28.1.11

Número 406

Outro homem
Rubem Penz
Marco Aurélio e Eunice já haviam ultrapassado muitas crises. A dos sete anos, o nascimento dos gêmeos, rumores de outra (nunca admitidos nem bem explicados), reveses financeiros, a síndrome do ninho vazio... Ultimatos não chegavam a ser novidade no casal.
– Marco Aurélio, quero o divórcio!
– Por que isso agora, minha querida?
– É que só hoje descobri que tenho outro homem.
– Peraí: se você tem outro homem, eu é quem deveria descobrir, não acha?
– Não é "outro" outro homem, seu leviano! Não sou dessas, viu?! É você o outro homem.
– Eunice, se o problema é a calvície, você bem lembra do meu pai que...
– Não é a calvície, Marco Aurélio.
– ...a dieta comecei recém terça-feira e ainda não deu para...
– Pára! Me leve a sério ao menos uma só vez, Marco Aurélio? Posso falar?
– Ok: você tem outro homem. Explique.
– Sabe o que me encantava em você, Marco Aurélio? O temperamento cordial, a sensibilidade, o fato de você ser caseiro... Até meio tímido. Eu sempre senti em você uma preocupação verdadeira por mim e por nossos filhos, todos nós na sua vista. Até dizia para minhas amigas durante as viagens: "O Marco Aurélio faz o tipo paternal, mas isso tem lá suas vantagens. Eu aqui em Barcelona, e ele lá em casa, cuidando das crianças".
– Se o problema é eu ter incentivado os meninos para estudarem fora, eu...
– Não terminei, Marco Aurélio!
– Certo, Eunice. E onde entra o outro homem?
– Pois hoje descobri, seu canalha sem vergonha, que na verdade você é completamente outro fora da minha vista. Inovador, expansivo e, Deus me livre, um galinha! Você acha que eu esqueci daquela sirigaita da Constância? Jamais! Você fica pra cima e pra baixo e só lembra da família quando põe o pé em casa. No doce lar é o Marco Aurélio querido e companheiro. Um duas caras, isso sim!
– Eunice, requentar a história da Constância nessas alturas... E isso de eu ser outro, agora? Não faz o menor sentido!
– Não fazia sentido com o sol em Câncer, seu nascido em 16 de julho! Mas estão dizendo que você é de Gêmeos, Marco Aurélio! Fizeram outros cálculos e mudou tudo. Gêmeos não é Câncer, Marco Aurélio. E sabe-se lá se sou compatível com Gêmeos! Olha aqui a reportagem!
– Nossa, é mesmo... Será que isso é sério? Que coisa maluca! Se não sou mais Câncer agora você é, deixa ver...
– Eu nada, devolve aqui.
– Como nada? Tira a mão! 30 de novembro, me casei com...
Uma amiga astróloga desmentiu por telefone a matéria e disse que era bobagem: os signos astrológicos não mudaram não. E ainda confidenciou à Eunice que Constância seguia morando no Canadá. Marco Aurélio preparou um delicioso jantar para comemorarem a reconciliação. Os gêmeos ligaram de Londres, mas ninguém atendeu. O signo da Serpente dera ideias afrodisíacas ao outro.

21.1.11

Número 405

A primeira crise              

Rubem Penz

Mal o presidente Lula deixou o comando da Nação, antes mesmo de notarmos sua ausência de fato (para muitos, inclusive para o próprio, a ficha demorará a cair), a atividade que mais movimentou mão de obra em seus oito anos de mandato já promete afundar em uma grave onda de desemprego. E a culpa deste fenômeno deve ser atribuída em proporções equânimes ao ex-presidente e à atual mandatária, recém eleita. Não estou falando da construção civil, que espera um 2011 auspicioso. Tampouco da indústria e do comércio, ainda embalados na onda da ascensão da classe C. O rebanho das vacas magras pastará, eu garanto, no campo da mídia.

Luiz Inácio, quando subiu a rampa do Planalto, pareceu não ter encontrado lá no alto um gabinete. Primeiro, galgou um palanque. Depois, um palco. Correligionários e oposição foram unânimes em classificar sua passagem pelo mais alto cargo da República como sendo espetacular. Incrivelmente, criticavam-no e o louvam utilizando igual termo. Afinal, mais do que um líder, Lula foi um astro. Desde o primeiro minuto da manhã, até o recostar no travesseiro, nosso presidente fazia a festa dos jornalistas de plantão. E, para seguí-lo em suas constantes viagens, os veículos precisaram montar muitas escalas de profissionais.

Se existiu algum investimento seguro nos últimos oito anos, foi o de ter repórteres e fotógrafos colados em Lula. O homem era uma usina de notícias. Sobre sua cabeça pousaram centenas de chapéus, para todos os gostos. Se recebesse motoqueiros, pousava de easy rider. Em uma plataforma de petróleo, vestia macacão, capacete e pintava as mãos de negro. Entre atletas, estava de abrigo esportivo. Opinava sobre qualquer notícia produzida no globo, criava metáforas definitivas sobre os mais variados temas. Para cada líder mundial era reservada uma graça, em cada viagem oficial era produzido um fato. Ou muitos. Fosse para rir, chorar ou esbravejar; provocando encantamento ou indignação, nunca antes na história desse país alguém foi mais disponível.

