25.11.10

Número 397

SEM RISCOS

Rubem Penz

Vejo na TV o caos da Segurança Pública no RJ. Antes, li atentamente a reportagem de capa de uma importante revista semanal brasileira. Trata-se de entrevistas (quase uma centena) com homicidas. Investigou-se o que pensam e sentem aqueles que cometem este crime capital. Estão ali os que matam por razões passionais, bandidos que liquidam outros bandidos, valentões alcoolizados, assassinos profissionais e, principalmente, indivíduos que cometem latrocínios – roubo seguido de morte. Detenho-me neste último grupo, pois notei um interessante traço em comum: quem mata quando deseja apenas roubar, o faz quando a vítima reage, ou parece reagir. Em outras palavras, mata quando está em risco.

Tenho por hábito acompanhar entrevistas com autoridades de segurança pública. Seria injusto eu dizer que eles não ligam para o quadro alarmante do momento. Porém, todos os motivos são arrolados para explicar o inexplicável: poucos presídios, leis brandas, falta de inteligência contra o crime organizado, fronteiras permeáveis para a entrada de armas e drogas, miséria, corrupção, desemprego, famílias partidas, crise de valores morais etc. Por fim, em um ponto, bandidos e polícia concordam: o cidadão não deve jamais esboçar a menor reação. Se reagir, morre, diz o ladrão. Se reagir, morre, diz a polícia. A passividade conformada atenua o risco.

A conclusão é simples: com a institucionalização da passividade (e olha que a lei do desarmamento nem passou em plebiscito), com o fim do risco para os bandidos, essa atividade precisa ser denunciada ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Num regime capitalista, não podemos admitir iniciativas privadas imunes ao inerente risco de empreender. Se o marginal coloca duas vidas em negociação (a nossa e a dele) e só um lado pode perder, Cade nele! E tem mais: a vida por um simples relógio, boné ou celular é preço abusivo! Procon nele! Nossa vida está valendo muito pouco. A outra, como disse, não está mais em risco.

Avançando o raciocínio, exercer "profissões" sem risco pressupõe estabilidade. Porém, sabemos que estabilidade não é bem assim: deve haver ao menos algum regramento. Concurso público, quem sabe. O bandido precisa comprovar conhecimento e controle emocional para distinguir entre o movimento de soltar o cinto de segurança e uma reação, por exemplo. Senão vai desperdiçar muita bala e queimar por incompetência um cidadão que poderia ser assaltado vinte, noventa vezes durante a vida útil. Estaríamos muito melhor atendidos se houvesse a certeza de que o ladrão precisou estudar, submeter-se a uma seleção, cumprir carreira na pilhagem. Ou, melhor ainda: ser eleito!

Ih, um problema – isso começa a ficar parecido com governo paralelo. Políticos não vão admitir concorrência. O que, por vias tortas, acende uma luz no fim do túnel: talvez combatam a criminalidade salvaguardando seus interesses e, de modo colateral, os nossos.

18.11.10

Número 396

TÚMULO DA POESIA

Rubem Penz

Um filho, uma árvore e um livro. Três chances de você passar pela existência terrena deixando algum legado, pequeno que seja. O filho tendo filhos (e estes outros filhos) faz com que sua carga genética se perpetue. Uma árvore crescerá, oferecendo sombra às gerações vindouras. Também frutificará e, semeando novamente a terra, conferirá à sua iniciativa jardineira ares de perenidade. E, quando você conquista a oportunidade de imprimir pensamentos em uma obra editada, estará contribuindo para a cultura da humanidade. Porém, como até mesmo a melhor receita de bolo pode abatumar, essa coisa de legado envolve riscos. E a posteridade pode trazer dissabores.

Por exemplo, alguém pariu Hitler, para citar unzinho só dos grandes monstros da História. Neste caso, ter pai e mãe explica a existência, mas não imputa responsabilidade. Pelo menos não toda... Quando uma árvore despenca sobre bens ou pessoas, causando graves danos, de nada adianta lembrar a cândida iniciativa de acomodar carinhosamente a pequena mudinha na terra e maldizê-la para todo o sempre. Quem poderia imaginar a tragédia futura? Assim como não devemos condenar grandes nomes da literatura Universal pelo mau uso que incautos fazem de seus escritos.

Quando um músico sofrível executa uma composição do genial Beethoven (trago um alemão para compensar outro*), costuma-se falar que o autor está se revirando no túmulo. Dá para se dizer o mesmo daqueles escritores cuja obra é citada sem critério, inadequada ou incorretamente. Isso quando não trocam a autoria – o que é comum na internet. Muitos são os textos que recebo atribuindo a criação ao Verissimo, Jabor ou Drummond, em uma flagrante fraude autoral. Ainda por cima escrevem de modo errado seus nomes!

