31.12.10
30.12.10
Número 402
Dois garfos
Rubem Penz
Sempre que chega o final do ano, cronistas de ofício olham para o céu em busca de sinais. Desejam da Estrela Guia a inspiração para, com seu encanto, oferecer aos leitores alguns instantes de meditação e originalidade. Pleito muito justo, pois os balanços e retrospectivas afundam nosso chão com suas pegadas de sangue. Não fujo à regra. E, razoavelmente íntimo da elocução dos arautos, aguço os sentidos, pois as mensagens nos chegam do modo mais insuspeito. Eis a prova:
Em rotina alterada e como há muito tempo não acontecia, neste dezembro almocei em restaurantes todos os dias de semana. Por duas vezes, acompanhado por um dileto amigo. A maior parte do tempo sozinho e com os olhos e ouvidos bem abertos para fugir da má companhia dos fantasmas interiores. Refeições comerciais padrão: primeiro, enfrentando a fila de comensais escolhendo iguarias do bufê – em um extremo as saladas, no outro a indefectível balança. A seguir, na disposição apertada das mesas, compartilhando a troca de palavras entre conhecidos e de silêncios entre estranhos.
Certo meio-dia, depois de cruzar o paraíso (inferno?) das calorias e receber o vaticínio dos quilogramas no prato (R$14,20), apanhei os talheres e me posicionei em uma das contíguas mesas de dois lugares, entre uma senhora bem vestida e igualmente solitária, e um casal de jovens. Quando ia começar a refeição, reparei que havia apanhado dois garfos e nenhuma faca. Por segundos olhei para os talheres gêmeos em minhas mãos, admirando a criatividade das musas para nos mandar recados. Suspeito que devo ter esboçado um pequeno sorriso, gabando-me da grande acuidade.
Afinal, assim é nossa vida! Por vezes, temos à nossa frente pratos bem servidos de saborosas oportunidades e nem todas as ferramentas para tirar proveito. Nesta hora, uma escolha se impõe: ou, inoperantes, lamentamos as escolhas, a sorte, o destino; ou nos movemos em busca daquilo que nos falta. Em algum lugar, ou com alguém, encontraremos o complemento necessário para desfrutar da lauta refeição da vida. Ninguém é autossuficiente ao ponto de depender tão somente de seus recursos. E são as trocas, os movimentos na direção do outro para buscar e oferecer, o maior legado de nossa passagem terrena.
Por outro lado, os garfos, instrumentos preciosos e fruto de nosso engenho e arte, quando em excesso, mostram-se um enorme desperdício. E quantas vezes caímos nessa armadilha? Acumulamos muito de algo que o bastante seria menos pesado e socialmente mais justo. Pois, mesmo sem ser a minha intenção, deixei uma faca sem seu par no restaurante. Numa hipótese extrema, meu ato seria sentido por outro comensal para quem faltaria o abusivo garfo que eu detinha.
Mais: os talheres, livremente oferecidos para que todos apanhem apenas os seus, são como os bens sociais. Somente a ética e o bom senso impedem alguém de tomar todos para si, deixando o entorno comendo com as mãos. Quando uma pessoa, ou um grupo, apropria-se do bem coletivo, é consciente de seu valor e tem a exata noção da falta que fará aos outros. Por isso a corrupção, o clientelismo e o favorecimento ilícito da política brasileira são tão execráveis.
Enfim, naquele mínimo instante, saciado de inspiração e ainda com o sorriso bobo na face, resolvi olhar para os lados. Alheio, o casal de jovens à esquerda conversava sobre trabalho. Porém, a senhora à direita olhava para mim com evidente censura. Pragmática, ofereceu a lição derradeira:
– Viu, só! É isso que dá não prestar atenção no que se está fazendo...
23.12.10
Número 401
SAC do Papai Noel
Rubem Penz
Email de resposta modelo 1:
Querido (a) (nome da criança), sua mensagem é muito importante para nós! Adorei receber tão boas notícias: notas excelentes no colégio, obediência ao papai e à mamãe, boas maneiras, muita cooperação com o (a, os) irmão (ã, ãos), apetite e disposição no almoço e jantar. Tudo isso será levado em consideração na hora de escolher um presente! Porém, aquilo de maior valor já foi conquistado: o orgulho da família e a certeza de estar no caminho do bem. Atenciosamente, PN.
