14.12.07

Número 245

Estou saindo de férias... Durante 3 semanas, o Rufar dos Tambores dará lugar ao mergulhar nas águas. Desejo um Natal de muita paz e um Ano Novo cheio de prosperidade! Boas Festas!

 

Natal de A a Z

A – Árvore. Pouco importa o tamanho: o ritual de montá-la com os filhos é delicioso;

B – Bicicleta. "Não esqueça da minha Caloi". Essa campanha publicitária fez parte de quantas infâncias?

C – Calor. A tradição impõe para dez entre dez Papais Noéis muito, mas muito calor no dezembro brasileiro;

D – Dívidas. Várias vezes fazem companhia às belas recordações durante longos meses;

E – "Espera até a meia-noite". Era isso que eu ouvia enquanto espiava embaixo da árvore, de olho nos presentes;

F – Felicidade. É o desejo mais freqüente. Às vezes vem maculada por lágrimas e saudade;

G – Guardanapos bordados. E toalha de linho, louça de porcelana, taças de cristal...;

H – Hóspedes. Natal é uma data que reúne famílias. Vai ver que foi daí que nasceu a gíria "peru" como sinônimo de hóspede;

I – Igreja. Convém fazer ao menos uma visita para compensar as dezessete ao shopping center;

J – Jesus. Sabe o menino na manjedoura? Lembre-se dele! É seu aniversário, afinal;

K – Kitsch. Há quem julgue o sentimentalismo natalício e a histeria comercial de última categoria;

L – Livros. Um dos melhores presentes para oferecer ao amigo secreto. A modéstia me impede de recomendar um em especial...;

M – Maria: cheia de graça, rogai por nós, pecadores, agora e na hora da provável ressaca. Amém;

N – Noel. O velhinho que, apesar da boa fama, é quem recebe o dossiê com as peraltices infantis;

O – "Oh Tanenbaum, Oh Tanenbaum..."   Cânticos em alemão: uma das minhas lembranças familiares;

P – Peru (Meleagris Gallopavo). Ave da família Phasianidae. Ágil, dribla o destino: morre na véspera;

Q – Quebra-nozes. Instrumento de metal desenvolvido para partir a casca da noz. Está no fundo da gaveta, pode procurar;

R – Roupa de Natal. Era assim que nos referíamos à melhor peça do vestuário, aquela que não deveria ser usada no dia-a-dia;

S – Salada Waldorf. Adoro. E, parece mentira: entra ano, sai ano, só preparamos para o Natal e Ano-Novo. No fim, ganha gosto de festa;

T – Trenó. O batmóvel do Papai Noel. Veículo de tração animal capaz de voar. Mistura de carroça com cheque pré-datado;

U – Ubicuidade. A única palavra que explicaria a capacidade de o bom velhinho estar em todos os lares ao mesmo tempo;

V – Velas. Antes da eletricidade, iluminavam as árvores de Natal. Ainda hoje estão entre os mais belos adornos para a Noite Feliz;

X – Xará. Um bom negócio para homens na terceira idade é deixar a barba crescer e assumir a identidade de Noel. Isso, ou a ubicuidade.

Z – Zumbido. Som que se assemelha ao ruído de insetos. Presente nos ouvidos dos xarás de Noel ao terminar mais uma noite de trabalho no shopping center;

 

7.12.07

Número 244

CARTA DE UMA DEPENDENTE

 

Circula na imprensa mundial uma carta de revoltante contundência. Ela foi escrita por alguém dependente das drogas. Diz: "A vida aqui não é vida, é um desperdício de tempo"; "Aqui vivemos como mortos. Estou mal fisicamente. Não consigo comer, estou sem apetite, meus cabelos estão caindo em grande quantidade"; "Não tenho vontade para nada. Creio que esta é a única coisa boa...".

 

A mensagem, que serviria como uma luva para ser emitida por alguém que afundou no precipício da dependência química, é de Ingrid Betancourt, uma franco-colombiana que está há mais de cinco anos em cativeiro. Ela é refém das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – FARC –, um grupo de narco-gerrilha. Enfim, sua liberdade depende da disposição dos barões da droga em negociar o resgate.

 

Suas dependências se resumem a uma rede e uma prateleira. Há três anos pede "um dicionário para ler, aprender algo, manter a curiosidade intelectual viva". As drogas que estão atrofiando o cérebro desta mulher são aquelas que a sociedade consome com uma hipocrisia inacreditável, e que sustentam a guerrilha. Talvez sua disposição em afrontar este sistema perverso quando candidata à presidência da Colômbia tenha sido determinante no momento do seqüestro. Com certeza a disposição social em continuar consumindo drogas ilícitas, ou de mantê-las como mercado criminoso, perpetua sua tragédia.

 

Ingrid é uma dependente em todos os sentidos. Depende da civilidade dos guerrilheiros e dos companheiros de martírio para se manter íntegra – é a única mulher em seu grupo. Depende do julgamento alheio – e sumário – para viver ou morrer. Depende dos movimentos do Exército Colombiano para ficar ou partir às pressas do acampamento. Depende da comida que lhe alcançam, das roupas que ainda tem, de um mosquiteiro para não ser devorada por insetos na Selva Amazônica. Mas depende também do esforço do governo em subjugar os criminosos, depende das orações e da esperança dos amigos e parentes, depende de uma imprensa livre e disposta a denunciar seu estado de sofrimento.

 

A inter-dependência entre os crimes de seqüestro (e os assassinatos, os latrocínios, os roubos à mão armada, a corrupção) e o consumo de drogas não pode ser mais evidente. Ela já foi alvo de campanhas publicitárias diretas e indiretas, é um discurso recorrente entre as autoridades da segurança pública e, mais do que nunca, foi amplificada no filme "Tropa de Elite". Os usuários de drogas fazem de conta que uma coisa não está ligada à outra. Porém, desde sempre, o dinheiro que sustenta a máquina tem origem na compra da cocaína, da maconha, do ecstasy. O destino dos prisioneiros das FARC depende, sim, do cardápio daquela festa bacana para a qual você poderá ser um dos convidados.

 

Morro de pena dos dependentes de drogas – pessoas que, entre nós, corroem sua vida social, sua saúde, sua família. Lamento, também, a existência de uma moral torta entre os usuários não dependentes – gente disposta a aspirar princípios em troca de um delírio químico fugaz. Contudo, nenhum destes casos é mais grave do que o de Ingrid Betancourt: alguém que, em suas próprias palavras, vive como uma morta. Dependente da droga que ela não consome. Consumida pela droga de quem dela depende.

