27.7.12

As vísceras da paixão


Número 483
Rubem Penz
Quando Pedro me fala sobre Paulo,
sei mais de Pedro que de Paulo
Sigmund Freud
Uma parcela considerável da imprensa sobrevive de fofocas. Principalmente aquela dedicada a acompanhar a vida dos fulanos ditos celebridades, os famosos “famosos”. Todavia, seja no esporte, coluna social, editoria de cultura ou política, a verdade é que ninguém resiste a uma nota sobre o comportamento alheio. Sempre assim: na caminhada, o que dá maior ibope é o tropeção.
Por falar em tropeço, uma das oportunidades mais aguardadas por repórteres é quando um casal de destaque se separa. Especula-se sobre as razões, procuram rumores de quem possa ser o pivô do rompimento, posicionam os microfones para colher declarações emocionais. Famosos “profissionais” se esquivam com assessores de imprensa especializados no jogo de mostrar e esconder. Outros agem no fogo dos acontecimentos, na dor da mágoa.
O que alguém revela de seu ex-cônjuge, para quem e em quais circunstâncias, diz muito sobre o caráter. No casamento, há um despir-se radical. Dividir a intimidade com alguém destrói qualquer fantasia de perfeição – caem as máscaras e a humanidade surge em sua magnífica imperfeição. Nenhum outro terá maior privilégio do que o cônjuge: será dele a mão na testa amparando a cabeça diante da privada – a escatologia é o grande desafio do amor. Por isso precisamos confiar.
O que fazer quando o amor acaba? Escolher as palavras para não deixar que as vísceras da relação, agora morta, alimentem os urubus. Sepultar as dores de modo que apenas a paz esteja visível diante da lápide. Heidi Klum é a mulher mais maravilhosa que conheço, teria dito Seal ao separar-se. Ele (nada santo) perdeu algo deixando só flores neste túmulo? Nada: ganhou! Uma mulher esperta verá nisso um mérito.
Na contramão, Lissandra Souto, espinafrando o Tande depois de longo matrimônio, depôs tanto ou mais contra ela do que contra ele. O rapaz tem culpas no cartório? Claro que sim, tal como ela e eu também. Ao faltar-lhe com respeito, em público e para os abutres, oferece a si própria em sacrifício.
Aliás, Lissandra me fez lembrar um pouco as palavras de Chico Buarque: (...) me vingar a qualquer preço, te adorando pelo avesso pra mostrar que ainda sou tua. Mas, claro, isso já é especulação minha. Pura fofoca!

20.7.12

Romeu & Julião

Número 482

Rubem Penz

Shakespeare me perdoará. Primeiro, pelo trocadilho do título. Depois, pela dessemelhança com sua história, desperdiçando o chiste. Mas juro que isso tudo aconteceu.

Nossa história começa no dia em que a família de Rodrigo chega para morar na vizinhança e, já no primeiro dia, desentende-se com o dono da casa ao lado. Um motivo bobo, a manobra desastrada do caminhão de mudanças, desencadeia uma discussão áspera e o mal está feito. Alheio a tudo, o menino Rodrigo conhece Júlio, ou, como condiz ao amplo porte físico, Julião. Tornam-se amigos.

Por mais que um patriarca reclamasse do outro, ou que erguessem muros mais altos para sequer se olharem, os filhos ficam cada vez mais amigos, a ponto de serem apelidados pelo professor de história, que morava defronte, de Romeu & Julião. O apelido pega e Rodrigo vira Romeu para o bairro inteiro. No colégio, o nome está correto na lista de chamada, mas, de colegas a mestres, todos chamam Rodrigo de Romeu. Romeu & Julião. Inseparáveis.

No começo, Romeu ainda pequeno, a família o proíbe de ir à casa de Julião. O que não adianta em nada, já que os dois ficavam na rua o tempo todo. Na juventude, Romeu desconsidera a ordem e passa tardes e noites do outro lado do muro. Ele e muitos mais: Julião morava numa casa de italianos do tipo acolhedora, com cozinha grande e comida farta – ideal para adolescentes. Promovem festas até tarde, normalmente interrompidas pela polícia (supunham que era o pai do Romeu quem chamava os home).

Bom, quem espera por um romance gay, agora se decepcionará: o que separa os amigos é, primeiro, o Exército: Julião resolve seguir carreira, para decepção do professor, homem de esquerda, eternamente ressentido com a caserna por causa do passado recente. O tiro de misericórdia é dado por Ana, colega de Romeu na faculdade, moça que o arrasta para um bairro distante, onde ele volta a ser Rodrigo. Por fim, quando Julião é transferido para o Espírito Santo, a dupla fica unida tão somente por recordações e raros encontros.

Da última vez que se falaram, e nem faz muito, o assunto foi o passamento do professor. Câncer. A mãe do Romeu e pai do Julião também estavam falecidos. Parece que o tempo e as mortes suavizaram o atrito entre as famílias. Há quem diga mais: que na grande cozinha italiana tem sempre outro prato à mesa, além do da viúva. Coisa de romance... Mas ninguém comenta isso com Romeu & Julião. Não é bom facilitar: aquela outra história termina em tragédia.

 


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18.7.12

Notícia musical



Folia do Divino, música em parceria com Marcelo Delacroix, foi selecionada como finalista do Festival de Música Unijuí/FM Cultura.


Agora, a fase mais competitiva: os votos que decidirão são os dos ouvintes. Portanto, convido todos a ouvir. E votar!


http://www1.unijui.edu.br/noticias-unijui-fm/14551-selecionadas-as-musicas-do-2-festival-de-musica-da-unijui-fmrw




Sobre Folia do Divino:
Aos versos resultantes de minuciosa pesquisa na tradição religiosa luso-brasileira, somam-se melodia que relembra as ladainhas interioranas e batidas percussivas de raiz. O resultado é uma canção sem tempo definido: ora soando antiga, ora trazendo o frescor da novidade. Letra: Rubem Penz. Música: Marcelo Delacroix. Na percussão: Mimmo Ferreira.

