29.1.09

Número 302

SERPENTE LUMINOSA

Quando é verão, os telejornais de sexta-feira e domingo à noite mostram uma imagem que se repete, repete e repete. Aliás, o faz com tanta certeza que dispensaria a equipe de filmagem no local: basta reproduzir a cena da semana passada, do verão anterior, de alguns anos antes. É o quadro sobre o qual o jornalista informa, em off, quantos automóveis passam por minuto em determinada praça de pedágio rumo às praias. Uma serpente luminosa do foco ao horizonte, que na sexta aparece vermelha e, no domingo, branca. Serpente gigantesca com um lado nascendo em cidades como Porto Alegre e São Paulo, e o outro chegando ao litoral. Serpente de um tempo voraz.

Cada célula epidérmica desta serpente é um automóvel em deslocamento. Em cada automóvel, alguém, grupo ou família, migrando para o clima ameno em busca de momentos de lazer. A luz que destaca o ofídio na paisagem é a reprodução do fogo primata – por onde anda o homem, leva consigo sua energia. É como se as lanternas e faróis fossem a tocha que saiu – e voltará – de uma pira urbana com o objetivo de acender a outra, esperando para ser iluminada na praia. Na verdade, é exatamente isso o que acontece: nos finais de semana, a faixa litorânea recebe a serpente e se inunda de luz.

Existe uma eloquente imagem de satélite que demonstra a coincidência entre desenvolvimento econômico (político, cultural, de infraestrutura) e a energia elétrica. Nela, é nas áreas iluminadas do globo terrestre que encontramos pujança. Nas outras, pobreza e índices de desenvolvimento deixando a desejar. Mais do que a presença de homens, o brilho noturno de determinada cidade, estado ou país indica seu quadro de prosperidade. Também se descobre se a riqueza está concentrada ou distribuída. A luz que serpenteia a paisagem – vista, com certeza, do espaço –, carrega consigo os homens brilhantes, bem sucedidos. À sua volta, trocas de bens e serviços estarão garantidas. Bendita serpente.

Maldita serpente, por outro lado. Tamanho jorro de luz significa estarmos trocando seis por meia dúzia: saímos de uma cidade para outra cidade. Nas duas pontas, prédios de apartamentos, ruas lotadas de automóveis, filas, supermercados, bancos, calçadões, bares, restaurantes, gente, gente, gente. Diferente, o mar. Quando não contaminado de coliformes fecais. A mesma luz que significa segurança e prosperidade, compromete todo o ecossistema. Afinal, junto com ela andam as garrafas PET, o papel, as latinhas e a falta de educação. O barulho, o solo alterado e a fumaça. O intenso apetite da serpente luminosa é pelo imediato.

Enquanto rasteja, a serpente humana termina, para o bem e para o mal, ofuscada por sua própria luz. Com suas lâmpadas claríssimas e tecnológicas, ela perde – quando não destrói – espetáculos tímidos e grandiosos oferecidos pela natureza, outrora os protagonistas de faixas litorâneas. Na mesma medida em que visores de telefones celulares se iluminam, vagalumes somem do entorno. Ao mesmo tempo em que postes elevados clareiam as areias da praia, apaga-se o branco azulado da espuma das ondas em noite de lua cheia. Os olhos-de-gato das sinaleiras dos automóveis refletem milhares de vezes mais do que os olhos das corujas. Enfim, para cada conquista, uma perda.

A linha do tempo desenhada pela serpente luminosa das estradas parece sem volta. Minha esperança é de que algumas praias e cidades turísticas resistam pequenas e, assim, mantenha-se certa penumbra. Refúgios acomodando, por exemplo, o equilíbrio entre o conforto e a preservação ambiental. Neles, e em outros ambientes bucólicos, ainda poderemos nos maravilhar com outra serpente de luz, especialmente revelada à sombra do progresso: a Via Láctea.

23.1.09

Número 301

EM RUÍNAS

Na praia da infância e juventude, na mesma quadra onde minha mãe ainda preserva nossa casa de veraneio, um prédio resta aos pedaços. Ele esteve por muitos anos com ares de abandono, até ser consumido por um incêndio. Uma paisagem que, antes do fogo, maculava minha memória sob forma de cicatriz, agora escancara vísceras apodrecidas. Ela me dói. Dor compartilhada por veranistas tradicionais, da minha e de gerações anteriores, quando não se consegue evitar o nobre endereço de esquina. Mesmo não tendo qualquer responsabilidade sobre o trágico destino do lugar, uma parte fundamental da minha vida agoniza sob os destroços.

