29.10.10

28.10.10

Número 393

DEPOIS DO CAIS VEM A ÁGUA

Rubem Penz

Já são incontáveis os anos de espera para os porto-alegrenses verem a sua área portuária revitalizada e finalmente integrada à cidade. Ao olhar para Buenos Aires e seu Puerto Madero, ou para o Porto de Lisboa, dois bons exemplos, submergia a inveja. Agora, a expectativa parece estar chegando ao fim. Em alguns momentos temi que isso nunca viesse a ser realidade, por mais que fosse um sonho coletivo. Porém, ainda no fervor da comemoração, o próximo passo se impõe. E ele é, na verdade, um mergulho, pois deve acontecer dentro das águas do Guaíba. O Brasil precisa acordar para as hidrovias.

O Cais Mauá, lindo projeto dos urbanistas Jaime Lerner e Fermín Vázquez, é o recém nascido de uma cidade mãe traumatizada por muitos abortos espontâneos. A política brasileira, e mais fortemente a gaúcha, costuma interromper os planos de longo prazo a cada troca de governo. Como ainda não tivemos governadores reeleitos no RS, significa que nenhum plano de maior fôlego, concebido para cumprir uma gestação longa, tinha chance de chegar a bom termo. Precisou um governo feminino fazer o lógico: permitir que a mesma equipe que já vinha tecendo os complicados entendimentos para vermos renascer a área costeira continuasse seu trabalho. Algo para além das siglas partidárias e visando o bem comum.

O principal traço do projeto para o Cais Mauá é a acessibilidade. Em outras palavras, a devolução de caminhos para que a cidade de Porto Alegre e o Guaíba sejam novamente integrados. Parece até mentira: mesmo com porto em seu nome, a capital gaúcha esteve ceifada do convívio com as águas que compõem sua paisagem central durante décadas. Muitas gerações deixaram de ser moldadas pelo carinho das margens, algo muito determinante na personalidade dos homens. Seríamos menos secos de afeto caso jamais erguêssemos muros entre o solo e a água – basta reparar na leveza e afabilidade dos povos litorâneos.

Mas agora que estamos chegando às bordas de um novo tempo, há que se mergulhar para dentro do Guaíba. Uma cidade com graves problemas viários não pode seguir desperdiçando traçados em hidrovias. Seja para fins turísticos, seja para transporte de carga e passageiros, o leito do Guaíba e de seus afluentes esperam por embarcações. Quem viaja pelo Brasil e pelo mundo vê o quanto de praticidade e beleza o transporte hidroviário oferece. Além do mais, é menos poluidor. Se integrado com outros modais, poderá deixar muitos automóveis guardados na garagem. Também é o caso de estimular os esportes náuticos, tais como remo e vela, e o banhismo, cada vez mais próximo com o gradual avanço do tratamento dos efluentes.

   Porto Alegre será uma das sedes da Copa 2014. Estará inserida em um contexto global só comparável ao momento em que acolheu o Fórum Social Mundial. Brasileiros por todo o mundo querem ter orgulho de nossas cidades. Caberá ao governador eleito um mergulho sério nestas questões. E ao prefeito a disposição de prosseguir remando para o mesmo lado: ambos para frente, de preferência – não merecemos retrocessos diante de tão lindo filho que a cidade acolhe em seus braços. Vamos partir do Cais Mauá para mergulhos mais profundos e voos mais altos. O sol que se põe no Guaíba há de testemunhar o nascimento de novos dias.


22.10.10

Número 392

BONDE CRÔNICA

Rubem Penz

Há uma memorável crônica de Paulo Mendes Campos com o seguinte título: Por que bebemos tanto assim? Fala de bares, é claro, e traz algumas pérolas. "É preciso escolher bem o nosso bar, pois tão desagradável quanto tomar um bonde errado é tomar um bar errado." Em nove de março, convidei um grupo seleto de escritores para, com eles, tomarmos um bar como quem toma um bonde: tínhamos um ponto de partida, uma trajetória a percorrer e um destino a cumprir. Cabia a mim ser o motorneiro da turma, aquele encarregado de levá-los a tal ponto que escrevessem crônicas para compilarmos em uma antologia. Partia a oficina Santa Sede.

