sentia saudade do pessoal com quem costumava se encontrar. Tinha dois grandes amigos: Escobar e Eusébio, que nunca mais vira. Parecia que nem moravam na mesma cidade. Edna também fazia parte de uma turma muito ativa que, com o tempo, foi perdendo o contato. Ressentia-se da distância com Elisa e Érika, parceiras inseparáveis outrora. Só tinha notícias delas em mensagens de Natal e aniversário.

Egon e Edna repudiaram a idéia de perder os velhos amigos de vista e decidiram tomar a iniciativa. Tentaram marcar um encontro, um jantar, um cineminha que fosse. Deu em nada: eles outros alegavam uma eterna falta de tempo. Muita insistência e poucos resultados depois, o casal percebeu que a proposta era completamente inviável. Por fim, desistiram. Afinal, ninguém nessa história parece gostar de perder seu tempo.

11.8.08

Convite!

Com orgulho, sou um dos 15 excelentes autores que autografam dia 26 de agosto. E convido a todos para prestigiarem nosso trabalho.
Lançamento do livro:
Pedra, papel e tesoura -
Contos de Oficina 38

Como inovar em uma trigésima oitava Antologia? Este foi o desafio auto-imposto pelos componentes da Oficina de Criação Literária da PUCRS de 2007, sob orientação de Luiz Antonio de Assis Brasil. E a difícil resposta surgiu brincando: pedra, papel e tesoura. Partindo dos sentidos literais e simbólicos destes elementos, cada autor foi provocado a escrever três contos inéditos. O resultado não poderia ser mais surpreendente: um livro em que quinze escritores de vozes literárias distintas alcançam uma combinação ao mesmo tempo multiforme e coesa. Uma obra que pode ser lida do começo ao final ou pinçando cada autor, sem que o sentido original se perca. Entre pedra, papel e tesoura, estes jovens autores escolheram escrever. E o leitor é parte inseparável do jogo.

7.8.08

Número 277

ADVERSÁRIOS

Os Jogos Olímpicos da Era Moderna podem ser considerados uma bela iniciativa de congraçamento e paz. Porém, é evidente que todo esporte carrega no íntimo uma condição de simulacro de guerra, uma pequena batalha simbólica, regrada e controlada, funcionando como vacina contra nosso pendor beligerante. Não fosse verdade, finda a competição, não teríamos vencidos e vencedores. Ou mesmo homens para serem festejados como heróis.

Assim, de modo consciente e planejado, países com ambição hegemônica utilizam-se da festa olímpica como plataforma de propaganda político-ideológica, cultural e, principalmente, econômica. Contabilizam suas vitórias nas pistas, raias e estádios na soma de pontos para o controle da ordem mundial. Medem suas forças homem a homem, transformando o quadro de medalhas em avais para suas posições de dominação sobre outros territórios e mentes. E, claro, faturam os preciosos segundos de exposição global de suas cores, marcas e conceitos. Vencem no esporte como vencem na vida.

Vejamos o caso deste ano, com a China recebendo a oportunidade de ser país-sede. Desde a vitória em sua indicação, ou mesmo antes, o governo chinês trata a oportunidade como uma ferramenta capaz de inserir o país no seleto grupo das superpotências econômicas mundiais. Faz de tudo para provar às demais nações que o gigante, outrora adormecido, despertou outra vez para sua vocação imperial. Lembrando um pouco a intenção nazista dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, ela associa as esperadas vitórias de seus atletas com o futuro êxito nos campos da economia e política mundial.

Mas utilizar o sucesso esportivo como modelo de prosperidade não é algo exclusivo das grandes potências. Basta olhar para o exemplo de Cuba: o pequeno conjunto de ilhas caribenhas transforma seus atletas em garotos-propaganda de sua política social. Mais: o faz com um balanço positivo inegável – desconsiderando, aqui, juízos de valor sobre sua forma de governo. Ao comparar o potencial aporte de riquezas (materiais, humanas e econômicas) de Cuba com o Brasil, nossa tradicional posição hierárquica no quadro de medalhas se torna, no mínimo, vergonhosa.

