27.2.09

Número 306

ABRIR OS OLHOS


Para M.H.


Quando ela abriu os olhos, o que viu foi a luz branca e fria do hospital. Tudo bem: hoje é sempre assim e, sob certo prisma, assim é bem melhor. Antes, para voltar um pouco no tempo, ela já escutava. O médico insistia para que todos falássemos com ela, pois, mesmo que não entendesse as palavras, receberia com toda a clareza as mensagens enviadas pelo coração. Ela, dizia ele, está presente e ligada ao mundo da mesma forma que todos nós. Falem, falem muito com ela. Digam do amor, contem da vida.

Ao abrir os olhos, a expressão dela foi de espanto. Compreensível. Porém, em poucas horas, o olhar serenou. Desconfio que a fragilidade a que todos estamos expostos nesse momento é a primeira grande lição, aquela que deveria ser nossa companhia por toda a estrada. Isto é: contamos uns com os outros, ou morremos. É assim desde as cavernas. Ali, deitadinha diante de nós, ela era o retrato da falta de autonomia. Não entendia muito bem o que estava acontecendo, não falava, quase não reagia – consigo, apenas os instintos. Precisava ser banhada, alimentada, acompanhada por olhos responsáveis vinte e quatro horas por dia. Isso por um bom período.

Com o passar do tempo, vi – estamos vendo – a alegria de cada uma de suas importantes conquistas: manipular talheres, falar, dar os primeiros passos. Reaprendi com seu exemplo a dar o valor mais elevado e justo a atitudes aparentemente banais, tais como tomar banho sem ajuda, fazer refeições, ir sozinho ao sanitário, dormir em paz. Afinal, é apenas quando estamos senhores de nossas necessidades que começamos a retribuir o auxílio que merecemos. E, cada um em seu ritmo, no momento certo, a retribuição de todos virá com trabalho produtivo e útil, como foi com nossos avós e com os avós de nossos avós.

Ela me disse, muito mais em atitudes do que com palavras, que é nesse paradoxo entre autonomia e dependência que se equilibra a grandeza da humanidade. E seu infortúnio. Quando a balança pesa mais para a autonomia, tomamos decisões erradas, basicamente egoístas. Esquecemos do passado e do futuro, atendemos nossos caprichos sem medir corretamente as consequências para os demais. No outro extremo, pecamos justamente por nada decidir, delegando ao outro, sem controle ou interferência, nosso próprio destino. O que se espera de um homem adulto é o domínio desta balança: ser, num só tempo, independente e solidário.

Quando abriu os olhos, ela estava em uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). Em questão de dias, reproduziu o mesmo caminho da primeira infância – justo, pois nascera de novo. Assim, passou da total dependência para uma autonomia regular, limitada pela enfermidade residual. Ontem mesmo, ela me garantiu que ninguém passa por isso sem máculas. Porém, mais do que cicatrizes e dor, ficam as lições. Na hora, lembrei da alegria de quando os filhos começam a caminhar, comer sozinhos, ler e escrever. Notei que, dia após dia, o dever dos pais é o de transformar as crianças em homens e mulheres capazes, completos. E, junto, fazê-los perceber que não estão sós – são parte de uma teia formada por direitos e deveres sociais, passado e futuro.

Para mim foi, sem dúvida, uma cena bastante forte ver o sorriso dela, exemplo de mulher independente, comemorando vitórias tão irrisórias como a de se erguer da cama ou banhar-se livre de auxílio. A evidência de uma similitude entre o começo e o final da vida é algo espantoso e pode vir a ser bastante revelador. Isso, no mínimo, está servindo para me abrir ainda mais os olhos.

18.2.09

Número 305

PÉ ATRÁS

Até onde sei, os jogos que envolvem lutas partem de uma postura corporal defensiva sólida e equilibrada – joelhos levemente flexionados e pés em desencontro. Boxe, esgrima, judô, capoeira... Seja qual for a escola, todo mestre cuidará para que seu aprendiz não ofereça ao adversário um flanco vulnerável. Até onde sei, ninguém consegue abraçar o próximo assim, com o pé atrás. O que vale para o confronto, não vale para o conforto.

A medo endêmico tem levado especialistas em segurança a ocuparem espaços privilegiados em veículos de comunicação, normalmente contíguos às ensanguentadas editorias de polícia. Suas dicas nos ensinam a entrar e sair de garagens, caminhar pela calçada, portar objetos, sacar dinheiro do banco. Aprendemos a escolher o melhor lugar para estacionar, conduzir de forma protegida uma criança, parar corretamente no sinal vermelho à noite. Passamos a reconhecer movimentos suspeitos em nosso redor, situações nas quais determinados riscos aumentam, rotinas que nos tornam frágeis. Em outras palavras, nos chega a mensagem de que precisamos encarar o mais inocente hábito como sendo uma manobra militar. A ordem é manter, sempre, o pé atrás.