29.11.07

Número 243 e convites

DEZEMBRO DE 1987

 

um de nós sangra moinhos

de nós, um não crê em miragens

à paz, ao infinito

em nós nasce a viagem

além

Xavier & Penz

Era uma tarde de sábado. Fazia o tanto de calor que se espera do verão porto-alegrense, amenizado por um ambiente subterrâneo – a garagem da casa dos meus pais, onde eu ainda morava. O carro da família, por força da circunstância, estava na rua, ao sol. A bateria ocupava o lugar de praxe: à esquerda de quem entrava no grande salão para dois automóveis, sobre o seu tapete verde, diante da pia ao lado da churrasqueira. Eu repassava pela terceira ou quarta vez a afinação das peles. Revisava as baquetas. Tirava com uma flanela alguma opacidade nos pratos. No peito, uma contagem acelerada queria chamar, de uma vez, o início da música. A primeira batida, contudo, coube à campainha.

 

Antônio, Marcelo e Felipe chegaram juntos. Sorriam. Fora muito fácil localizar o endereço. Trouxeram consigo, entre os amplificadores e estojos de instrumentos, algo fundamental: muita camaradagem e descontração – os três já eram grandes amigos. Perguntaram se a tomada era com certeza em 110 volts. Pediram um T. O sax tocaria acústico e, por isso, não era bom exagerar no volume. Melhor: eu não queria bronca com a família ou com os vizinhos. Ainda tinha o problema da enorme reverberação do ambiente, amenizada somente pela porta de correr em madeira. Para entrar mais ar e luz, abrimos uma grande fresta para a rua – não tinha perigo. O ideal, segundo o consenso, era ter um tecladista na formação. Enquanto não encontrássemos alguém disponível, atacaríamos de quarteto: sax, guitarra, baixo e bateria.

 

No ano anterior eu havia conhecido o primeiro deles: Felipe. Estávamos na praia, em um aniversário. Ambos um pouco deslocados na festa, sem intimidade com quase ninguém. Quando a música entrou na conversa, salvou a tarde. Num instante comparávamos influências, citando álbuns e avaliando compositores. Na época, ele tocava violão e contrabaixo. Prometeu me apresentar outros músicos que também gostavam de jazz e faziam música instrumental: Marcelo e Antônio. De fato, na volta para Porto Alegre, fui assisti-los em uma festa e, depois, em um show do Quarteto Insólito, formação de muita inventividade e pouco futuro. Após a dissolução do insólito grupo, e com os avanços do Felipe no saxofone, os três resolveram procurar um baterista. Apesar de estar mais afastado, eles tinham o meu telefone e quiseram saber se eu topava um ensaio, mais ou menos sem compromisso. Sim, claro! Marcamos.

 

Todos prontos. Coube a mim abrir a contagem. Naquele primeiro sábado, tocamos standards: Sugar, Stella by Starlight, This Masquarade. Best Wishes também, se não me engano. Alguma bossa nova – Wave com certeza. Logo escureceu e, como manda a educação, tínhamos que parar. Era tarde. Tarde demais: vinte anos se passaram e ainda não paramos. A musicalidade experimentada, resultado do bom casamento dos instrumentistas, pedia um novo encontro a cada sábado. O conjunto se mostrava melhor do que o individual, os caminhos melódicos bastante harmônicos. O Grupo Versão Brasileira, nascido assim, mais ou menos sem compromisso, sobrevive por quase metade de nossas vidas. Em dezembro 1987, eu nem sonhava como onde e estaria ao final de 2007. Hoje, não imagino minha vida sem aquela longínqua tarde de sábado. De cinco em cinco anos, mais ou menos, lembramos de que o ideal seria encontrar um tecladista disponível. Se demorar, vamos acabar desistindo.

 

Convites :

 

1)      Dias 30/11, sexta-feira (19h30min), e 1° de dezembro, sábado (17h), o Grupo Versão Brasileira celebra seus 20 anos de existência. Será no Auditório da Livraria Cultura , no Shopping Bourbon Country, 2° piso. No palco, o jazz que marcou nossa história e a participação especial de José Paulo Pires (guitarra) e Clóvis Pires Jr (percussão). Na platéia, contamos com você.

 

2)      A Casa Verde e os autores (eu sou um) convidam para o lançamento do livro Contos de Algibeira. Será na Alameda dos Escritores – Shopping Total (Cristóvão 545) –, também dia 1° de dezembro, a partir das 18h30min. Bom, dá para ver que eu chegarei mais tarde... Mas estarei lá!

23.11.07

Número 242

Convite do baterista: na sexta-feira dia 30 (19h30min) e sábado dia 1° (17h), celebraremos os 20 anos do Grupo Versão Brasileira. Serão shows no Auditório da Livraria Cultura – Shopping Bourbon Country. Venha curtir um jazz!

 

O REINO DESENCANTADO

 

Alice desobedeceu à mãe, que sonhava em preservar sua inocência mais um pouco, e se debruçou sobre a fonte das notícias. Um vacilo e, oh!, despencou no poço que, diziam, era sem fundo. A menina, já adolescente, caiu, caiu e caiu... Na medida em que rumava para baixo, porém, a gravidade parecia diminuir mais e mais. Bizarro!, pensou.

 

Deste modo, enquanto descia quase a flutuar, olhava para os lados e via coisas estranhas: prédios de apartamentos desabavam sem gravidade; escândalos governamentais se sucediam sem gravidade; centenas de assassinatos eram cometidos todos os anos sem gravidade; o trânsito matava mais do que uma guerra sem gravidade; o tráfico de drogas acontecia a céu aberto sem gravidade; aviões escorregavam nas pistas (ou se chocavam no ar) sem gravidade; vândalos pichavam e depredavam monumentos, praças, paradas de ônibus, prédios públicos e privados. Tudo e muito mais sem a menor gravidade. E assim foi caindo, caindo e caindo em si.

 

Quando a menina chegou ao fundo do poço – sim, era mentira: a fonte sempre tivera um fundo de verdade – pousou suavemente no Reino Desencantado. Embora parecesse ter descido ao inferno, tamanha distância que percorrera do mundo anterior – vamos denominá-lo de primeiro mundo – o Reino Desencantado se igualava ao lugar onde Alice sempre vivera. Erguia os olhos e sentia os efeitos do buraco na camada de ozônio; dos rios vinham os odores da poluição; das matas o zoar das serras; olhava para os valores e os via em franca degradação. Bandidos tratados como heróis e vice-e-versa.