No final de semana passado, Dilma Rousseff esteve em Porto Alegre. Tudo indica que isso será uma rotina, pois há uma neta recém nascida, o ex-marido é seu conselheiro e, enfim, parecem fortes os laços de família. Agora eu pergunto: Dilma se vestiu de prenda? Foi ao Galpão Crioulo e fez um sarandeio enquanto um peão dançava a Chula? Ao menos comentou sobre o calor que faz em nosso verão? Nada. As únicas reportagens produzidas informaram do aparato de segurança presidencial e que um rapaz de uma empresa que conserta aquecedores de água foi chamado para um reparo em sua residência (tudo assim, indeterminado mesmo). E nenhuma foto. Muito menos de Dilma, protagonista, alcançando a chave de fendas ao operário. Este último, aliás, soube se tratar de uma cliente ilustre apenas depois, pela imprensa.

Voilá! Apagaram-se as luzes da ribalta, acendeu a luz vermelha nas redações. Alerta geral: nossa presidente, ao que tudo indica, candidatou-se para baixar a cabeça e trabalhar. E, como sabe qualquer autor de novela, com as personagens trabalhando não há trama que se sustente. Imaginaram um BBB ambientado em um escritório onde todos estivessem ocupados? Um desastre! Logo, aquela Dilma onipresente, sorridente e falante, quase luliforme, era pura estratégia de campanha – com eficiência comprovada, diga-se. Na vida real, a presidente preserva sua intimidade e tem alma de coadjuvante. A TV, o rádio e o jornal prescindirão de tanta gente em sua cola. E nenhum patrão gosta de pagar funcionários ociosos.

Dilma Rousseff poderá cumprir um mandato excelente, correto, sofrível ou desastroso – só o futuro dirá. Mas nada indica que teremos outro governo espetacular. Sem show, não há ibope. Sem ibope, não há empregos. Fez-se o silêncio nas redações. Os amigos jornalistas que me perdoem, mas habitavam uma bolha especulativa inflada pelo ego do presidente anterior. Seguindo a cartilha de RH, aproveitem esta crise para buscar novas oportunidades. Quem sabe na editoria de esporte? Como diria Lula, craque de verdade joga nas onze.

 

14.1.11

Número 404

Está na cara
Rubem Penz
Todos os dias, a qualquer momento, algo pode dar errado. Seja por falha humana, coincidência infeliz, desgaste dos materiais ou exceções da natureza, aquilo que foi planejado até a minúcia ocorre de maneira diferente. Todos os dias, a qualquer momento, ao imaginarmos que estamos com a situação sob controle, na verdade, temos apenas fé. Acreditar e prevenir-se são os nossos limites. Porém, algo sempre me intrigou: por que as coisas dão mais erradas para uns do que para outros? A resposta pode estar debaixo do nosso nariz.
Um dos pilares da boa educação (formal e informal) é a prevenção. Crescemos escutando advertências: pode dar choque, isso quebra, assim vai cair, cuidado, devagar... Se não estudar, perde o ano. Fumar faz mal à saúde. Se beber, não dirija.  Há, também, os avisos propositivos: use camisinha, pegue um agasalho, pergunte a quem conhece, leia antes o manual de instruções etc. Quando temos plena consciência dos riscos e, mesmo assim, seguimos em frente, reclamar da sorte é pura perda de tempo.
Contudo, o que raramente aparece classificado no quesito "atitudes de prevenção" são os bons modos – um erro. Creia: evitamos acidentes, falhas e problemas usando diariamente expressões como bom dia, com licença e obrigado. E alargamos as chances de acertos exponencialmente quando as palavras são acompanhadas por um sorriso fácil. Criar uma atmosfera de respeito, prudência e simpatia contamina o entorno, mantendo a comunicação mais clara e produtiva. E contribui para baixar o índice de stress.
Este tema nasceu de uma cena da semana passada. Uma senhora muito casmurra e seca fez seu pedido em um restaurante de praça de alimentação de shopping. Pedido extenso, complexo, para uma família inteira. Durante o tempo em que eu almoçava, ela voltou três ou quatro vezes para reclamações, cada vez mais mal humorada. Esbravejava que nunca, nunca!, acertavam seus pedidos. Desde a chegada, eu havia reparado em seus traços: tudo em sua face apontava para baixo. Sabe as pessoas com uma nuvem de chuva sobre a cabeça? Dessas. Eis a razão de errarem toda hora os seus pedidos!
Um rosto invariavelmente severo, descontente e triste não tonifica os músculos envolvidos no sorriso. Logo, fica cada vez mais custoso sorrir. Cansa. Dói. O problema são os recados que se está mandando ao interlocutor: não gosto de ti, desconfio de ti, te desprezo. Ao agir assim, desejar que tudo aconteça sempre perfeito é o mesmo que acreditar que não tropeçaremos quando andamos arrastando os pés! A vida, como as calçadas, tem imperfeições. Mas há quem tropece menos. E, mesmo ao chutar a pedra, ainda tenha ânimo para rir de sua falha, tonificando a musculatura da bochecha até a alma.
Na vasta literatura de autoajuda encontramos menções à "energia" que carregamos conosco. Uma boa maneira de explicar a fé: pensando positivo (acreditando no êxito) veríamos o sucesso vicejar. Do contrário, tudo estaria fadado ao infortúnio e a vida seria uma eterna provação. Bacana, místico... Eu mesmo sou alguém propenso a dar valor àquilo que não podemos ver ou comprovar. Até um pedinte de sinaleira já me classificou de espiritualizado – quem sabe ele enxerga além da moeda que lhe dão... Como já disse, tudo pode dar errado a qualquer momento, e acreditar na magia dos bons sentimentos é reconfortante.
Mesmo assim, como posso estar diante de um leitor agnóstico, e isso merece respeito, ofereço uma dica para as coisas darem menos errado na vida. Tipo conselho de mãe. Sorria! De modo largo, com frequência, verdadeiramente. Senão por prazer, ao menos por musculação. Agindo desta forma será menos pesado sorrir para emoldurar nossas trocas mais singelas com o próximo. E, sem mágica, tudo vai melhorar. Se tal atitude funciona? Ora, não está na cara?