O problema é que esse ar desconfiado, essa postura defensiva, esse eterno sobressalto, tudo acaba contaminando a nossa visão de mundo. O próximo, mais do que nunca, tornou-se um oponente em potencial. Querendo ou não, transmitimos esse medo para nossos filhos, seja em orientações explícitas – replicando as dicas de segurança –, seja em demonstrações involuntárias de temeridade. Aliás, parêntese fundamental, muito estranho seria não fazê-lo, ao menos nas metrópoles brasileiras. Todo o esforço de civilização acaba se perdendo e voltamos a ser o primata que um dia desceu das árvores, tomou a postura ereta e passou a enfrentar os lobos. De diferente, apenas o lobo – agora homem.

Por tudo isso, começa a ficar muito complicado projetar um futuro mais solidário: desde o berço, as crianças são treinadas a manter o pé atrás. Minha geração ainda circulou pelas ruas sem grandes receios, ou pelo menos sem achar que poderia sofrer alguma brutalidade no menor vacilo. Havia, sim, orientações preventivas de parte dos pais. Mas nada que se compare ao comportamento de guerrilha ao qual estamos expostos. O acirramento da violência e os traumas por ela gerados exacerbam o medo, alimentam a solidão e criam uma espiral de hostilidade.

E está se tornando cada vez mais difícil escapar deste círculo vicioso. O exemplo, porém, precisaria obrigatoriamente vir de cima: administração pública honesta, instituições sólidas, polícia confiável, direitos preservados, deveres a cumprir. Muito por isso, tenho sucumbido à desilusão. Quanto mais deveria avançar nossa consciência representativa, efeito direto de muitos anos com liberdade de escolha, menos fé eu deposito no estado brasileiro. Para mim, o poder constituído, em todas as esferas, parece divorciado do bem comum numa escala crescente. Faz um bom tempo que, da mesma forma como sou obrigado a me portar na rua, cumpro a obrigação de comparecer às urnas: com o pé atrás. Postura que torna impossível abraçar qualquer causa. Desconfortáveis, vivemos a ditadura do confronto.

12.2.09

Número 304

AA

Você está sentado, pressuponho. É sempre bom estar assim no momento de receber uma notícia com peso de confissão. E não pretendo fazer rodeios: sim, sou membro de um grupo de apoio chamado AA. Aprendi que tenho um mal que nasceu comigo, é hereditário e determinante. Algo que me impõe um enfrentamento diário, com coragem, perseverança, conhecimento. Uma característica que já passei para os meus filhos, com certeza, e, por isso, me força a ser um modelo de combate. Quem sabe, ao verem o pai agindo de modo a fugir do padrão estabelecido, consigam do pior se preservarem. E, de alguma forma, anularem isso para futuras gerações. Faço parte, acima do orgulho ou do embaraço, do AA – os Alemães Anônimos.

Quer dizer, anônimos até ali: quem nos olha, logo se dá conta de que somos alemães. Está na cara, a pele denuncia. Também a cor dos olhos, o cabelo, o modo de ser, o sobrenome. Nós vemos, todos veem. Até por isso, nosso AA dispensa reuniões. A quem resolve fazer parte deste grupo, basta estar atento a tudo que implica ser alemão. E cuidar, cuidar muito com as armadilhas. A principal delas, creio, é a de atender às expectativas de cunho preconceituoso, que se agravaram depois da Segunda Guerra Mundial. De pais para filhos, gastamos a pele para fazer sumir a suástica que todos acreditam ter migrado dos uniformes do exército de Hitler para nossos braços. Não é fácil.

Outro desafio diário para quem faz parte do AA é o de amenizar nossa rigidez, nossa severidade. Conseguir achar graça de si mesmo, permitir-se falível, carente, arrependido. Amolecer o coração, desenrugar a testa, relaxar os ombros – essas atitudes que são ridículas de tão fáceis para muita gente, para um alemão viram trabalhos de Hércules. Dois italianos, por exemplo, podem trocar impropérios, jurar-se até de morte em um dia. No outro, estarão à mesa, discutindo o mesmo tema, ou um novo, e a vida continua. Aos alemães de fato, basta uma palavra enviesada, um mal-entendido, e deixarão de se falar até a morte. Mesmo entre pais e filhos. Mesmo entre irmãos. Ou especialmente entre eles.