Um caso clássico de autor exaustivamente citado, nem sempre com o devido respeito, é o de Fernando Pessoa. Conheci um camarada que, ao dar descarga em banheiros públicos, recita "navegar é preciso, viver não é preciso" enquanto parte sua embarcação. A cultura, no caso, está mais para o sentido laboratorial patologista do termo, do que para a literatura em seu melhor papel. Teria culpa o Pessoa? Nenhuma! (Só para não perder o gancho da escatologia, outro parceiro, ao sentir que alguém liberou um flato, cita Tropa de Elite: "Pede pra sair, número 2!")

Vinícius de Moraes é outro que não deixam descansar em paz. Os últimos versos do belíssimo Soneto da fidelidade são pau pra toda obra: "Que não seja imortal, posto que é chama. / Mas que seja infinito enquanto dure." Inclusive quando se muda, pornograficamente, uma das letras da última palavra, em chula alusão à potência masculina. Bom, neste caso, e pensando bem, se lembrarmos da vida do querido poetinha, talvez ele nem reclame muito. Até se divirta, rindo da perversão.

Por fim, outro de quem não largam o pé é Mário Quintana. Em seu Poeminho do Contra, ele diz: "Todos esses que aí estão / Atravancando o meu caminho, / Eles passarão... / Eu passarinho." Verdadeiro lema para quem almeja a perenidade, os versos do poeta dão asas ao destino e põem ovos em qualquer cesta: todos nós podemos reivindicar nossas penas diante daqueles "esses" que atravancam nosso caminho. Mas tudo tem limite – foi o que eu disse outro dia para um marido traído que evocou Mário Quintana para explicar sua mansidão diante do infortúnio conjugal. Aí foi demais! Quintana revirou no túmulo!

*Braunau am Inn, cidade natal do Führer, fica na fronteira de Alemanha e Áustria.


 

12.11.10

Número 395

NÃO ACHO NADA

Rubem Penz

Quem acha vive se perdendo

Noel Rosa

Nos dias correntes, de superexposição, há quem esteja confundindo dois conceitos muito diversos: a opinião e o palpite. Opinião é (ou deveria ser) resultado de uma análise de conjuntura, um ponto de vista fundamentado. Ou, no mínimo, produto de uma consistente reflexão. Neste sentido, ninguém de bom senso opina sobre o que desconhece, nem que seja por autopreservação. Já o palpite é diferente: ele é uma espécie de aposta. Não por acaso, ao jogar na loteria ou nos cavalos, denominamos de palpite nossa fé no sucesso da aposta. Enfim, quem apenas acha é porque, na certa, desconhece.

Vira e mexe me pedem opiniões sobre temas variados. Acho que são os óculos que, carinhosamente, denomino de inteligência artificial. Outro palpite é o ar de bom moço, centrado, que me persegue ora para o bem, ora só para atrapalhar. Isso não vem de hoje e tem se agravado na medida em que os anos de crônica se empilham em minha biografia – nada mais opiniástico do que este gênero híbrido de jornalismo e literatura. Não me iludo ou envaideço. Afinal, pedem-me opiniões aqueles que, com bom aporte financeiro, compram pareceres, diagnósticos, projeções... Mas, cuidado: jamais acreditem em meus palpites. São todos furados.

Tenho lutado diuturnamente para fugir da tentação de achar coisas. Sou o pior palpiteiro do mundo. Para minha esposa, com quem divido a rotina, venho repetindo um mantra: não acho nada. Ainda mais que, lentinho como sou, demorei quase meia vida para me dar conta de que 80% das perguntas das mulheres são absolutamente retóricas. E o índice sobe para 100% quando se refere à aparência, principalmente ao despirem o quinto vestido. Mas, mesmo nas miudezas da vida, naquilo que pouco influenciará nossa história, erro a mão com uma constância desanimadora. E sofro com as consequências, culpando-me num eterno flagelo interno. Pior: quando, malandro, resolvo contrariar meu palpite, esqueço que ir contra o palpite também é um palpite. Falho igual.

Por exemplo, nessa semana. Vínhamos de um dia escaldante e passamos uma noite abafada. Escutei a previsão do tempo com seu alerta para a chegada de uma frente fria destinada a, primeiro, provocar vento e chuva para, depois, nos ofertar frio e geada. Vinha do Uruguai e da Argentina e mudaria o tempo no decorrer do período. Mas passava das nove da manhã e o sol ainda brilhava no firmamento. A patroa tinha um compromisso profissional e me perguntou se deveria levar um casaco. Indaguei a que horas eu a buscaria de volta. No máximo às duas da tarde, garantiu. Caí em tentação. Não escutei a voz da consciência e seu necessário mantra. Palpitei: acho que não...