 

Mas, qual a diferença? No tal reino, tudo era o mais perene desencanto. Ele se refletia nos olhos das pessoas que por ela cruzavam. Pairava no ar como um sentimento de impotência, ou uma falsa idéia de que sempre fora assim mesmo, ou uma dúvida sobre quando, como e por que reagir. Em contrapartida, líderes se adiantavam em dar explicações: conversa fiada que não aplacava o desencanto reinante. Logo Alice passou a viver, ela própria, desta forma. Um dia, conheceu um rapaz que lhe sorria tímido, verdadeiro príncipe desencantado, e com ele se casou.

 

Quando Esperança nasceu, Alice viu no primeiro olhar da filha um raro manancial de perspectivas. A criança era, sem dúvida, um encanto só. É sempre assim quando nascem, dizia um. Não, respondia Alice, vejo muitos bebês já desencantados nas ruas... Alice e o príncipe cuidaram de preservar o encanto da Esperança, convidando muitas fadas madrinhas para o batismo. Mas os Correios estavam em greve e não entregaram o convite para a fada Ética, que vivia exilada do Reino Desencantado. Ela ficou ofendida por continuar excluída e reeditou, feito uma Medida Provisória, sua maldição: enquanto não a chamassem de volta, trataria de manter aberta a fonte das notícias. Poço que, no futuro, consumiria a Esperança.

 

Passaram-se os anos. Alice recomendava todos os dias para que a encantadora filha andasse do condomínio para a escola, ficando longe daquele maldito poço aberto. Até que uma vez, mocinha, Esperança desobedeceu à mãe. Curiosa, debruçou-se sobre a fonte e, oh!, um vacilo...

15.11.07

Número 241

HINO AO BANDEIRA *

 

Até onde eu saiba, o Árbitro Auxiliar de Futebol, popular Bandeirinha, raramente ascende ao estrelato. Mesmo a virulência da imprensa tende a recair preferencialmente sobre o portador do apito. Uma recente exceção, a bela Ana Paula, apenas confirma a regra. Mas, convenhamos: ela virou celebridade muito mais em função de atributos não laborais, estampados na Playboy. Com justiça, é certo.

 

Compadecido com a eterna posição coadjuvante destes profissionais destemidos (sim, experimente ficar de costas para milhares de pessoas que podem discordar da sua opinião), me lancei à empreitada de compor-lhes um hino.   E, como já existe o nosso belo Hino à Bandeira, tirei proveito realizando pequenas adaptações. Espero, assim, estar homenageando estes auxiliares para lá de imprescindíveis para o bom espetáculo esportivo. Os árbitros que o digam! Vamos ao hino:

 

Salve lindo pendão na esperança/De que o jogo transcorra em paz

Tua nobre presença à lembrança /A grandeza das regras nos traz

 

Percebe o acerto que se encerra/No erguer firme, viril

Querido é símbolo que flagra/Impedido, quem ninguém mais viu

 

De tua vista do campo demarcas/Se a bola, inteira, cruzou

Outra linha, no centro das metas/Validando ou não mais um gol

 

Percebe o acerto que se encerra... (refrão)

 

Contemplando o trio perfilado/Compreendemos o vosso dever

Auxiliar quem está imbuído/De toda autoridade e poder

 

Percebe o acerto que se encerra... (refrão)

 

Sobre a imensa nação brasileira/Nos momentos de festa ou de dor

Pegas sempre, sagrada bandeira/Na banheira, mais um jogador

 

Percebe o acerto que se encerra... (refrão)

 

Bom, para quem estranhou o tema, explico: a crônica acima foi escrita sob encomenda para veicular no jornal Marca da Cal de agosto de 2007 – publicação do Sindicato dos Árbitros do Estado do Rio Grande do Sul. De parabéns Carlos Eugênio Simon, Presidente, pelo espaço sempre reservado à literatura.

 

Mas, qual a razão de ela estar aqui, agora? É por tê-la apresentado para alguns estudantes em Feiras do Livro escolares como exemplo de crônica que utiliza uma paródia. E, para a minha surpresa, por nenhum aluno ter mostrado o mais remoto conhecimento sobre o Hino à Bandeira (apesar de todos os professores terem ao menos a melodia de cor). Aproveito, então, a passagem do Dia da Bandeira – 19 de novembro – para compartilhar com vocês a minha preocupação: onde andará o civismo?

 

* Paródia do Hino à Bandeira, de Francisco Braga e Olavo Bilac.

 

8.11.07

Número 240

A TEORIA DA MOELA

 

Na família estruturada sob o domínio patriarcal, a moela, iguaria unitária e diminuta de um frango, cabia ao provedor. Também a ele era destinada a primazia na escolha do corte de sua preferência. Aos miúdos, digo, aos filhos, eram franqueados os demais cortes da ave, mais ou menos nobres, dependendo do gosto do pai. Na época, o homem gozava de prestígio, ou de poder, para ditar regras que lhe favorecessem. E ai de quem questionasse tais regras. Eu sei porque fui criança nesse tempo.

 

Duas ou três décadas se passaram e a figura do homem provedor se tornou tão rara quanto galinheiro no pátio de casa. O número de filhos diminuiu radicalmente e as mulheres ganharam o mercado de trabalho. Um cenário tão modificado exigiu novos papéis e, com eles, novas regras. Quando o homem acordou, a moela já estava no prato do filho – ou dividida, em caso de mais de um bacuri. Agora, também, as crianças escolhem os pedaços do frango que mais lhes agradam. E ai de quem as desfavoreça. Eu sei porque sou pai nesse tempo.

 

Você já se deu conta de onde quero chegar: sou de uma geração desmoelada. Não comemos a moela quando éramos filhos e não estamos comendo quando somos pais. Para piorar, nada indica que comeremos quando chegarem os netos – os avós são uns derretidos. Mas não se compadeça, porque isso não é uma queixa. É uma triste constatação, carregada de implicações simbólicas. A novidade é que me tornei um revolucionário.

 

E contra o que luto? Contra leituras mal feitas de manuais pedagógicos e toneladas de culpa por pai e mãe estarem absorvidos pelo frenético mercado de trabalho. Criaram-se alguns monstros. Meninos e meninas de classe média cobertos de mimo e proteção; isentos de limites; imunes à frustração; devoradores de moelas. Hoje, pais são amigos e confidentes. Há liberdade que beira o acobertamento. No melhor dos mundos, os rebentos desaprenderam a questionar – questionar quem, se todos estão a meu favor? Assim, sequer saem de casa.