A melhor maneira de entrar para o AA é, primeiro e definitivamente, assumir-se alemão. Olhar para si e para seus pares e sussurrar: muito bem, o que vou fazer com isso que sou? Afinal, nem tudo é ruim. Aliás, a maior parte dos atributos da alemoada gera bons resultados sociais – garantia até de orgulho. É bem o caso da vergonha: metade do ânimo de um alemão em cuidar do seu jardim e varrer sua calçada vem do prazer de estar em um ambiente bonito e asseado. A outra metade, do que imagina estar pensando o seu vizinho a esse respeito. Sim, “o que eles vão pensar” é quase um lema entre os alemães puro sangue. Na verdade, a questão é “o que eu pensaria se fosse eles”. No mínimo, que sou um relaxado, é a resposta. De todo modo, a cidade dos alemães é sempre limpa e bem cuidada. E isso não é bom?

Diferentemente dos alcoolistas, que em seu AA aprendem a evitar todos os dias o primeiro gole, aos Alemães Anônimos é permitida – até preconizada – a alemoíce social. Fazer deste mal um bem: contribuir para colocar quem está fora dos trilhos na linha e, ao mesmo tempo, descarrilar uma vez que outra. Começar em casa, sendo afetuoso e aberto – desarmando o espírito dos filhos. Mas aplicar isso também na profissão, na vizinhança, na história. Andar de braços nus e mostrar que não existe a suástica presumida. Dar e pedir colo. Perdoar. E, principalmente, perdoar-se.

P.S.: recomendo a todos o excelente filme O Leitor, de Stephen Daldry. Quadro contundente e detalhista do que é ser alemão. Ou, para casos como o meu, um revelador espelho.

4.2.09

Número 303

PÉTALAS

Bem me quero velho contador de histórias. Crônico aumentador de histórias. Inventor de histórias. Todas elas menores do que uma fração de mini-conto. Muitas sem pé nem cabeça – histórias minhocas. Algumas, poucas, com chance de conter moral. Relatos de outros tempos, mas ainda capazes de seduzir netos, sobrinhos netos, filhos dos vizinhos: a meninada.

Mal me quero velho repetitivo. Incapaz de uma nuance, de um improviso. Cheio de certezas e verdades. O senhor dos fatos com dedo em riste a pressionar uma única tecla. O primeiro a desdizer qualquer fantasia, sonho ou mentira saudável. Duro como uma foto três por quatro. Previsível. Árido. Impermeável. Temido e respeitado.

Bem me quero velho de corpo. Gordinho, se engordar. Enrugado ao permanecer esquálido. Calvo, mas penteadinho. Parceiro para longas caminhadas e pequenas peraltices. Modelo de saúde, não de beleza. E, ao contrário do preceito dos mágicos, com os olhos mais rápidos do que as mãos. Aprendendo – que fazer – anatomia pelo método mais dolorido: a dor.

Mal me quero velho de alma. Talvez preservado por fora, mas carcomido no âmago. Ranzinza. Impaciente. Plúmbeo como um céu eternamente armado para temporais. Puído e desbotado como um uniforme em desuso, mofando no baú cadeado. Rancoroso, se pobre. Avaro, contando com a boa sorte do destino. Ensinando anatomia pelo método mais dolorido: a dor.

Bem me quero velho espiritualizado. Humilde. Aprendiz. Apto para sorrir da dificuldade crescente. Leve, sim, para que a vida – e a morte – ocorram obedecendo a lei do menor esforço. Amoroso sem ser trouxa, cauteloso sem ser covarde, alegre sem ser ignorante. Desapegado de tudo o que me invejam: com meus pássaros voando soltos, fora de gaiolas.

Mal me quero velho materialista. Senhor de escravos, carcereiro, majestade. Egoísta até o último suspiro, motivo de chacota, causador de lágrimas. Vampiro. Preconceituoso, prepotente, hipocondríaco. Assombrado por conspirações, incrédulo na humanidade, pessimista contumaz. Alguém que não tenha sentimentos, e sim interesses.

Bem me quero velho se estiver valendo a pena. Se não causar dano ou sofrimento. Se conseguir me reconhecer no espelho. Se a dignidade me acompanhar. Se merecer a companhia dos mais jovens. Se contar com alguns da minha geração para traçar paralelos. Se continuar um pouco útil. Se não estiver devendo. Se, vivo, não pareça morto.

Mal me quero um velho esquecido pela morte. Isso, mais do que tudo, será o fim. E, na derradeira pétala, para que não mal me queiram, o bem me quero.