Refiro-me ao salão principal de um antigo hotel, desativado – se não me trai a memória – no final da década de oitenta. Até então, era sol de um sistema humilde de poucas casas em sua órbita. Metros quadrados de uma edificação encantadora em sua simplicidade, fonte inesgotável de luz e calor humano. Destino para onde convergiam todos os habitantes, atraídos por um magnetismo explicado, em parte, por ser o principal centro de serviços da época. Mas, também, pelo carinho verdadeiro com que as pessoas ali compartilhavam.

Era lá que buscávamos o jornal cedo da manhã, encontrando vestidas e perfumadas as mesas de café. No ambiente do bar, poucos já repercutiam as boas e más notícias do dia, ainda quentes. Defronte ao hotel cruzávamos a caminho do mar, carregados de guardassóis e esteiras. Diante dele passávamos na volta, exaustos, esfomeados, cobertos de areia e sal. Também ao hotel, um pouco mais tarde, voltávamos de roupas limpas e barriga cheia, sedentos por um picolé. Dependendo de encontros e desencontros, íamos para casa ou partíamos para os mais variados endereços, gozando de liberdade e autonomia conquistadas desde seis ou sete anos de idade.

À noite, de cabelo lambido e roupa caprichada, quase toda a praia se encontrava no salão principal, no bar e nos avarandados do hotel. Havia mesas de pife, canastra e sete e meio. Ainda no carteado, o ruidoso dorminhoco acontecia bem longe da televisão, iluminada pelas telenovelas. Muita correria de crianças para dentro e para fora. Os jovens ocupavam os bancos externos, ambiente ideal para o namoro, conversa fiada ou cantoria ao som do violão. Nem a chegada da madrugada espantava o pessoal, até o inevitável cartão vermelho em nome da tranquilidade dos hóspedes... Afinal, em poucas horas, as mesas do café estariam novamente postas, já teriam chegado os exemplares do novo jornal, trocariam bons-dias os primeiros pescadores.

No hotel acontecia o divertido bingo de cartelas marcadas com feijões. E a gincana, o carnaval infantil e adulto, bailes de casais. Rodas de samba de tarde inteira. Nossos encontros de antes e depois do vôlei e futebol. Defronte ao hotel era o ponto de partida do bloco carnavalesco para praias vizinhas, ponto de referência para quem viesse de outro lugar, relógio-ponto marcando meus primeiros vinte anos. Um palácio cuja maior riqueza foi construir a minha e outras tantas histórias simples, anônimas, irrisórias. Ou grandiosas.

A ruína que hoje me entristece contrasta com os relatos apaixonados que não poupo fazer aos meus filhos quando conto do hotel. Se ainda estivesse ativo, aposto que sua estrela seria capaz de vencer até mesmo o obscurantismo da violência, cujo resultado foi a transformação de todas as casas da praia em prisões gradeadas. Seu magnetismo, quem sabe, ainda seria capaz de promover novos encontros. Porém, ao contrário, os escombros do prédio expõem o cadáver insepulto de outro tempo. Um tempo sem videogame, sem celular, sem computador. Tempo de verões arrastados, tranquilos e doces como as músicas de Caymmi. Nas ruínas deste tempo, habita a agonia de minh’alma.

16.1.09

Número 300!

TORMENTOS, ARGUMENTOS E DOCUMENTOS

Se tamanho fosse documento, o elefante seria o dono do circo. Se tamanho fosse documento, era o homem quem puxava a carroça. Tais e outros argumentos com a mesma natureza estavam sempre na ponta da minha língua quando eu era pequeno. Não que hoje eu seja lá muito grande... Mas quando eu era pequeno, eu era muito menor do que os outros. Além de baixinho, miúdo. Magro de fazer a mãe, excelente cozinheira, passar vergonha. Não que eu tenha galgado muitos quilos na balança...

As frases prontas saltavam de minha boca por um só motivo: nunca me deixar diminuir pelo tamanho. Estar à altura dos amigos e colegas era um compromisso de guerra; bons argumentos, meu cavalo de batalha. Nas aulas de história, cedo reparei no porte físico de Napoleão, contrapondo-se com a saga de suas conquistas. A grandeza de alguém jamais deveria ser medida em centímetros de altura, mas na elevação de seu caráter, de suas aspirações. Os sonhos também seriam parâmetro mais fiel para a verdadeira estatura de um homem.

