31.1.08

Número 249

CYBORG E A OLIMPÍADA

 

         Nos anos setenta (1974-78), a série televisiva O homem de seis milhões de dólares – baseada no livro Cyborg – transformou o amputado Steve Austin, astronauta vivido por Lee Majors, em super-herói. Trinta anos depois, o atleta sul-africano Oscar Pistorius se aproxima do índice olímpico mesmo sem ter as duas pernas abaixo do joelho. Porém, é impedido de pleitear uma vaga para Pequim pelo Comitê Técnico da Federação Internacional de Atletismo (IAAF). Motivo: as próteses biônicas lhe garantiriam vantagens sobre os demais competidores. Longe da ficção, forjar heróis é mais complicado.

          Toda a minha geração correu pelos pátios e calçadas imitando a trilha sonora que acelerava a performance do Cyborg. Na época, se nos propusessem trocar nossas pernas naturais por biônicas como as do Steve Austin, toparíamos imediatamente: não haveria quem nos segurasse no brinquedo de pegar, faríamos um gol atrás do outro, ganharíamos qualquer disputa de força e também, quem sabe, o coração da menina mais bonita. A medicina e a engenharia, desde antes e até hoje, trabalhavam com objetivos bem mais modestos, isto é, devolver para alguém que perdeu braços ou pernas a igual mobilidade dos ditos normais. Para um menino amputado que sonhasse correr tanto quanto eu, os superpoderes podiam esperar.

         Em três décadas temos bastante a comemorar neste sentido. Creio que bem mais de seis milhões de dólares já foram investidos em pesquisa para assegurar a muitas pessoas, e não apenas a uma (ou duas, se lembrarmos da biônica Jemmie Sommers) a possibilidade de caminhar para além da cadeira de rodas. Contornando a fatalidade através da tecnologia, a humanidade devolve a quem precisa as condições, se não ideais, próximas de uma igualdade plausível. Tomara que, com freqüência, o Cyborg esteja anônimo, bem ao meu lado na fila da padaria.

         Mas, e no caso de Oscar Pistorius, que em vez de compartilhar comigo a espera do pão, pretende estar perfilado na largada dos cem, duzentos ou quatrocentos metros rasos da Olimpíada de Pequim, que fazer? Ao negar este direito, conquistado no disparo do cronômetro, estaremos nos desviando do rumo que leva à igualdade entre deficientes físicos e pessoas com membros completos? São estas as questões impostas aos dirigentes da IAAF no momento.

         Com base na letra fria dos resultados biométricos – que apontaram vantagens ilícitas no movimento das pernas postiças –, Pistorius precisará, ao menos por enquanto, contentar-se com as Paraolimpíadas. O temor dos técnicos repousa sobre o que está sendo chamado de doping tecnológico. Algo que, trocando em miúdos, lembra muito o dilema que Steve Austin impunha a uma criança na década de setenta: que tal trocar suas pernas naturais pela glória olímpica? A luta contra doping químico nos dá pistas para possíveis respostas antiéticas... Mesmo assim, uma aura de injustiça macula a decisão da entidade. Afinal, ela condena o menino que teve as pernas amputadas aos onze meses de idade à eterna marginalidade.

Por fim, a despeito da decisão tomada agora ou em apelações futuras, por seu dedicado esforço atlético e valor simbólico, para muitos deficientes físicos – e também para mim – Oscar Pistorius já é um herói.

30.1.08

Conto contíguo 1

CONTO CONTÍGUO
 
BOAS MÃOS

 

Pestana tirou o boné e coçou a cabeça. Seu olhar acompanhava as formigas levarem pedaços de flor em fila indiana para fora do avarandado. Ponderava aquela proposta – nem sabia nadar tão bem. Quer dizer, saber sabia, disse, mas não o bastante para salvamentos. Além do mais, fazia tempo que não entrava fundo no mar. E, na última vez, em Tramandaí, fora da temporada, passou um aperto danado quando precisou enfrentar um repuxo tipo bandeira vermelha.

         – Olha aí: escondendo o jogo! – retrucou Paulo, ao seu lado. – Você até sabe qual a bandeira precisava colocar naquele dia! Fica tranqüilo... Eu vou lá, faço uma surpresa para a Jurema, nem anoitece e estou de volta. Enquanto isso, você fica em meu lugar ali na guarita, cheio de pose e sendo chamado de salva pela meninada.

         – Bom, e se alguém pedir socorro?

         Paulo fez a volta para ficar diante do amigo, segurou-lhe os ombros com as duas mãos. Sacudiu-o até seu olhar subir à tona.