Por falar em Brasil, ou em sua trajetória no ranking de pódios olímpicos, suponho que, de quatro em quatro anos, perdemos a oportunidade de olharmo-nos no espelho para refletir sobre a pátria amada, idolatrada, salve e salve. Vivendo em um país de dimensões continentais, caldeirão de raças, orgulhoso de sua capacidade criativa de seus ricos mananciais, será que nunca desconfiamos de algo errado no pífio saldo de louros alcançados através dos tempos? Tal imagem negativa é percebida de modo límpido por outras nações. Um recado claro de como tratamos o povo e suas potencialidades. Ou do tempo que falta para deixarmos de ser uma nação subdesenvolvida.

Não quero aqui desqualificar nossos atletas. Ao contrário, para habilitar-se à luta por medalhas de ouro, outras guerras já precisaram vencer: a falta de política esportiva de base e os parcos investimentos em infraestrutura e capital humano. O pior é que os esportistas nem se queixam, pois estão em pé de igualdade com as áreas da educação, da cultura, da pesquisa etc. Depois, caso cheguem ao topo, ainda precisarão lidar com a culpa incrustada por demagogos de plantão, para os quais a elite esportiva nada merece de apoio de uma nação onde há fome – gente que odeia (teme) o sucesso.

Em 2008, a China estará mostrando ao mundo sua pujança. Outros povos desfilarão sua tradicional competência e supremacia. E, nesta guerra metafórica, o Brasil se apresentará com os melhores soldados – na maioria, atletas que ultrapassaram toda a sorte de dificuldades. Dentre eles, alguns poucos heróis vencerão suas batalhas na base da superação. No grito. Sem balas na agulha. Depois, ao retornar com medalha no peito, posarão sorridentes para fotos ao lado dos primeiros adversários que precisaram superar: nossos governantes.

31.7.08

Número 276

PARA ALÉM DA LEMBRANÇA

Ninguém estranha quando um velho não consegue mais jogar futebol. Raros são os idosos firmes no campo, atentos e ágeis. Ninguém estranha quando velhos adotam o táxi como meio de locomoção. Aliás, todos consideram isso até prudente, pois não querem ver a integridade física em risco diante de uma diminuição nos reflexos. Boa surpresa é quando alguém com cinqüenta anos de carteira de motorista segue uma rotina intacta ao volante. Ninguém estranha quando um velho pede ajuda para um moço carregar o bujão de gás ou as compras do supermercado. Difícil é uma pessoa sustentar o tônus muscular a ponto de suportar carga sem a menor seqüela, quando os anos já lhe pesam tanto.

Ninguém estranha quando um velho procura diminuir sua intensidade de trabalho, ou mesmo optar pela aposentadoria. Esse direito, respaldado por lei, muitas vezes é imposto pela saúde – tal fragilidade, também, não é algo de se estranhar. Diferente, sob certo aspecto até louvável, é testemunhar um velho trabalhando sem parar até o último de seus dias. Ninguém estranha quando um velho deixa o apartamento que está localizado quatro lances acima do solo para morar no andar térreo. Ou em um prédio com elevador. Espantoso é o velho arriscar um tombo por pura teimosia e ninguém fazer nada a respeito.

Ninguém estranha quando um velho prepara sua sucessão nos negócios. Ou quando ingere quatro comprimidos por dia para equilibrar o organismo; ou quando joga damas por horas a fio; ou mesmo quando pula a página do obituário por preferir a ignorância à desilusão. Ninguém estranha quando um velho chora à toa. Estranhamento causa o idoso que, nem depois de uma vida inteira, se dá o direito à livre expressão das emoções.

Dito isso, por qual razão estranhamos tanto quando um velho se repete o tempo inteiro? Ou se, simples e definitivamente, não nos reconhece no primeiro olhar? Ou, nos reconhecendo, teima em admitir que nos tornamos adultos? Ou nos confunde com o médico, quando somos o amigo, sobrinho ou filho? Por que estranhamos quando as gavetas da memória perdem a etiqueta indicativa dos eventos, causando tanta confusão? O cérebro não será merecedor da mesma complacência que imputamos aos reflexos, à força muscular, à resistência das articulações e do esqueleto? É um crime assim tão grave se tornar um esquecido?