Email de resposta modelo 2:
Querido (a) (nome da criança), sua mensagem é muito importante para nós! Gostei bastante de suas notícias: notas com boa média, alguma teimosia que outra quando o papai e a mamãe deram suas ordens, cortesia, convivência pacífica com o (a, os) irmão (ã, aos), razoáveis modos no almoço e jantar. Tudo isso será levado em consideração na hora de escolher um presente! Porém, aquilo de maior valor já foi conquistado: o reconhecimento pelo esforço e a certeza de boa vontade. Atenciosamente, PN.
Email de resposta modelo 3:
Querido (a) (nome da criança), sua mensagem é muito importante para nós! Suas notícias não chegam a ser as piores: uma que outra nota vermelha, certa dose de stress na relação com o papai e a mamãe, civilidade, atritos contornáveis com o (a, os) irmão (ã, ãos), um pouco de resistência com a comida que foi ofertada. Tudo isso será levado em consideração na hora de escolher um presente! Porém, aquilo de maior valor já foi conquistado: a humildade em reconhecer as falhas – esperança de evolução. Atenciosamente, PN.
Email de resposta modelo 4:
Querido (a) (nome da criança), sua mensagem é muito importante para nós! Estou alarmado com seu desempenho neste ano: passou raspando no colégio, deixou papai e mamãe em constante sobressalto, litígio permanente com o (a, os) irmão (a, ãos), apetite sempre voltado para as porcarias. Tudo isso será levado em consideração na hora de escolher um presente! Porém, aquilo de maior valor já foi conquistado: uma confissão alentadora – pior seria tentar enganar quem tudo vê e tudo sabe. Atenciosamente, PN.
Email de resposta modelo 5:
Querido (a) (nome da criança), sua mensagem é muito importante para nós! Folgo em saber que você ainda está em casa, e não em uma instituição para menores infratores: repetência por excesso de faltas, papai e mamãe precisando depor no Conselho Tutelar, más companhias, pau comendo solto com o (a, os) irmão (a, ãos), modos animalescos à mesa. Tudo isso será levado em consideração na hora de escolher um presente! Porém, aquilo de maior valor já foi conquistado: a fé na imponderável superação humana. Atenciosamente, PN.
Email de resposta modelo 6:
Querido (a) (nome da criança), sua mensagem é muito importante para nós! Se o que está escrito é fato, significa que mantém família e colégio sob seu controle. Tudo isso será levado em consideração na hora de escolher um presente! Aliás, estou encaminhando seu pedido para alguns amigos em Brasília. Porém, aquilo de maior valor já foi conquistado: tenho pelo menos três siglas avaliando seu histórico. Só não se esqueça de mencionar quem lhe indicou, hein?! Atenciosamente, PN.
16.12.10
Número 400
12.12.10
399
NÃO É VOCÊ, SOU EU
Rubem Penz
Pequenas porções de ilusão
Mentiras sinceras me interessam
Cazuza
São muitas as expressões que, quando ditas, devem ser compreendidas exatamente ao contrário. No fundo, elas não passam de tentativas vãs de retardar, iludir, despistar ou confundir. Truques manjados, mas recorrentes e imbuídos de uma esperança comovedora de que ainda possam funcionar. Mensagens que até podemos fingir que acreditamos, no exato instante em que uma luz vermelha começa a piscar no sistema límbico de nosso cérebro: perigo, perigo! Exemplos:
Não vai doer. Seria mais verdadeiro dizer que a dor é pouca, todos até agora suportaram, não se conhece casos de traumas ou desmaios, quando passar nem lembraremos mais. Porém, quem está disposto a ser honesto antes de provocar dor no outro? Quando se é criança, podemos até nos iludir na primeira vez. Depois, muito rapidamente criamos anticorpos.
Agora falta pouco. Frase que costuma saltar da boca daquele que nos conduz, logo que a metade do caminho é rompida. Às vezes até antes. Relatos históricos dizem que fora proferida quando, ao dobrar o Cabo da Boa Esperança, um marujo novato se mostrou ansioso. "Já chegamos à Índia, Capitão Bartolomeu?" "Ainda não, mas agora falta pouco..."
Eu sempre acreditei em ti. Uma das sensações mais prazerosas da vida é a de superar limites. Chegar além do vislumbrado, conquistar o impossível, vencer obstáculos contrariando as mais otimistas previsões. Porém, logo depois, ainda sob o castigo da exaustão ou a vertigem da glória, não faltará aquele que jamais lhe creditou um centavo a proclamar surpreendente fé.
Estará pronto em duas semanas. Intervalo mágico de tempo mais utilizado do que tijolo e cimento na construção civil. O pior é que já escutei esta previsão dita por toda a cadeia laboral envolvida: do servente de pedreiro ao arquiteto. Acho que a conta mental é a seguinte: uma semana é escárnio. Dizer a verdade, suicídio.