A certa altura do texto, Paulo Mendes Campos cita Baudelaire: "É preciso estar sempre bêbado – de vinho, de poesia, de religião." Santa Sede! Foram meses embriagados pelo ímpeto criativo. Saber beber guarda um parentesco com saber escrever. Questão de medida, ritmo, sabor, tempo. Também de torpor, ebriedade e delírio. Fui garçom vigilante – jamais deixei que o copo dos oficinandos esvaziasse. Dependendo do tema proposto, vinha a reclamação: a dose de dificuldade estava além da conta... Mas, ao final, todos resistiam bem. Ora ficamos tontos, ora apenas alegrinhos. Nosso trabalho foi muito sério e pouco sóbrio.

"Um bar legal precisa apresentar cinco qualidades fundamentais: boa circulação de ar, bom proprietário, bons garçons, bons fregueses e boa bebida." Sim, isso é Paulo Mendes Campos. Quando pensei em abrigar a oficina em um botequim, precisava de um bar legal – por isso o Matita Perê. Desejava que a boemia imprimisse nos textos tanto sabor quanto o carvalho à bebida. Nossas qualidades também precisavam ser cinco: boa circulação de ideias, propriedade nos apontamentos, crônicas bem servidas, bons autores e... boa bebida. Juntando tudo, tivemos algumas noites nota dez. Na média, o bar e a oficina nos fizeram passar muito bem.

Em tom professoral, Mendes Campos alerta que "quem vende bebidas deve ser linchado quando exige de seus fregueses comportamento de casa de chá". Quando a oficina começou, eu sabia que estaria, vez por outra, na selva das opiniões. Desejava isso, no fundo. O ambiente acadêmico e os centros culturais são locais excelentes para abrigar oficinas. Mas a crônica, e a poesia, têm algo de indomável em seu âmago. "A vida ao rés do chão", conforme diz Antônio Cândido. Lidar com a descontração crônica das bolachas de chope, e nem assim perder a lucidez, estava na mesa. Colarinho branco, só o dos copos. Mas o chá sempre esteve liberado – tolerância plena com as diferenças.

Já no final da crônica, Paulo Mendes Campos acerta na mosca: "Transpondo a porta do bar, o homem age com toda a pureza e inocência, buscando fugir ao sofrimento, tentando cumprir a sua vocação para o prazer...". É isso! Melhor, só mesmo se levar junto seus amigos, todos no mesmo intento. Dez meses atrás, embarquei uma turma de vocacionados num bar como se tomassem um bonde. Oficina Santa Sede. Cumprimos todo o trajeto dando curvas nas dificuldades, apreciando textos como quem está diante de paisagens, firmes para que jamais faltasse energia. Aos escritores, minha imensa gratidão por usarem minha companhia.
Agora, em nosso derradeiro ponto, a certeza de que tomamos o bar certo – um botequim bonde crônica, com perdão do inevitável trocadilho. E começa a viagem dos leitores! Convido você para ler Santa Sede, crônicas de botequim, Ed. Literalis, 238 páginas, 80 crônicas de oito autores inspirados. Autógrafos no boteco Matita Perê, nosso anfitrião, dia 26, terça-feira, 19h. Fica na Rua João Alfredo, 626, Cidade Baixa, Porto Alegre. Apenas sua leitura fará o livro cumprir o melhor destino. E, como está escrito na contracapa, "O Ministério da Saúde adverte: ler faz bem para a saúde".

15.10.10

Convite para noite de autógrafos


Número 391

FUMAÇA DE FRANGO

Quando a mamãe sorridente do comercial de supermercado retira o frango dourado do forno, cuidando para não queimar as mãos na assadeira, a coisa não é bem assim. Durante a gravação a ave não só está fria, como também envernizada e banhada por produtos químicos. São efeitos especiais para fazer aparecer a belíssima fumaça branca que, do outro lado da tela, fará brotar água na boca.

Tudo bem: na TV não existe temperatura, só a impressão de temperatura; não existe sabor, só a impressão de sabor; não existe perfume, só a impressão de perfume. Televisão é imagem, som e fantasia. Mentiras bem montadas para que sejam mais críveis do que a verdade cozida ou crua.

E propaganda política, será que segue a mesma lógica?

Odeio dar uma de Mister M e estragar a ilusão de quem acredita fielmente no que vê e escuta dos candidatos durante o período eleitoral (se é que pessoas assim estão lendo essas palavras). Porém, afirmo com poucas chances de estar equivocado: o que mais vemos nas propagandas partidárias é fumaça de frango.

São cenários milimetricamente montados para serem mais palatáveis aos olhos e ouvidos do que a vida real. Artifícios técnicos capazes de preencher as lacunas sensoriais e induzir o telespectador a acreditar que as pessoas ali estão quentes, saborosas e perfumadas. Isso é certo? É errado? Nem uma coisa nem outra: é propaganda de TV, a alma do negócio eleitoral.