13.7.12

Dos pesadelos

Número 481

Rubem Penz

Sonhamos acordados e, igualmente, temos muitos pesadelos rondando nossa vigília. Mais: se vários sonhos são comuns a todos, há, também, pesadelos compartilhados. Um deles – dos mais frequentes – é o medo de que ninguém apareça na festa que você organiza com tanto apreço. Confesso meu pânico.

Enquanto quem convida está ocupado com os preparativos (contratando a comida, colocando a bebida no gelo, ajustando os detalhes da decoração), não há clima para temeridades, ou tempo, ou espaço. O foco está em prevenir sobressaltos de última hora, garantir a qualidade dos serviços, estar pontual no cronograma. Cumpridas todas as tarefas, nasce a dúvida: e se ninguém vier?

Pensa-se no prejuízo material, sim. No desperdício de comida, também. Mas o que realmente apavora é o abalo emocional que sofreremos caso ninguém apareça. São minutos que duram horas. As mãos ficam molhadas, os pés inquietos, o pensamento rumina cenários de catástrofe. Por instantes estamos reféns da solidão, e o primeiro amigo será tão importante quanto a silhueta de um navio no horizonte do náufrago. Ele, o primeiro, reconhecerá no abraço recebido o acerto em ter chegado assim cedo.

Mas, se em festas de salão ou residenciais o mico de ser esquecido é ameaçador, ele ao menos tem a vantagem de ser privado. Semana passada estive exposto à mesma angústia, com o agravante de estar em público. Explico.

Programei um jantar entre queridos amigos – a velha e invencível combinação de boa mesa e melhor papo. Como de costume, a lista de presença virtual cresceu feito capim em verão chuvoso. Que alegria! No dia e hora aprazados (aliás, quinze minutos antes, para dar tempo de contornar eventualidades), lá estava eu, solitário, ocupando uma mesa para trinta lugares. Trin-ta lu-ga-res... Ao redor, o restaurante começou a encher.

Paranoico, imaginava os outros a lamentar minha situação, quem sabe por já terem passado por igual suplício. A toda hora o garçom vinha na mesa e me oferecia qualquer coisa – não sei se dividindo a dor ou apenas vendendo seu peixe. Até a chegada da primeira companhia, nem mesmo o excelente chope me fazia feliz. Enfim, com ela, acendeu a luz no fim do túnel. Ah, e o jantar bombou.

Histórias de aniversariantes solitários em meio a bolos, velas e balões vicejam como lendas urbanas. Nunca passei por isso e, mesmo assim, morro de medo a cada festa. Queria ser seguro e confiante como o leitor que agora me rotula de dramático. Mas sou um fraco. O único consolo seria algum comentário confessando igual pesadelo. Você, por exemplo, já viveu esse apuro?


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6.7.12

Trevas

Número 480

Rubem Penz

Portas, grades, muros, arames farpados... Cercas físicas e elétricas, correntes e cadeados. Tudo o que protege da escuridão nos separa, também, da luz. Alguém precisa dar mais atenção à influência das tantas barreiras físicas no ânimo de nos aproximarmos uns dos outros. Em pleno Século 21, voltamos à Idade das Trevas, época de violência e medo.

Ninguém me convence de que o isolamento cada vez maior e sua consequente intolerância não nascem de uma contaminação psicológica dos limites contundentes em nossas propriedades, especialmente em grandes centros urbanos. Se o outro vem da fronteira estabelecida entre o bem e o mal, e estou seguro de habitar o lado do bem, ele é, a priori, uma ameaça.

Para mim, o recado transmitido por uma porta sólida, gradeada e com um olho mágico sempre foi evidente: estou desobrigado de atender. Vejo o outro lá fora, mas permaneço oculto em minha toca, acuado, indisposto. Ao sair, recorro ao vidro escuro do automóvel, novo manto da invisibilidade. Tudo é feito para escapar do constrangimento da exposição.

Também o recado de um muro alto é claro: você não é bem-vindo. Seu olhar deve permanecer de fora, não quero ouvir o som que você produz, em nada me interessa quem está do outro lado. Além do mais, a ignorância sobre o entorno é reconfortante: poupa-nos de todo e qualquer impulso de solidariedade. Desculpa-nos de eventuais omissões.

O recado de um porteiro eletrônico é frio como a voz metalizada: convença-me de quem é você, diga o que deseja, seja convincente. O recado do agente de segurança que nos prende em eclusas é explícito: desconfio de você a ponto de cercear arbitrariamente sua liberdade pela simples ousadia de querer entrar. O recado de uma cerca elétrica é ameaçador: perigo! E o cão que ladra avisa que morderia antes mesmo da invasão, pois foi treinado para farejar, em todos, potenciais inimigos.

Assim, para sairmos de nosso lar em direção à casa de alguém é preciso, primeiro, ter coragem para enfrentar a Floresta Má do espaço público. Depois, aceitar o fato de que o feitiço desta floresta nos transforma em seres potencialmente perigosos, para os quais todos os recados convergem: vá embora! Por fim, carregar como antídoto uma poção com doses elevadas de paciência, perseverança, simpatia e fé.

Duvida? Leia os soturnos manuais de segurança para conferir quais foram nossas "conquistas" civilizatórias. Ali, o cabal reconhecimento ao poder das trevas. Ali, nada do que mais almejo: a cálida e reconfortante luz das almas.


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