         – Aí o Jair tira o sujeito da água, ora. Você fica com a corda, só dando linha para o cara, que é um peixe. E então? Conto contigo?     

         Despediram-se na Interpraias: Paulo, paisano, apanhou a condução para Arroio Teixeira. Pestana, de uniforme, seguiu caminhando até a beira do mar. Bóia e corda. Bandeira debaixo do braço. Ele e o Jair.

 

        

         Uma das crianças que sempre rondam a guarita dos salva-vidas perguntou as horas. Passa das quatro e meia. Foi o salva Pestana quem respondeu, olhando para o Jair e dando razão ao amigo Paulo. Certo ele de aproveitar o dia com a fulana – escapou-lhe o nome. Aquilo era uma rotina meio morta, mesmo. Não acontecia nada. Antes de receber a resposta, uma gritaria e um corre-corre fizeram com que os salva-vidas saíssem em disparada. Jair com a bóia. Pestana logo atrás. Mas eles só molharam até o joelho: o mar tinha devolvido alguém que se afogara bem longe dali, pela experiência de Jair.

         – Isso deve ter acontecido de manhã. Fica aqui e eu vou achar o carro da Brigada. Eles acionam o DML no rádio.

         – Mas se perguntarem alguma coisa, o que eu digo? – confidenciou Pestana.

         – Embroma. Quando eu chegar, sai de fininho que eu digo que comigo estava o Paulo. Uma mão lava a outra, não é?

         O homem se investiu de autoridade. Sem muita conversa, tratou de manter os curiosos a uma distância regular do corpo. Era uma questão de ocupar-se e nem pensar no risco de dar algum problema. No momento em que Jair voltou, o improvisado substituto saiu enrolando a corda; foi até a guarita, recolheu o restante do material e abandonou a praia.

 

 

          Insone, Pestana caiu cedo da cama. Procurou a notícia no jornal:

A empregada doméstica Jurema Santos Silva, 23 anos, natural de Canoas, é o décimo segundo caso de afogamento no Litoral Norte gaúcho. Ontem, seu corpo já sem vida foi retirado do mar pelos salva-vidas Jair Melo e Paulo Castro entre Capão Novo e Praia do Barco, cerca de nove quilômetros ao sul de Arroio Teixeira, balneário onde a moça trabalhava. Segundo testemunhas da investigação, ela foi vista pela última vez cedo da manhã, enquanto deixava a residência acompanhada de um homem não identificado. Em seu depoimento, Jair creditou os hematomas no pescoço da vítima a uma provável tentativa de salvamento. Para ele, "Dentro d'água, qualquer bem intencionado pode causar a morte de alguém. Seguro está o banhista em nossas mãos".

24.1.08

Número 248

SECANDO DEBORAH

 

Roger, o meio-campista contratado pelo Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, desembarcou na capital gaúcha trazendo na bagagem uma dúvida e uma certeza. A dúvida é se desfilará em campo o futebol que o consagrou nos bons tempos ao invés da inconstância que tem sido sua recente marca. A certeza é um gás danado para as colunas de fofoca em jornais e revistas dos pagos. Afinal, a tiracolo chegou sua namorada Deborah Secco.

Não conheço a menina, mas já estou compadecido com seu destino. Nascida em 1979 no Rio de Janeiro, ela cresceu acostumada com a sem-cerimônia carioca no convívio com os famosos: estrelas globais são numerosas por lá, tanto quanto a torcida do Flamengo. Uma atriz a mais, uma a menos no balcão da farmácia tanto faz. Em Porto Alegre, não... Cidade traumatizada pela desconfortável posição de rápido trampolim no Festival de Cinema de Gramado, sorve até os ossos um artista com peça encenada no Theatro São Pedro. Para "mais ou menos" morar aqui, o pedágio será caro.

Habitam na cidade muitas pessoas com hábitos, educação e rotinas cosmopolitas. Mas é bem verdade que, em sua maioria, os porto-alegrenses são um tanto provincianos. Assim, Deborah presenciará chiliques homéricos ao circular pelas ruas cantadas por Mário Quintana. Se tiver sorte, será apenas alvo de mil olhos a julgar e comentar sua aparência, achando-a mais baixa ou mais alta do que na TV, tão gostosa quanto o tal ensaio fotográfico já revelou, menos provocante do que deveria, simpática como aquela personagem ou insuportável como a outra.