Estranho mesmo deveria ser aquele jovem capaz de jogar futebol, de subir quatro pavimentos pulando os degraus de dois em dois, de comandar várias empresas ao mesmo tempo, de conduzir um automóvel por muitas horas, de citar com precisão pessoas e fatos remotos ou atuais, enfim, no auge de suas faculdades físicas e mentais, esquecer-se de um velho querido. Um velho que não mais poderá procurar por ele, oprimido pela limitação física. Um homem que, um dia, quando brilhante, sempre lembrou dele e, quem sabe, o ajudou a tornar-se tão capaz.

Todos temos ao menos um velho para lembrar de fazer-lhe uma visitinha, quando não vários deles. Caso não façamos, nem que seja uma vez ou outra – quando a saudade da infância ou dos ensinamentos doer fundo –, estaremos sendo os verdadeiros esquecidos dessa crônica. Mesmo que aconteça de não sermos reconhecido pelo velhinho de primeira, ou sermos confundidos com outro, vale muito esta suave pena. Nada é mais gratificante do que ver um sorriso largo na despedida e escutar as palavras sinceras:

– Obrigado por ter lembrado de mim!

Como esquecer?

24.7.08

Número 275

$EPARAÇÕE$

Desde que foi instituído, em 1977, o índice de divórcios cresceu mais de 50% no Brasil. Este percentual ganharia ainda mais vitamina se fossem computadas as separações de casais que, mesmo tendo vivido em situação matrimonial, romperam depois de alguns pares de anos sem jamais terem pisado em um cartório. Os fatores que contribuíram para este fenômeno são muitos e de toda ordem. Mas, diante do vultoso número de ocorrências, se acontecesse de todos os casais de hoje adotarem o “até que a morte os separe” ou, pior, o “viveram felizes para sempre”, quebraria a economia nacional.

Sei que separação, mesmo quando consensual, é um negócio terrível. Cada qual sai juntando os cacos dos ideais quebrados ao despencar da prateleira elevadíssima das expectativas amorosas. O que me ocorreu agora, lendo uma despretensiosa e divertida reportagem de revista masculina, é que, além de dramáticas, as separações são geradoras de ótimos negócios. Os advogados sabem muito bem disso. Porém, a cadeia econômica que se beneficia do fato vai muito além das varas de família.

Instalada a crise em um casal de classe média, a primeira categoria que se inscreve para auferir lucros é a dos psicólogos. (Sim, sim: tem outra turma que ganha dinheiro antes ainda, quando o casal fica de mal. Mas essa não passa recibo.) Nos consultórios, cônjuges e filhos se preparam para o que está por vir, elaboram perdas, projetam convivências. Dependendo da taxa de êxito alcançada pelos psicólogos, os laboratórios virão a faturar com produtos diferentes: em um extremo, antidepressivos. No outro, preservativos.

Marcada a data, chega a vez do setor imobiliário entrar na roda: é preciso comprar ou alugar um apartamento novo; vender a casa para ser transformada em dois apartamentos; vender do apartamento para virar um carro e um JK, essas coisas. Empresa de mudança, arquitetos, pedreiros, pintores, eletricistas, encanadores e diaristas são os próximos a escutar o telefone tocar – isso quando a mudança não acontece para um apart-hotel.

Passada esta fase, está na hora das lojas e indústrias da chamada “linha branca” e moveleira tirar sua lasquinha: no kit básico está o fogão, geladeira, máquina de lavar roupa e louça; cama, mesa com cadeiras, armários e sofá. Mas não pára por aí: lençóis, toalhas, panelas, pratos, talheres, copos e – importante! – taças. Lustres, cortinas, tapetes... Nossa! Quanta coisa se precisa para uma nova casa!

Antes de voltar ao setor de serviços, vamos para os últimos objetos indispensáveis que me ocorrem: muita roupa nova, óculos mais modernos, sapatos, maquiagem, lingeries, cuecas com o elástico funcionando e tudo o mais que possa devolver um pouco de auto-estima. Ou, no mínimo, disfarçar o estado deplorável.

E, enfim, chegamos na gama de novos serviços. (Não, não falarei daqueles sugeridos no início, pois para eles não se passa recibo.) Academias de ginástica lucram na hora – com sorte, logo antecedidas do cardiologista. Cirurgiões plásticos, esteticistas, endocrinologistas – para uma dieta responsável –, garçons, motoristas de táxi, redes de motéis, agências de viagens e um sem-número de profissionais esperam com avidez pela dissolução matrimonial, de olho na mudança de comportamento do ex-cônjuge.