 

Aos dezessete anos eu já sonhava em morar sozinho. Tudo o que eu queria era um JK mal mobiliado e uma moela no prato. Azar que eu tivesse que prepará-la e lavar a louça depois – os ganhos compensavam o esforço. Tive pais dedicadíssimos e que pagaram aos filhos escola e médico particulares, mas nem em sonho nos deixaram (os filhos) mandar em casa. Mesmo sem uma cobrança explícita, estava claro que não podíamos perder o ano na escola ou sair e chegar em casa quando bem quiséssemos. Para se governar, era preciso, antes, se sustentar.

 

Sim! É isso! Para o azar – sorte? – dos nossos filhos, tomamos uma decisão revolucionária lá em casa: passem a moela para cá! Vamos dividi-la entre o casal provedor e saborear na frente das crianças. Horror, horror! Eles precisam crescer sabendo que há algo para perder e para conquistar. A paternidade já nos faz abrir mão de coisas demais, sem medir sacrifício. Não parece justo perder o controle da situação – sem falar de alguns bons prazeres. Quem quiser nos acompanhar nessa trincheira, não tire o olho da moela!

31.10.07

Número 239

RESGATE

 

Há trinta anos atrás, um jogo de futebol entrou para a história de Porto Alegre. Tornou-se notícia, também, no Brasil e no mundo. Não foi o Grenal do Século ou alguma final de Copa Libertadores da América. Foi uma disputa, aliás, que nem chegou a acontecer. Porém, o que estava em jogo, na tarde de 3 de novembro de 1977, alcançava um valor inestimável: a vida de seis meninos, seqüestrados através de um ardiloso encontro esportivo. Ali, de certa forma, foi alterada a vida de todos nós.

 

Para situar os mais jovens, até os anos setenta do século passado, crianças se reuniam para jogar bola na rua, fosse em bairros periféricos, centrais, ou mesmo diante das mansões da cidade. Filhos da classe média rumavam a pé para a escola, saíam de bicicleta para a casa dos amigos e para fazer compras. Bastava dizer aos pais onde estariam nas horas seguintes e partir. Às vezes, nem isso era cobrado. Livres da pressão – da opressão – de uma rotina violenta, qualquer um de nós, meninos na época, poderia ter embarcado na conversa que prometia um campeonato e entregou um crime.

 

As dramáticas notícias de seqüestros vinham por jornais e revistas. No eixo Rio – São Paulo, parecia ser o delito da moda. Na capital gaúcha, eventos esporádicos ainda não chegavam a afetar hábitos salutares de confiar nas pessoas, andar na rua sem medo, crer na sociedade organizada. Comerciantes nem sonhavam com segurança privada diante de suas vitrines; fruteiras deixavam a mercadoria exposta na rua; cinemas cuidavam apenas de quem tentava "furar" na roleta. Em 1977 – incrível! – as casas de Porto Alegre não tinham grades nos jardins, nem os edifícios em suas portarias.

 

Assim, o seqüestro do time de meninos terminou sendo um marco histórico. Vivi o drama de perto, pois eram meus colegas de colégio – alguns de aula. Consternados, muitos lares viram nascer o medo concreto de perder suas crianças em um ato de violência. Comovidos, comemoraram quando surgiram todos a salvo, como que formando um abraço solidário com as famílias das vítimas. Depois, e de maneira acelerada, Porto Alegre foi deixando para trás a ingenuidade que franqueou a prática de um crime hediondo e tão ousado, urdido por um delinqüente amador.

 

O temor que nascia naquele momento, rápido transformou a paisagem da cidade, em consonância com a alma dos habitantes. Riscos concretos somaram-se às lendas urbanas, como a da Kombi na qual se retiravam os órgãos das crianças. Na medida em que eu crescia, e comigo o discernimento, tanto mais alerta ficava ao caminhar na rua. Vi meu bairro se tornar um deserto ao cair da noite – adeus estudantes caminhando para o colégio – e sumiram os cinemas de calçada. Em três décadas, as moradias se transformaram em presídios de segurança máxima.

 

Claro que poderia ser pior. Fosse um desfecho trágico, no aniversário de trinta anos as famílias chorariam o assassinato das vítimas. Doeria como se não houvesse passado o tempo. Ao contrário, sou convidado para um jogo de futebol que celebra a vida, relembra o alívio sentido no retorno dos seqüestrados e comemora, a despeito do sofrimento, a felicidade remanescente. Em campo, aqueles meninos tornados homens.

 

Porém, festa maior existiria para o caso de outro importante regresso: o da liberdade de andar pelas ruas de Porto Alegre sem apreensão; sem o iminente risco de ser morto por um mísero relógio; sem ser vítima de um seqüestro relâmpago; sem temer pela vida de quem amamos. Na época, seqüestraram nossa paz e nunca mais a devolveram. E o pior: pagamos por seu resgate até hoje, todos os dias. Muito, muito caro.

 

***

 

Quer aprender um pouco sobre a escritura de crônicas? Ou, conhece alguém que queira? Durante o mês de novembro, ministro ao lado de Valesca de Assis a oficina O NATAL AO ESPELHO DA LITERATURA – A VOZ DO CRONISTA. Serão 4 encontros, em terças-feiras. Horário: 9h – 11h30min. Local: Centro Cultural Auxílio ao Tema (Pe. Reus, 919 – Tristeza). Matrículas e informações no 3268-1200, ou www.auxilioaotema.com.br . Olha a chance de um Natal diferente...

25.10.07

Número 238



Dividindo a felicidade com os leitores do Rufar:

 

O Y da questão, de Rubem Penz, está entre os finalistas para o 14° Prêmio Açorianos de Literatura, categoria crônica. A indicação, por si, já representa um grande prestígio ao autor: insere seu livro entre os três melhores no gênero, enquanto o habilita a concorrer, também, ao prêmio de Livro do Ano. O resultado final será conhecido em 13 de dezembro, na Noite do Livro. Parabéns, Rubem!

Editora Literalis

 

 

CONTO COM PATROCÍNIOS II

Literatura de resultados – Outdoor

 

A porta está encostada. Mal entra, Eduardo ouve Rita, do quarto, pedir um minuto só, que já estaria pronta. Conhecendo os minutos femininos, ele dá um ok e fecha a porta atrás de si. Atravessa a sala de estar com destino à sacada – busca uma brisa de verão. Apóia-se no parapeito metálico, cruza as pernas, fita o horizonte. Escuta, displicente, o atrito da cidade. Carrega consigo uma resolução.

 

Seu olhar é atraído por um enorme frontlight, daqueles de três tempos, no exato instante do piscar na troca de tela. Brilhante, um Mazzar preto de modelo esportivo se mostra inteiro, provocante, desafiador. Potência, velocidade, perícia, Carla... Sim, é Carla quem Eduardo vê por detrás do automóvel. Ela, sempre vestida de preto, disposta às mais loucas aventuras. Sua voz suave, suas curvas audaciosas, seu controle mesclando precisão e risco. Aquilo não era uma mulher, lembra, era uma máquina!