Mas isso ainda não é a pior notícia. Desde já, ela deve estar preparada para amar incondicionalmente o Brique da Redenção. Tomar ao menos um mate por semana para satisfazer determinado(a) apresentador(a) local, festejar o churrasco, dizer que "Porto Alegre é demais" e cantar uma estrofe do hino rio-grandense. Preferir Inter ou Grêmio – ai dela se confundir o time do seu amor –, garantir que se adaptou ao clima, esperar com avidez a Feira do Livro e a Expointer. Confirmar a fama do pôr-do-sol do Guaíba, dizer que parece estar em Buenos Aires e achar o MARGS melhor que o MASP. Também admirar-se com o tamanho da chaminé da Usina do Gasômetro sempre que passar diante dela, comparar Atlântida com Copacabana, considerar a Elis Regina insubstituível, posicionar-se contra ou a favor no embate Tchê Music versus CTG etc. A vida de neo-gaúcho é um espeto sem filé mignon...

A nosso favor, deve acontecer algo parecido em Florianópolis quando o assunto for ponte Hercílio Luz, em Curitiba andando na Boca Maldita, comendo uma moqueca capixaba em Vitória, sacudindo ao som dos tambores do Olodum nas barbas do baianíssimo Elevador Lacerda ou visitando o Forte dos Reis Magos em Natal. Mas especulo. Certeza mesmo, tenho da paciência que Deborah precisará ter com os chatos que consideram o Rio Grande do Sul o umbigo do mundo, Porto Alegre seu piercing.

Para encerrar, desejo que o Roger jogue apenas o suficiente para que o Grêmio permaneça com ele por longos anos, e menos do que necessitaria para ganhar alguma vez do Colorado. E que o romance dos dois fique velho o bastante para deixar de ser notícia até para os fofoqueiros locais. Com tal sorte, a atriz poderá circular por aqui sem que todos a fiquem secando. Esse é o melhor jeito de curtir o Brique da Redenção, tomando um mate e exaltando nosso pôr-do-sol.  

18.1.08

Número 247

UM ALÉRGICO ENTRE POTIGUARES

 

Crônica dedicada aos queridos e atenciosos

anfitriões da família Negretto.

 

Quando pensei em escrever sobre minha estada de férias em Natal (RN), me veio na memória uma clássica passagem de Indiana Jones e a última cruzada. Nela, Dr. Jones Jr. (Harrison Ford), prisioneiro dos nazistas, informa que seu amigo Marcus Brody (Denholm Elliott) já está em Iskenderun com o mapa que leva ao Santo Graal. E que seria impossível localizá-lo, por ele contar com dois dias de antecipação, dominando 10 idiomas, conhecendo cada biboca da região e certamente misturado com a população local. Depois do corte de cena, o que se vê é o exato oposto: um homem perdido, incapaz de se comunicar e mais estrangeiro impossível. Bom, resguardado o exagero cômico do filme, um gaúcho teuto-brasileiro em terra potiguar se mostrou quase tão esdrúxulo quando o Mr. Brody na Turquia.

 

Na viagem, inúmeras marcas conspiravam para me destacar na multidão. Por exemplo: o olhar maravilhado para aquele mar límpido, quem sabe escondendo o esforço brutal para segurar o queixo no lugar, impedindo-o de cair. Para quem cresceu diante de um oceano escuro, bravio e linear – três palavras que definem a costa do extremo sul brasileiro –, o cristalino aquário nordestino é uma visão do paraíso. Isso sem falar na beleza das falésias, dos parrachos (recifes de corais), das piscinas naturais que surgem nas oscilações da maré, das dunas e das baías. O deslumbramento, enfim, me denunciou.

 

Minha cor, por outro lado, também não ajudou muito na tarefa de parecer tão brasileiro quanto qualquer outro habitante local. O sangue alemão que me corre nas veias é praticamente visível a olho nu, só para dar uma idéia da palidez característica. E, independente da oferta de melanina, a exposição constante ao sol equatoriano confere ao natalense mais branquinho um tom muito mais amigável do que o meu. Por lá, antes das cinco horas já é dia claro e a chuva não somou dez minutos em toda a temporada. Neste sentido, pior mesmo só se me deixasse esbaldar: o vermelho da pele me levaria ao ridículo, ou ao hospital.