Não sou mais aquela pessoa que você conhecia: ela já morreu. Das duas, uma: ou você está diante de um zumbi, ou de alguém, fatalmente, mentindo. Nem os mais dispostos a crer em reencarnação dispensam a passagem efetiva para outro plano espiritual antes de retornarmos como outra pessoa. Crendo, a lógica aponta para um futuro onde nascerá desejo legítimo de morte.
Nunca nem olhei para ela. Se existe algo que os homens fazem por ato reflexo, sem chance de controle, é olhar. Olhamos sempre: de soslaio, acintosamente, no susto, de caso pensado... Até constrangidos, quando sabemos que não deveríamos estar olhando. Agora, o leitor reparou na dupla negação da frase? Significa que o protagonista foi além do mirar.
Prometo que paro. Aí está o exemplo cristalino e bem acabado de perjúrio. E a pergunta que deve nascer dentro da mente, onde os sinais de alerta disparam, é a seguinte: se era para parar, por que começamos?
Não é você, sou eu. Hors concours no sexo feminino. Pare o que estiver fazendo e inicie agora mesmo o seu exame de consciência, já que é você, sim. Mas, relaxe: não vai doer.
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Visite o blog do autor em
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7.12.10
3.12.10
Número 398
SIM, NÃO, TALVEZ
Rubem Penz
Apesar de sermos todos iguais perante a lei, as diferenças entre homens e mulheres vão muito além da fitinha azul ou cor de rosa grudadas em nossas cabeças de recém nascidos. Isto é fato notório e explorado com razoável frequência. Mesmo assim, nos divertimos muito cada vez que constatamos o abismo que nos une. E foi mirando o penhasco que reparei como é diverso o modo de julgar o sexo oposto. As mulheres são, essencialmente, analíticas. Os homens, simplesmente holísticos.
Por exemplo, imediatamente depois de passado o scanner visual sobre um candidato a candidato afetivo, a fêmea da espécie humana está apta a gerar um relatório contendo de duas a três páginas de extensão. Basta que a amiga puxe conversa:
– Que tal aquele, hein?
– Olha, eu vi só de relance... O cabelo está meio desalinhado, o que traz um ar selvagem, ainda mais com a barba daquele jeito, por fazer. Gamei nas sobrancelhas. Os cílios, então: parecem até postiços. Olhos escuros, pele morena. O nariz poderia ser um pouco mais delicado, mas no conjunto não chega a comprometer. A orelha esquerda tem um furinho: ou ele já usou brinco, ou está sem ele hoje. A boca promete ser o ponto alto. Aliás, os dentes são bem claros e alinhados. Não duvido que tenha usado aparelho ortodôntico na adolescência. Queixo quadrado, forte, com uma leve covinha...
O espaço da crônica não permite que eu avance do queixo até os pés. Aliás, colocar-me no lugar da personagem mulher e, com ela, avançar ao limite da cabeça, já deu uma enorme canseira... Mas foi necessário para o leitor dar-se conta de que tudo o que foi visto pela moça foi registrado. Mais: está pronto para ser interpretado, desdobrado, analisado. Logo, de nada adianta o homem alugar um automóvel importado para impressionar a mulher desejada, se o restante dos sinais aponta para uma condição financeira instável e sujeita a chuvas e trovoadas. Além disso, para conseguir algo, o rapaz precisará dar seu recado com um bom xálalá. E nem assim estará no papo.
No caso de dois homens, uma cena semelhante e com idêntico objetivo teria o desenrolar muito diverso:
– Que tal aquela, hein?
– Eu teria a iniciativa imediata de acasalamento.*
Bom, isso na hipótese de ter simpatizado. Caso contrário, seria:
– Eu não teria a iniciativa imediata de acasalamento.**
Aí está a diferença de ser analítico e holístico: salvo algum pormenor que salte aos olhos – neste caso um "pormaior" –, o homem foca no todo. E com ele é pá, pum. Sim ou não. A mulher percebe detalhes um a um, do estado das unhas à idade do sapato. Além de, para ela, sempre ser talvez.
Melhor? Pior? Apenas diferente. E os estudiosos podem encontrar explicações que remontam o tempo das cavernas. Claro que isto dá pistas da facilidade de atender um e da dificuldade de agradar outra. Nada que seja impossível de contornar, sob pena de extinção da espécie.
*Sendo fiel à oralidade, a resposta tem uma só palavra e é sinônimo de alimentar-se.
**Idem, mais a negação