 

Mal se materializam as sensações, gira o painel. Agora, ele se depara com as panelas em inox Bacci & Lambi, fundo triplo. Aperta os lábios, estala a língua, saliva: surge Patrícia. Se existiu alguém para levar ao pé da letra a estratégia de sedução pelo estômago, foi ela. Mulher de mil sabores, de nuances, temperos exóticos e aroma convidativo. Com ela, não havia café da manhã sem uma surpresa – que dirá o jantar à luz de velas. Agridoce aqui, salgadinha ali, cremosa. Ah, Patrícia, a quente Patrícia...

 

Novo hiato de luz. Tênis Bluesport Action. Ângela. Conhecera em uma meia-maratona, de passagem. Ela estava de passagem, diga-se com justiça, ferindo de morte sua auto-estima. Por sorte, ainda dava um tempo na dispersão quando ele completou o percurso. Começaram a correr juntos, equilibrando o preparo físico. Não demorou nada até que colocassem seus corpos em outras provas de tirar o fôlego. O combinado sempre era: quem chegasse primeiro, fazia de tudo para o outro chegar também, sem jamais descansar. Bom mesmo era quando chegavam juntos. Muito bom.

 

Outra vez Carla, para acelerar. Muda para Patrícia, para saborear. Agora Ângela, para persistir. Absorto neste moinho de recordações, Eduardo demora até se perceber observado. Vira-se e lá está Rita: toda de vermelho, tomara-que-caia, braços erguidos e apoiados na porta de correr envidraçada. Pose de estrela de cinema. Ela sorri como a dizer – que tal? Eduardo fecha os olhos, conta até dois e os abre novamente. Ainda é Rita, na mesma posição, o sorriso um pouco apagado como quem pergunta – que foi?

 

Eduardo fecha e abre os olhos outra vez, com o mesmo vagar. Rita já não sorri. Suas mãos agora estão na cintura, punhos fechados, cenho franzido. Mesmo irritada, está linda. No bolso esquerdo da calça, ele carrega um par de alianças. Mas está paralisado. Mudo. Buzinadas soam ao longe, na grande avenida, denunciando pressa. Teme piscar outra vez – há o risco de não mais encontrar na frente sua exigente Rita. A vida não é um outdoor.

18.10.07

Número 237

HÁ QUE SE ENTERNECER, SEM JAMAIS PERDER A GROSSURA

 

Ora concordando, ora com o pé atrás, leio artigos neo-feministas com uma freqüência cada vez maior. Sem dúvida, as mulheres, que já devem ser maioria nos bancos universitários, avançam firmes para o domínio das redações. Diga-se de passagem, para o domínio de tudo... Mas esse já é outro assunto.

 

Felizmente, boa parte dos textos são produzidos por mulheres que há muito abandonaram a ira contra os homens. Neles, as autoras tendem a relativizar o papel de vilão imputado ao macho no atacado para identificar, no varejo, apenas os comportamentos condenáveis. Em outras palavras, rumam para o pacifismo sexual. Porém, renitente, a antiga raiva que espumava nas palavras das ativistas de outrora foi substituída por um sentimento muito mais danoso: o desprezo.

 

A pergunta é: por que o homem nascido depois (ou no curso) da revolução feminista mereceria tal desprezo? Uma explicação recai nas possíveis escolhas de tais raivosas na hora de eleger namorados. Radicais, descartam todos os machões do espectro de possibilidades – e macheza não é, nem nunca foi, defeito. Então, acabam com uma amostra, digamos, um pouco viciada. Elas: fortes, decididas, empreendedoras. Eles: frágeis, inseguros, dependentes. Em termos de complementaridade, o casamento é perfeito. Porém, poucos homens se tornam vencedores com os atributos listados. No lugar da paz, o que obtém a feminista com quem não se preza é o controle. E o prêmio? Um banana em casa. Neste momento, ela se recorda de como era imponente o seu pai, de quanta segurança ele inspirava, e vaticina: o homem da atualidade não presta mais para nada.

 

Por outro lado, a reação masculina nestes cerca de cinqüenta anos de propaganda difamatória oscila entre o silêncio e o pastiche – este último destinado a debochar dos artigos feministas. Agindo assim, os homens ajudam a transformar o feminismo em algo totalmente do bem – a luta das oprimidas por direitos igualitários – e o machismo como 100% do mal. E, caro homem, se antes lhe cabia o carimbo de cafajeste, agora seu destino é o lixo reciclável (o lugar onde depositamos tudo o que ficou obsoleto).

 

E aí a novidade: tendem a estar realizadas as mulheres que, ao invés de comprar bonecos novinhos nas prateleiras, estão reciclando os machos jogados no lixo da história. Nossa! – dizem – como esse camarada desprezado é mais forte. Ele fala grosso, mas é capaz de tanta gentileza, não? Humm, tão seguro de si... E, incrível: outros homens o respeitam! Aposto que, com um pouquinho de tarefas domésticas compartilhadas, carinho com os filhos e reconhecimento do meu valor profissional, dará um bom marido.

 

Ah, pois é... Está na hora de inverter o dito de Che Guevara, cabra macho – ainda comentado quarenta anos depois da morte –, e reciclar com inteligência o papel masculino. Para merecer a companhia das melhores damas, hay que enternecerse, pero sin perder la grossura jamás.

 

Convite: Aproveitando o tema, convido a todos para assistirem, na 53° Feira do Livro de Porto Alegre, o evento (Re) Fazendo Gênero – novos rumos para o masculino e o feminino. Mesa comigo, Corina Breton (escritora e tradutora) e Priscila Carvalho (editora do caderno Kzuka/ZH). É dia 02/nov – sexta-feira e feriado –, 16 horas na sala oeste do Santander Cultural. No mesmo dia, 18:30h, no pavilhão de autógrafos, estarei (re) lançando O Y da questão e outras crônicas.

 


10.10.07

Número 236

CONTO COM PATROCÍNIOS

Literatura de resultados – Merchandising

 

João Carlos gira a maçaneta Clavet Veneza IIexclusivo acabamento em estanho – com todo o cuidado: na alta madrugada, o menor ruído fará despertar Maria Lídia, tanto o silêncio do Residencial Flor de Outono – no coração da Boa Vista. Nem respira. Evita até mesmo os pensamentos, que evocam o último sucesso de Máximo Jr., Serei seu, do álbum Poderes – Fonnar Music. Sapatos Pegoraro na mão, calça Digolan e camisa Voar sobre os braços. Menos de seis passos o separam da cama – vestida com lençóis Suavision, tamanho king size. Precisa deitar-se sem que a esposa perceba: já ouviu essa técnica em piadas. O triunfo está próximo.