 

Mas nem ao potiguar cego eu teria sido capaz de ludibriar: meia palavra basta para revelar um gaúcho no nordeste. Nada me valeu ter escutado durante a vida o tanto de Alceu Valença, Caetano, Gil, Zé Ramalho, Dominguinhos, Fagner, Lenine e outros mais. Minha melodia frasal soa Teixeirinha aos ouvidos do restante do Brasil. Ou, no mínimo, Kleiton & Kledir. Como apenas pedindo confirmação, me perguntavam a toda hora se eu era gaúcho. Algo como se, ao invés de deixar o Rio Grande do Sul, eu o levasse junto comigo. Isso é uma barbaridade, tchê!

 

Voltando ao filme do Spielberg, Marcus Brody foi encontrado facilmente por aliados e inimigos nas ruas de Iskenderun, sem nenhuma surpresa de roteiro. De minha parte, fui visto, tido e tratado como turista em todos os momentos nas praias, feiras e restaurantes de Natal. E, por mais tempo que ficasse no Rio Grande do Norte, para sempre até (de mala e cuia), nem assim eu estaria perto de ser um potiguar. Simples: em tupi-guarani, potiguar significa comedor de camarões. E eu, antes de ser um deslumbrado gaúcho alemão, sou alérgico à iguaria. Como diriam:

 

         – Pode comer não? Ih... Danou-se.

11.1.08

Número 246

(DES) AMOR ETERNO

 

Tenho um amigo que, de tanto sofrer (provocar?) desilusões afetivas, sepultou de vez a crença no amor ideal.   Mas, nem por isso, perdeu a fé no "felizes para sempre" – o que parece um contra-senso. Na verdade, passou a escolher as namoradas com um rigor científico. A pesquisa, porém, não busca conhecer as qualidades que fariam da moça uma companhia duradoura: investiga como será a reação dela no pós-rompimento. Com o fracasso tido como certo, o negócio seria ser feliz no depois. Posso imaginar a cena...

 

É domingo. Primavera. O parque distribui com ampla generosidade panoramas ideais para os mais diversos roteiros: relva macia, flores de suave perfume, sol cálido, brisa amena. Ali convivem crianças saltitantes, pais zelosos, vendedores de pipoca, cães sob controle, pares românticos. Alessandro está deitado, pernas estendidas e cruzadas. Apóia-se em seus cotovelos e descansa os olhos no meio sorriso de Ana. Ela, sentada quase de lado, mão direita na grama, também lhe fita a boca, desejosa de novos beijos. Desde sexta-feira tudo corre muito bem entre os dois. Os ares são de eternidade quando, sensível, ela vê uma sombra correr sobre a face do rapaz.

 

– Aconteceu alguma coisa, querido?

 

Alessandro diz que não é nada. Ela duvida. Ele reluta em admitir que pensava em como seria o seu ex. Ana aperta as vistas e desfaz o sorriso. Apruma-se, cruza as pernas e repousa as mãos nos joelhos. Não gostaria de falar do assunto. Agora é Alessandro quem insiste. Na certa ela que teria despachado o namorado – supõe ele, como quem pede a confirmação.

   

– Zé Otávio era um canalha!

 

Ao revelar o nome, Ana se incendeia. Passam-se dez minutos enquanto um monólogo rico em detalhes desfila nada menos do que vinte razões para desqualificar Zé Otávio. Alessandro jamais altera as feições, nem mesmo quando, a folhas tantas do processo acusatório, ele se identifica com os diversos defeitos do pobre Zé – principalmente com coisas do tipo "parecia distante, como se pensasse em outra mulher".

 

– Mas você é totalmente diferente dele, querido!

 

Ana acaricia o rosto de Alessandro que, agora sentado, retribui com um longo beijo. As crianças brincam diante do olhar atento dos pais, os cães passeiam, o pipoqueiro faz sua propaganda, o casal volta a se recostar no gramado. Alessandro cochicha para Ana, entre mordidas em seu ombro:

 

– Não dá nada. Aposto que esse tal Zé Mané foi uma exceção na sua vida.

 

Ana se eriça outra vez. Quem dera fosse! O Leandro que, por ser arquiteto também, ela ainda encontrava por aí, foi outro cafajeste. E, para piorar, deixara dela para ficar com uma loirinha sonsa, fútil. Mas se mereciam, os dois! E, em outros dez minutos, a moça destila ódio por Leandro, com sobras para Zé Otávio e leves menções desabonadoras a um certo Betinho.

 

Alessandro olha para os lábios de Ana, mas desliga-se da conversa que segue. Pensa agora em Luísa, professora de Educação Física, separada, e que, ao se referir ao ex-marido, dissera ter sido um cara bacana, e que era uma pena não ter dado muito certo.

 

Pois é: precisava ligar para Luísa.