Não ouso afirmar que casais casados não se enfeitam, cuidam-se, namoram, viajam, renovam a casa ou precisam se tratar. Só acho que um divorciozinho dispara uma série de conseqüências que tendem a movimentar a economia. Daqui a pouco, vão culpar quem casou uma só vez pela queda no mercado de ações. Além de estar traumatizando as crianças.

18.7.08

Número 274

ENSAIO DE SACADA – UMA SERENATA INVERTIDA

A estrutura tradicional da serenata é bastante conhecida: um grupo de músicos se reúne logo abaixo de uma sacada, varanda ou janela para entoar suas cantigas até que a dona da casa – ou sua filha, depende – resolva dar o ar da graça. Depois, diante da dama, e tendo toda a vizinhança desperta e encantada para servir de testemunha, o patrocinador das melodias declara sua grande paixão. Porém, mantendo o tripé música/audiência/motivação, participei de muitas serenatas mais ou menos alternativas, por assim dizer.

Por exemplo, nos veraneios da juventude, das inúmeras serenatas que promovemos em turma, nem todas tinham finalidades assim tão nobres como o amor. Com freqüência arrebanhávamos violão, pandeiro, surdo e tamborim para visitar as casas conhecidas, na alta madrugada, pelo simples prazer de tocar até que as luzes estivessem acesas. Depois, convidávamos o morador a se juntar ao grupo e seguir adiante. Era isso, ou “liberar” um pouco de bebida para os músicos e cantores. Até rolava uma sutil chantagem, cantada com os versos de Antônio Carlos e Jocafi levemente alterados: “Oh dona da casa/ Por Nossa Senhora/ Dai-me o que beber/ Senão não vou embora!” A noite era só alegria. A ressaca da manhã seguinte, por sua vez, uma tristeza. (Alerta: ninguém precisava pegar o volante de um carro!)

Por falar em chantagem, e já abandonando a sutileza, nas noites que antecediam o carnaval recorríamos ao degrau seguinte: o da extorsão. Com a desculpa de afinar a bateria, uma mini-escola de samba vagava pela praia fazendo serenatas em altos decibéis, acordando os amigos para trocar nosso silêncio por uma modesta contribuição em dinheiro. Os fins eram nobres: fundos aplicados na infra-estrutura do bloco carnavalesco. Pensando bem, éramos uns chatos que perturbavam o sossego alheio em proveito próprio. Estranho foi só um de nós ter se tornado político – a “escola” de samba dava a lição tão difundida nas campanhas eleitorais.

Meus pais, certa feita, receberam dos amigos uma emocionante serenata cujo motivo foi lindo como a paixão primeira: eles estavam enfim sós, quer dizer, sem mais nenhum filho em casa para deles depender. Como a minha mãe se emociona até hoje ao contar a história da inesquecível homenagem, creio que foi muito doce o restante daquela noite. Além do mais, as músicas escolhidas nunca mais deixaram de tocar seu coração. Nem sei se os promotores avaliam a envergadura de tão boa ação.

Ainda no campo das boas ações, o que acontecerá neste sábado em casa será um resgate da minha tradição de serenatas praieiras, mas com inovações ainda mais radicais. Inverteremos as posições, deixando os músicos na sacada da frente, enquanto o público se posicionará na calçada. Trocaremos também a madrugada pela tarde de sábado. A iniciativa, que foi batizada de Ensaio de Sacada, é uma promoção dirigida aos vizinhos do condomínio em prol da Campanha do Agasalho 2008. Esperamos usar a música como aglutinador, apostando no inusitado desta situação como chamamento. Incentivamos a todos para virem assistir jazz e bossa-nova trazendo doações de roupas e alimentos para a comunidade carente do município.

Valer-se de apresentações de artistas para causas sociais não é nenhuma novidade. O Sting e o Bono Vox, entre outros, fazem o mesmo, porém com repercussão mundial. Mesmo assim, duvido que algum dólar amealhado nos mega-shows internacionais tenha chegado aqui por perto – mérito que teremos. O singelo Ensaio de Sacada já comoveu a meninada do condomínio, que ajudou em sua divulgação. Espero que mobilize, também, os vizinhos. E que a música aqueça seus corações.