 

Na metade do percurso, atenta para o rádio-relógio Clicktec Plus: cinco horas e cinqüenta e nove minutos. Às seis, a rádio Caporitã, programa Ontem do Amanhã, com Lourival Loureiro, invadirá o quarto com estridente noticiário. Muito azar! Abandona o plano original e parte como uma flecha para o banheiro, com o cuidado de deixar a roupa no espaldar da cadeira Ricolletto – móveis feitos para durar –, como quem despertara antes da hora.

 

No mesmo instante em que o rádio dispara, João Carlos abre a ducha Amsterdam Monocomando. Entra no box com portas de vidro temperado Vidrex mesmo antes de o aquecedor de passagem Callidys System deixar a água com a deliciosa temperatura do bem-estar. O frio dota sua voz de um vibrato peculiar, ideal para interpretar a música Serei seu, de Máximo Jr., ainda firme na memória.

 

Maria Lídia vira-se num espreguiçar longo e vê a aparência imaculada do travesseiro Plummar Plus ao seu lado. Sente o indisfarçável odor de whisky Johnny Black – fogo amigo! – vindo da camisa do esposo. De um lado, Lourival Loureiro desfila as condições do tempo, um oferecimento Paragripe Xarope. Do outro, João Carlos uiva "vem cá, meu bem / ser minha também...".

 

A mulher ergue-se com enfado. Arrasta as sandálias Leblon até o banheiro do casal. Sentada no vaso sanitário em Cerâmica Cismar, ela acompanha o vulto embaçado enxaguando a cabeça, agora sem música. Cada qual espera o oponente sacar a primeira palavra. Toalha Corpus Casal. Papel Higiênico Alvo Folha Dupla. Os olhares já estão secos. O silêncio paira sobre as gotículas de vapor. Se não houvesse nas paredes a tinta Lacca Ultra – especial para cozinhas e banheiros –, pontos de mofo seriam testemunhas daquela lenta expectativa.

 

– Se fôssemos personagens de Nelson Rodrigues – diz João Carlos, ostentando um esboço de ereção – você terminaria de baixar suas calcinhas, levantava daí e me abraçava.

 

Maria Lídia entra no jogo. Despe, enfim, a lingerie Bellinha Lycra – carícia plena – e, movimento contínuo, abre a porta do armário Movelbagno, ao seu lado.

 

– Querido, – sua voz é doce e displicente – prefiro ser personagem de Agatha Christie...

 

O último pensamento de João Carlos é lamentar a escolha do armário de banheiro para ser o esconderijo de sua pistola Schaffer Titan – possante recurso, suave recuo.

4.10.07

Número 235

SUA MAJESTADE, O PLURAL

 

Na crônica, temos a tentação de julgar que o leitor sempre concorda conosco. Peço paciência, mas vou escrever a frase outra vez: Na crônica, tem-se a tentação de julgar que o leitor sempre concorda com autor. E, desculpe – é importante –, ainda de uma terceira forma: Na crônica, tenho a tentação de julgar que o leitor sempre concorda comigo. Nas três orações, a mesma mensagem. Nelas, mensagens muito diferentes.

 

Analisando as três frases gêmeas do primeiro parágrafo, leitor atento verificará que o grau de exposição do cronista é crescente. Na primeira oração, com o uso do plural majestático (temos), o autor se esconde na multidão, chamando todo mundo para as fileiras do seu argumento. E, como é comum em uma horda, tudo o que é feito – ou dito – será diluído, para o bem e para o mal. Esta é a forma mais segura de construir um ponto de vista e, por isso, a tentação primeira do escritor. Só tem um problema: é uma pequena mentira. Ninguém passou ao cronista, a priori, uma procuração de plenas opiniões.

 

Na segunda maneira de escrever, o artifício utilizado é o da impessoalidade (tem-se). A opinião é de alguém, talvez do autor, ou de um terceiro que falou para ele, ou mesmo do leitor disposto a pegar o bonde andando. Digerida a premissa – falsa ou verdadeira, não importa –, fica permitida a elaboração de um argumento qualquer, libertando o autor para a construção de sua retórica. A engenhosidade desta configuração faz o leitor se encantar com o cronista. "Nossa, ninguém falou isso antes!" – pensará. E aí está o problema: este "ninguém" que falou antes é o escudo do autor.

 

A última forma de oração lá de cima evidencia a primeira exigência do gênero literário crônica: o discurso na primeira pessoa do singular (tenho). Ali está o autor, aquele que assina o texto, em busca de sua particular argumentação. Também, quem sabe, mirando a concordância do leitor (se bem que muitos cronistas tornam seus leitores fiéis pelo estranho caminho da discórdia). Exposto, sincero e aberto ao contraditório, o verdadeiro cronista contabiliza o proveito e o prejuízo de quem se arrisca em muitas opiniões. Às vezes, soa arrogante. Mas, raramente, covarde.

 

De todos os cronistas que acompanho, admiro especialmente aqueles que constroem seus textos com base na opinião singular. Mesmo antes de me dedicar à escritura do gênero – e a seu conseqüente estudo –, já o fazia de modo intuitivo. Estaria mentindo se dissesse que nunca me vali da impessoalidade ou do confortável plural majestático. Pior: tenho uma obra publicada para me denunciar. Há, sim, momentos em que estas formas são adequadas. O problema está em usar demais, ou mesmo tão somente, estas estruturas espertas.

 

Todavia, não posso deixar de terminar o texto sem falar naquele que, na minha opinião, é o pior tipo de cronista. O que coloca as mazelas do mundo no reino de sua majestade, o plural: não deveríamos fazer isso, agimos mal desta ou daquela forma, erramos ao pensar assim ou assado. Depois, com todos nós sob o manto do tal monarca, o autor tira seu corpo fora e oferece o bom caminho na primeira pessoa, transformando-se em Robin Hood, o arqueiro das flechas de auto-ajuda.

 

Leitor, cuidado com o cronista que usa e abusa do plural majestático. Ele pode ser o mesmo que, no estádio de futebol, atira o rádio de pilhas no bandeirinha, olha para o lado e diz: estamos muito alterados hoje, não é?