A partir do momento em que nos damos conta de que tudo é falso (precisa ser falso já que é TV), a próxima indagação deve ser a seguinte: aquela fumaça tão sedutora está ali porque o candidato (ou candidata) é quente, e por isso precisa mostrar que é quente; ou porque é frio (fria), e por isso precisa desesperadamente mostrar que é... quente?

Aos marqueteiros essa questão é irrelevante. Para eles, pouco importa que a pessoa seja frango, peixe ou gado; esteja quente, fria ou congelada; seja palatável, insossa ou mesmo intragável. Para os homens de propaganda, a imagem contratada não é um pedido, é uma ordem correspondente a um preço. Tudo é técnica, tudo ardil. Homens, quando coisificados, ganham tantas camadas de verniz e banhos químicos quanto forem necessários para parecerem saborosos no final.

Mas, e agora, o eleitor deve acreditar no quê?

A resposta é simples como fritar um ovo: o eleitor deve prestar menos atenção na propaganda, e mais na biografia dos envolvidos. Isso vale para qualquer pleito, para todos os candidatos, em primeiro e segundo turno. Para as escolhas ao poder executivo e ao legislativo também. Vale até mesmo para o síndico do prédio, a quem confiamos a administração do nosso pequeno mundo.

Fácil! Todo candidato tomou decisões no passado, fez escolhas; esteve (está) ao lado de uns, combateu outros. Errou e acertou; posicionou-se ou se omitiu; evoluiu ou retrocedeu; tentou muito esconder-se. Isso, em princípio, não qualifica nem desqualifica ninguém, pois o que é mérito para um eleitor pode ser demérito para outro. Aquilo que aparece na biografia de alguém apenas é o que é, doa a quem doer. O resto é fumaça.

Fácil? A dificuldade começa quando, em política, até mesmo as biografias parecem etéreas... E a mamãe pátria sorri, oferecendo aos filhos aves pintadas de verniz.

 

13.10.10

Convite Santa Sede


8.10.10

Número 390


ESTERILIDADE

Rubem Penz

Os pais foram tudo para Regina. Diz que viveu anos de verdadeira realeza durante a infância: quando pedia, ganhava. Quando desejava, acontecia. Quando implicava, era aquilo nunca mais. Para todas as escolhas ela tinha preferência. Dormia até quando julgasse suficiente, deitava quando queria – jamais teve o sono violado. À mesa, só lhe era servido o que trazia prazer. Escolhia o roteiro das férias, o programa do final de semana, o canal de TV, a música e tudo mais. Ela é convicta: seus pais foram tudo para ela.

Mas, uma dúvida me intriga: quem teriam sido os seus pais?

Isso porque toda hora nossos amigos relatam maravilhas familiares. Um, disse que os pais ouviam música clássica durante as manhãs de domingo. Era o único dia da semana em que não havia hora para levantar, desde que os filhos não abusassem – medida complicada, mas que era de alguma forma compreendida por todos. Então, ele despertava ao som de Beethoven, Liszt, Strauss, Vivaldi... Esse amigo confidenciou que sente muita saudade daquelas manhãs de domingo, e que a mata quando, vez por outra, repete o ritual de sua infância. Também gosta de contar aos filhos outras histórias peculiares sobre seus avós. Regina nunca soube dizer a preferência musical dos seus pais. Lembraria de alguma rotina especial de domingo?

Outro camarada, que adora viajar, falou que foi dar asas ao desejo apenas na adolescência. Seus pais tinham muitos bichos: canário belga, pintassilgo, periquito, coelho, galinhas, tartaruga e dois cães. E não eram ricos a ponto de contratar alguém para cuidar dos animais. Logo, passavam as férias em casa. A partir de um momento, ele passou a aproveitar a folga dos estudos para ajudar na limpeza das gaiolas, colher ovos, sair com os cães para passear. Com isso, ganhou uns trocados da mãe e fez sua primeira viagem ao litoral, para um camping. Garantiu-nos que foi o máximo! No ano seguinte, deu aulas particulares, ajudou com os bichos, lavou carros e ficou quase um mês longe de casa. Regina lembra que ganhou hamster, cachorro e gato quando pediu. Mas não recorda de quem cuidou deles quando enjoou. Teriam sido seus pais?