Quando ligou para ir buscá-la, pediu para que não me esquecesse de pegar o casaco que eu dissera dispensável. Chovia para cima, para baixo e para os lados. A temperatura descera uns dez graus centígrados quase instantaneamente. O tal período da previsão decorrera correndo. Sua gripe piorara a ponto de ela estar afônica do outro lado da linha. Um desastre aquele meu palpite.

Agora, quer saber a minha opinião sobre o fato? Foi tudo culpa minha. Como contrição, devo escrever cinco laudas em corpo oito: não acho nada; não acho nada; não acho nada; não...

4.11.10

Convite para dia 08/11


Número 394

TADINHA

Há quem goste de se colocar na posição de coitadinho. Provocar pena. Fragilizar-se. Diferente dos naturalmente humildes, ou dos inseguros, o coitadinho proposital faz uso metódico de sua posição sofredora. É um profissional da esmola, algo que pode ser (e é) muito mais do que a tradicional ajuda monetária no semáforo. Coitadismo é artifício, é proteção. Instância onde não há cobranças: o coitado nunca tem culpa. Nada mais confortável do que portar um salvo conduto obtido a partir de uma conspiração cósmica contra si.

Quer me deixar indignado? Diga que sou um coitadinho. Já fui vítima de injustiça, de violência, de humilhação. E quem não foi? Sofri feito cão vadio dos males do amor, fui caluniado... Até quiseram a minha caveira. Pequei por omissão e – ah, quanto me custa confessar – fui meio covarde em algumas situações. Coitado de mim? Jamais! Reuni forças e sempre tentei superar as adversidades, consciente de que a vida reserva tropeços para quem se dispõe a caminhar. Tombando, descobri muitos motivos para admirar as pessoas em suas vicissitudes: quanto mais sei de seus calos, mais aprecio sua coragem.

Quer me deixar ainda mais indignado? Chame alguém de coitado reiteradamente. Minha vontade é alertar: "Olha que horror, já estão te chamando de coitado. Faça alguma coisa, correndo!" Mas, quando parece consenso, quando o coitadismo vira escudo, dirijo a revolta para o outro lado: "Coitado, nada! Se faz de vítima para passar bem." Soa para mim como um habeas corpus para a incompetência, para a preguiça, para o masoquismo. Passaporte carimbado para uma vida parasitária. Deus me livre.

Este parecia ser o caso de Tadinha.

Ninguém se lembrava do seu nome: desde pequena, ainda na família, era Tadinha pra cá, Tadinha pra lá. Derrubava o vaso de flores e, tadinha, foi sem querer. Quando batia no rosto do irmão, tadinha, estava só se defendendo. Falava errado, não tinha deveres e ganhava cardápio especial porque, tadinha, era pequena. Cresceu e carregou o apelido para além muros. Levou-o consigo, inclusive, na mochila escolar. E as notas baixas de Tadinha passaram a ser explicadas por perseguições dos professores.

Casou-se com um homem bom. Alguém que compreendeu que, tadinha, era assim tão dada porque os outros abusaram de sua condição ingênua. Durante os votos de núpcias, pairava o silêncio nos bancos da Igreja: Tadinha, de todos, de tantos, escolhera o mais feio, o mais simplório. Mas, tadinha, já estava ficando para tia.

Tadinha não parava em nenhum emprego. Por isso, tadinha, vivia ganhando muita ajuda dos pais – tinha hábitos refinados e bom gosto; além de um marido esforçado, todavia mediano. Por isso, ninguém a culpou quando, tadinha, deu um pé na bunda do homem. Ele nunca estivera à sua altura. Claro que, agora que Tadinha estava com três filhos, o incompetente do ex deveria fazer de tudo para que nada faltasse.

As crianças cresceram meio soltas, pois, tadinha, não dava conta de tudo tão só. O mais velho foi para o mau caminho – acabou preso. Hoje, encontra-se foragido. A do meio se mudou para Minas Gerais. Tadinha não tem notícias da filha ingrata, que dizem estar bem situada na vida. O caçula não! Este está sempre com a mãe. Se bem que, grande coisa... Coitadinho, Tadinho tem muitas dificuldades. Os senhores aí, ou a senhora, não teriam como conseguir uma bolsa de estudos para o pobre garoto?