28.9.07

Número 234

AUTOMÓVEL DO FUTURO

 

Imagine comigo um consórcio entre montadoras de automóveis, companhias seguradoras e empresas de segurança privada. Seu objetivo: projetar o carro do futuro – um veículo que usa a tecnologia para garantir o bem-estar e a segurança que o cliente merece. Afinal, vivemos dias de guerra urbana... Neste devaneio, as instruções do vendedor ao feliz proprietário poderiam ser algo assim:

 

– Bom dia! Antes de mais nada, além dos parabéns, gostaria de estar dando pequenas orientações prévias, ok? Entre no carro, bata a porta, digite a senha no computador de bordo e aperte o botão azul. São exatos quinze segundos para estar apertando o botão azul, caso contrário o veículo não estará ligando o motor. Mais: estará disparando o pisca-alerta, estará travando portas e vidros e estará ganhando, em menos de oito minutos, a companhia tranqüilizadora de um pequeno batalhão armado. Botões de pânico são coisa do passado – os procedimentos de segurança, agora, são pró-ativos. Chamamos de Procedimentos de Qualificação Prévia (PQP).

 

– Depois de digitada a senha, o primeiro aviso sonoro – apito agudo – estará alertando para a colocação do cinto de segurança. Se desobedecido, além do incômodo, estará fazendo subir a prestação do seu seguro de vida. O segundo aviso – um sininho din-dom – estará pedindo para digitar um dos destinos previamente estabelecidos: sua residência, clube, academia, igreja, restaurantes etc. Aqui, a partir da página 36, o manual do proprietário estará ensinando a programar estes endereços, sujeitos à aprovação do PQP.

 

– Escolhido o local de chegada, um sistema ligado aos nossos satélites estará acionando a Central de Palpites (CP), que estará ditando o trajeto com base em variáveis de segurança, de economia de combustível e tempo. É preciso seguir o rumo sugerido de modo fiel, mesmo que pareça ilógico. Aspectos preventivos estarão escolhendo uma entre dezessete rotas ideais, de modo randômico, para evitar-se rotinas rastreáveis – não queremos clientes seqüestrados...

 

– Alertamos que estatísticas de ocorrências policiais poderão estar afetando a sua lista de destinos pré-determinados. Por exemplo: um restaurante hoje classificado no PQP como destino seguro, amanhã pode deixar de sê-lo. Nestes casos, não adianta estar digitando o código diversas vezes – como já ocorreu em clientes histéricos. O procedimento correto é estar pressionando a gerência do restaurante a estar reforçando as garantias do quarteirão.

 

– O painel colorido à esquerda é a parte visível do que chamamos Relatório de Medidas Diversas (RMD). Ele estará indicando o nível de álcool no sangue com base na sua respiração, elevando todos os seguros a cada ocorrência de embriaguez, numa escala crescente. No cinto de segurança existem sensores para medir sonolência e alteração libidinosa – ambas inscritas nas seguradoras como Indicativo de Risco Iminente (INRI). Para estar conferindo os acréscimos de valor na prestação do seguro, digite o número da apólice no computador de bordo. Muito obrigado e, qualquer dúvida, estaremos estando à disposição.

 

Caso o leitor já tenha saudade do tempo em que era possível entrar no automóvel com liberdade para ir e vir, tomar chope de acordo com a consciência e até andar com os vidros abertos, calma: esta crônica, além de exagerar propositalmente no gerúndio, exagera no prognóstico. Ou não?

20.9.07

Número 233

ANTES QUE SEJA TARDE *

Com força popular e com vontade política, a ética há de se espalhar com toda a intensidade. Com força de caráter e com vontade de acertar, a decência há de se espalhar com toda a intensidade. Com a força do voto e com o respeito à vontade de quem elegeu seu representante, a justiça social há de se espalhar com toda a intensidade.

Assim, há de molhar o já seco manancial de esperança que o brasileiro vê minguar a cada dia. Há de enxugar os olhos de quem chorou as vítimas das tragédias repetidas e cruéis, como, por exemplo, do caos aéreo. Há de iluminar os becos, onde a violência e o tráfico de drogas dizimam o futuro de meninos e meninas, tanto de forma direta, quanto por balas perdidas. Antes que seja tarde.

Há de assaltar os bares, principiando por aqueles das Universidades – fóruns de livre pensar, indutores de consciência e formadores de uma elite que precisa ser resgatada, e não demonizada. Há de tomar as ruas, em manifestações claras de repúdio à política venal e corporativista. Há de visitar os lares, reduto primeiro no qual se cultiva o juízo do que é certo e errado, e de onde a educação emerge como formadora. Antes que seja tarde.

Há de rasgar as trevas das votações secretas no Senado Federal; as maracutaias engendradas na ante-sala do Poder Executivo; a corrupção e o favorecimento escuso que germina nas Casas Legislativas, Prefeituras e Governos Estaduais. Há de abençoar o dia em que a Justiça não puna apenas o ladrão de galinhas, alcançando com igual rigor os criminosos de colarinho branco. Há de guardar as pedras arremessadas por radicais de todos os matizes, capazes das atitudes mais atrozes e ilegais por sentirem-se justificados por fins nobres. Antes que seja tarde.

Há de deixar semente do mais bendito fruto na terra e nos ventres do Brasil, que depende, ainda e como nunca, de pessoas capazes de levar o desenvolvimento social e econômico para cada um dos rincões da nação. Sem assistencialismo, mas com oportunidade. Sem apadrinhamento, mas com a valorização dos méritos. Sem preconceitos de qualquer espécie, mas com o respeito às individualidades. Antes que seja tarde.

Há de fazer alarde em uma imprensa livre, fiscalizadora, opinativa e plural – sim, pois à informação jamais deve imputar-se uma falsa aura de imparcialidade. Há de libertar o sonho repleto de esperança da nossa mocidade, ao legar bons exemplos e mea-culpas. Antes que seja tarde.

Por fim, há de mudar os homens que decidem os caminhos da nação brasileira. Rápido! Antes que a chama da ética se apague. Antes que a fé na democracia e nas instituições nacionais se acabe. Antes que seja tarde.

* Crônica escrita com base na obra de Ivan Lins e Vítor Martins, de mesmo nome, composta em (e para) outros tempos, mas com uma atualidade perturbadora.

13.9.07

Número 232

UM NOME SINGULAR

 

Vou tratar de um tema que todos conhecem bem: nossos nomes. Existem duas formas de escrever o nome próprio de alguém: a certa e a errada. Porém, existem nomes com diversas grafias e, para estes, são três, quatro ou cinco as maneiras de escrevê-los. Surge, assim, uma nova categoria: a forma certa, a errada e a possível. Veja o meu caso: há o Rubem, o Ruben e o Rubens. Eu, por escrito, sou o primeiro. Contudo, os outros, como direi, são quase meus nomes. Tanto que atendo por eles sem pestanejar – nem dou ouvidos ao sibilar no final.