7.1.11

Número 403

A solidariedade dos onze

Rubem Penz

Correm tempos de videogames irados – como qualificam meus filhos. Porém, na mais pura nostalgia, vou falar de bingo. Não bingo eletrônico, ambientado em um quase cassino e lutando no Congresso Nacional para ser legalizado e abrir no Brasil uma fresta para os dados, a roleta, os caça-níqueis e o carteado por dinheiro. Falo do bingo romântico, praieiro, com cartelas de papelão cartonado e feijões pretos para marcar os números. Tudo na maior simplicidade, verdadeira antítese dos hotéis de Las Vegas. Acontece que o ano de 2011, por causa da dezena final, me fez viajar no tempo e lembrar dos cantadores de números de bingo de minha infância e juventude. Jogos quase sempre em favor da paróquia local: para consertar o telhado – ah, a chuva que ora é benção, ora castigo...

Enquanto a roda de grades metálicas girava na velocidade da manivela, todos ficavam vidrados para, esperançosos, saber qual esfera cairia. Um salão inteiro ambicionando o liquidificador, brinde gentilmente doado pelo magazine X. Havia os que desperdiçavam a sorte para ganhar uma garrafa de uísque nacional, faca de churrasco ou dois ingressos de cinema. Outros permaneciam na expectativa dos prêmios mais vultosos, como o par de poltronas de vime, diárias em hotéis de Estâncias Hidrominerais e, claro, os eletrodomésticos. Por fim, havia os que jamais eram bafejados pelo doce hálito da sorte – minha turma –, para os quais a graça do jogo era se divertir com o animador do espetáculo:

– Meia dúzia plantando bananeiras: é o nove!

– Dois patinhos na lagoa: vinte e dois!

– A idade de Cristo: marquem o trinta e três!

No bingo, havia um número para o qual sempre cabia uma pessoa: o onze. Ano após ano, telha por telha para substituir na Igreja, cantava-se a fatídica pedra:

– Onze: as pernas do Carlinhos!

E eu quieto, agradecendo a todos os Santos pelo milagre da tradição. Afinal, bastava um olhar atento para perceber que, homem feito e pai de família, o Carlinhos há muito não era o rapazola que crescera depressa, deixando o corpo com pouco recheio. Providencialmente, eu tratava de vestir calças compridas na ocasião, para jamais estimular uma atualização no discurso. Passava o tempo e tudo me divertia, menos o enunciado do 11. Adivinhava que meu dia,cedo ou tarde, haveria de chegar.

Tanto quanto os sonhos coletivos, os pesadelos individuais viram realidade. Não sei se o Carlinhos moveu uma ação revisional, ou simplesmente caiu a ficha do cantador junto com a bolinha sorteada... Mas já era pedra certa. Uma noite:

– As pernas do Maninho (apelido de casa): é o onze!

Gargalhada geral. Até que enfim poderia vestir bermudas: a verdade nos liberta. Eu, que sempre gostei mais do número oito, e que nunca joguei na ponta esquerda, virara sinônimo de onze. Apesar de que por muito pouco tempo. Teria engordado? Nem um quilograma... O que mudou, para o meu desconsolo, foi a praia. Hoje, aquele salão está em ruínas. Arrecadam-se donativos sem nenhuma alegre contrapartida (sim, ainda há que se reformar o telhado da capela). Ninguém mais se encontra.

Quer dizer, mais ou menos. A cada novo verão, o Carlinhos, nosso vizinho de casa de veraneio, olha bem para mim e diz: "Sabe que eu tinha as pernas quase tão finas quanto as tuas?" Faço que sim com a cabeça. Ambos sabemos o que isso significa. É a solidariedade dos onze.