Às vezes, os amigos acham que Regina não parece ser de nossa época. Todos citamos de cabeça alguns radialistas, apresentadores de TV e comentaristas – nenhum ela conhece. Nossos pais, sempre que estavam no carro, escutavam programas de notícias. Também escolhiam o canal de TV durante o jantar. Cantamos de cor umas cortinas musicais engraçadas, imitando vozes e bordões a ponto de ficarmos até melancólicos com essas lembranças. Falamos de jornalistas mortos como quem comenta sobre um tio ou um padrinho. Será que os pais dela nem ligavam para as notícias?

Pois é... Regina viveu anos de verdadeira realeza durante a infância. Só não tem muita certeza se é apta a ter filhos. A ideia de atender-lhes todos os desejos, dar-lhes tudo o que pedem e estar sempre ao dispor lhe apavora. Prefere apenas continuar cuidando das suas coisas, fazendo o que gosta, indo para onde quer a qualquer tempo. Deve isso aos valores de berço. Assim como seus pais foram outrora, Regina é tudo para ela.

Pensando bem, quem seriam seus filhos?

1.10.10

Número 389

NOEL, ADONIRAN E GARDEL

Rubem Penz

Quem é você, que não sabe o que diz?

Meu Deus do céu, que palpite infeliz...

Noel Rosa

Este ano, eu, o violonista Maurício Marques e o cantor Dudu Sperb fomos selecionados para Circuito Arte Sesc – Cultura por toda a parte, promoção do SESC/RS. Juntos, formatamos um espetáculo cujo objetivo é resgatar um pouco da vida e da obra de dois grandes mestres da Música Popular Brasileira (MPB) – Adoniran Barbosa e Noel Rosa. Ambos completam centenário de nascimento, motivo mais do que razoável para fazer subir o interesse do público e, claro, dos agentes encarregados pela divulgação. O comparecimento tem sido excelente, o que muito nos honra e alegra.

Desde o princípio, nosso trio esteve diante de um terrível dilema: com tantas e tantas músicas dignas de registro, qual escolher? Ou, melhor (digo, pior): quantas magníficas deixar de fora... Somente Noel, com suas mais de trezentas canções, preencheria umas duas horas a fio sobre o palco. Com Adoniran o quadro é semelhante, acrescida a garantia de participação do público cantando junto. Mas a solicitação era de uma hora de show, com um "chorinho" de vinte minutos, e olhe lá.

A solução foi pesquisar detidamente a biografia dos compositores para, em um roteiro justíssimo, coser numa só trama os amores, dores e alegrias com a obra poética, trajetória pessoal e legado artístico de Noel e Adoniran. Assim, fazer emergir temas fundamentais, mesmo sem ser tão conhecidos para, com eles, trazer à tona a personalidade dos artistas e o estilo de vida do Brasil da primeira metade do século passado.

Por exemplo: Filosofia, grande sucesso de Noel, cuja letra surpreende ainda mais por ter sido composta em tenra idade, foi a primeira música que João Rubinato (Adoniran) cantou até o fim em um programa de calouros. Logo, o pontapé inicial de sua própria carreira. Por isso, mereceu não só entrar no roteiro, como dar nome ao show. E seguimos com tal critério para Três apitos, Iracema, Saudosa Maloca, Palpite infeliz, Até amanhã etc. Escolhas delicadas, mas conscientes. Como também tudo o que dizer para que o público compreenda a abrangência, profundidade e relevância dos dois compositores.

Claro que, com tantas restrições impostas pelo tempo, Filosofia, canções de Adoniran e Noel vale mais como ponto de partida para quem deseja tomar contato com o legado de ambos. Porém, graças ao talento de meus companheiros, e sem temer a vaidade, nosso trabalho é preciso, acautelado, relevante. Em respeito aos homenageados, jamais cometeríamos a leviandade de subir ao palco com menos do que correção. Por isso, cheguei a ficar perplexo quando, em uma das cidades, nosso motorista veio me confidenciar:

– Olha, uma senhora adorou o espetáculo, mas pediu para avisar que Noel Rosa não nasceu no Rio, não. É mineiro, segundo o que lhe garantira uma amiga de lá.

Não consegui encontrá-la para agradecer a dica. Diria que sim, Noel é mineiro. Adoniran, também. Assim como são eles potiguares, catarinenses, pernambucanos, gaúchos... São filhos do Brasil inteiro, mesmo que um tenha vindo ao mundo em solo carioca, outro em terras paulistas. Suficientemente grandes por seus legados, eles dispensam o mistério e a polêmica de Carlos Gardel, aquele que é reivindicado por três nações.


Filosofia, canções de Adoniran e Noel / foto: Bugra Pacheco