 

A visão é muito mais severa neste julgamento de certo e errado: quando olho para a folha – ou para a tela – as variantes do meu Rubem desagradam. Não morro por causa disso, claro. Mas adoro quando adotam o modelo correto. Se o equívoco acontece em documentos, cartazes e certificados, diligente, peço para que seja corrigido. Mas em cartas, e-mails e mensagens triviais, até em dedicatórias – paciência, o autor já escreveu –, faço vista grossa. Ninguém tem culpa de existirem vários Rubens (aí é o plural). Respondo as mensagens eletrônicas na grafia com a qual fui batizado e bola para frente, esperando um dia ganhar por insistência. Ou não.  

 

Quem inveja esta minha tripla grafia é o Luís Antonio. Não, não: o Luiz Antônio. Ou seria Luís Antônio? Já sei: Luiz Antônio! Ai, ai... Peço ao Luiz Antonio, caso esteja lendo o texto, que me perdoe, pois quando o nome é composto, o problema (e a dúvida) se multiplica. Além do mais, na língua falada, nenhum dos Luizes se diferencia do outro. Nem os Antonios. Logo, para quem escuta, tanto faz. E quando chega a hora de escrever é um Deus-nos-acuda! Complicado, não? Olha que nem chegamos aos sobrenomes.

 

O H é uma letrinha madrasta em se tratando de confusões nominais. Principalmente quando sem som. Helenas, Heloísas e Heitores que o digam. Uma das passagens mais engraçadas que já soube em matéria de H me foi contada pelo grande amigo Helio Vicente. Parece que aconteceu diante de uma atendente de crediário. Ele ditou para ela o seu nome: Helio. Ela começou a escrever "El...", quando foi interrompida: – Moça, desculpa, é com H – disse ele. A profissional ergueu os olhos com enfado, como quem pensa que é claro que só pode ser com H, está me tirando para burra? E lascou na folha: "Elho"!

 

A livre tradução dos estrangeirismos, marca nos dias atuais, está causando um verdadeiro reboliço nos nomes escritos. Não sei onde andam os tradutores que ainda não viram o filão de mercado que é atuar em cartórios de registros naturais. A falta deles está abrindo uma lacuna para dezessete maneiras diferentes de escrever Michael, por exemplo. Doze delas em guris com idade de jogar futebol. Nenhuma como o correto Miguel, óbvio. Em casos assim, acertar o nome do sujeito por escrito passa a valer ponto de loteria. Johnny, o diminutivo de John (João), também varia muito na escrita. Mas, Joãozinho, nem pensar... Outro nome campeão de possibilidades é o da princesinha de Mônaco: Stephanie. Algum tradutor sabe qual é o sinônimo deste nome em bom português?

 

 

Se você tem um nome que pode ser escrito de várias formas, ou um nome estrangeiro, ou um complicado, pense bem: que paz ser simplesmente Ivo, Eva, Maria e José. Também, por outro lado, que tédio... Como este não é o meu caso, até já criei duas frases feitas para acertarem meu nome. Antes de escreverem, quando me perguntam se o final é com "n ou m", respondo: é com "m" de Márcia – e ganho um pontinho com a patroa.   Agora, quando nada perguntam e escrevem Rubens, eu corrijo: não é plural, sou um só. Piada infame, porém funcional.    

5.9.07

Número 231

SOBRAM ABACAXIS. FALTAM ABACAXIS.

 

Quanto pior, melhor. Esta parece ser a regra da comunicação em massa. Programas de auditório e sites de entretenimento (tipo youtube) se abastecem de figuras bizarras e transformam o grotesco em fama instantânea. O mais novo exemplar genuinamente brasileiro, gaúcho de Nova Prata, é o pseudocantor-compositor-dançarino Helio dos Passos. Irretocável modelo da fórmula. Para entender, perca cinco minutos no google procurando por este abacaxi. Nem um segundo a mais, por favor!

 

Não é muito difícil encontrar exemplos de pessoas sem a menor noção do ridículo. Gente que, embriagada pelo prestígio de ser, por instantes, o centro das atenções, expõe-se ao riso e à chacota do grupo. Imaginam ser esta a chave do sucesso. No ambiente escolar, os líderes negativos da turma são os primeiros a identificar alguém com este perfil e, de modo sádico, inflar seu ego. Se o menino ou a menina não estiver atento, cairá na armadilha e será lembrado para sempre por ocupar o indigno trono do bobo alegre.

 

Afirmo que este Helio pertence ao seleto grupo dos completamente sem-noção, mesmo que ele venha a discordar de mim. Posso adivinhar seus argumentos: "Não componho, danço ou canto tão mal assim. Sou autêntico e esse meu jeito agrada as pessoas. Represento o povo. Sou um herói na cidade e quem me critica tem apenas inveja". O problema é que ele compõe, dança e canta pior, mas muito pior do que imagina. E quem lhe dá espaço em mídia de massa faz o mesmo papel do líder negativo da sala de aula: ilude para ter de quem zombar.

 

A glamourização do bizarro germina nos acessos direcionados aos adolescentes e jovens, e isso está longe de ser um acaso. Quem vive o período da auto-afirmação adora rir dos outros (vide MTV). Quanto mais ridículo, melhor. Lembra-se da Sônia do www e da Solange do BBB? É isso. Na esteira desta constatação, muito artista garante o seu sustento. Basta recordar, por exemplo, dos Mamonas Assassinas. Ou, para os mais antiguinhos, do Ultraje a Rigor. Ambos faziam questão de apresentar espetáculos burlescos. Mas existem diferenças abissais entre estes conjuntos musicais e os casos como o do Helio: os grupos compunham boas paródias, executadas com total domínio técnico. O caricato era método. Helio dos Passos, atenção, se leva a sério.

Para concluir, muito mais lamentável do que a cruel exploração da falta de talento do diligente Helio, ou de sua própria satisfação com a zombaria que provoca, é a ausência de um bom amigo para lhe aconselhar. Alguém de confiança e que não tema a verdade: meu velho, sua música está muito ruim. Aquele mesmo que, numa sala de aula, evita a troça e atua para livrar o colega mais ingênuo da humilhação. E isso pode ser feito mesmo na TV. Se bem me lembro, o Chacrinha, mestre do bom-humor, nunca aplaudia a evidente falta de noção do calouro incapaz em seu programa. Premiava-lhe com o meritório anonimato, depois de uma generosa buzinada e um educativo abacaxi.