Na teoria tudo faz sentido. Mas na prática não era nada fácil. Sou de uma geração em que as turmas de primário, o ensino fundamental da década de setenta, perfilavam-se antes de entrar na sala de aula. E o sistema estabelecido para esta sessão de ordem unida era, da frente para trás, do menor para o maior – gigantes no fundo. E eu era tão pequeno, mas tão pequeno, que, para ser o primeiro da fila, precisava ficar na ponta dos pés. Vacilando, ganharia a pole position de todas as turmas, mesmo as de séries mais novas. Um vexame.

Na hora das disputas no braço também me via em maus lençóis. Nos dias de hoje, as crianças brigam menos do que em outros tempos, muitíssimo menos. A mediação de adultos e professores, agora sempre por perto, tende a suavizar as relações entre os pequenos. É muito feio bater no amigo, falam todos os dias, a toda hora. Antes, feio era apanhar do amigo. E, se os amigos batiam, imagina só o risco que se corria com os inimigos. O pau comia na escola, no bairro, na praia. E não adiantava muito meu ano e pouco de judô: contra o gorila, a técnica do sagui é irrelevante. Mais valia os planos de fuga – um paliativo, jamais a solução.

Se tamanho fosse documento, a girafa era a rainha das selvas, eu dizia. O problema estava em convencer a linda girafa que sentava ao meu lado na sala de aula de que meu reinado estava garantido desde o signo. Na sexta série, por exemplo, a menina mais baixa livrava de mim meia cabeça. A mais alta, meio corpo. E, mesmo o amor sendo reconhecidamente cego, todos os demais sentidos conspiravam contra meus anseios. Na pré-adolescência, fase em que transitamos da infância para o abismo, descobri a diferença entre o amor e a amizade: mais ou menos dez centímetros. Platão foi meu mentor amoroso.

Não: minha infância não foi um mar de tormentos e frustrações. Até porque tal quantidade de água não me daria pé. Como disse, quando me acusavam de baixinho, as respostas saltavam ligeiras. Jamais me deixei diminuir. Logo, o eventual destaque que tive ao capitanear a fila do pátio, usei para me tornar bastante conhecido. A dificuldade no combate corporal aguçou a diplomacia. À amizade das mulheres credito uma sensibilidade útil nos dias de hoje, quando o diálogo parece fundamental para as relações. Porém, se eu pudesse escolher, juro, queria passar a vida inteira em uma altura média. Tamanho, que inferno, sempre foi documento. Senão eu poderia dispensar a retórica – correndo o risco de jamais virar cronista.


7.1.09

Número 299

VÃO OS DEDOS, FICAM OS ANÉIS

Partilha. Aí está uma das coisas mais complicadas da vida. Melhor dizendo, da morte. Afinal, conta-se nos dedos quem não passou por algum descontentamento, grandes decepções ou um certo desconforto quando se viu implicado na situação de repartir bens. Não importa o tamanho da herança: seja ela composta de imóveis, contas numeradas, obras de arte etc; ou uma simples bandeja banhada em prata, o Fusca 1976 ou mesmo aquela faca de churrasco com o cabo de osso. Na verdade, o ato de partilhar sempre é passível de confronto, de resgate de mágoas, de espertezas.

Em uma cena clássica de encontro de partilha, é garantido identificar uns tipos bem característicos. Por exemplo, os ponderados. Cheios de dedos, trabalham em costuras quase impossíveis para contemplar os mais diversos interesses. Normalmente, já investiram muitas horas de negociações prévias, apelando para o bom senso e o sentimentalismo, em um esforço justificado pelo respeito à memória do recém falecido. Porém, a única certeza para eles é a de assistir seus próprios interesses como os primeiros a serem sacrificados.

Outros que não podem faltar são os exaltados. Com os dedos em riste, fazem das cordas vocais coração na hora de garantir meia dúzia de talheres. Acusam a todos de conspirarem contra seus interesses, resgatam frustrações desde os anos infantis, consideram-se prejudicados pelo destino. Para eles, qualquer guardanapo que terá como sina o fundo da gaveta, qualquer terreno de arrabalde para o qual ficará devendo o imposto territorial, tudo será resultado de uma guerra particular. São os exaltados aqueles que mais se beneficiam em uma reunião de partilha. E, paradoxalmente, os únicos que sairão dela se queixando.

Os soberbos, por outro lado, fazem questão de estarem ausentes. Dão as mais diversas desculpas para faltar ao encontro de partilha. Porém, claro, deixando nas costas dos ponderados uma pequena lista de bens que gostariam de receber – estes, escolhidos a dedo, para o desespero dos exaltados. Nunca faltará alguém para criticar a atitude dos soberbos, reclamando que eles pensam estar acima de questões tão fundamentais para a família. Irão duvidar de sua masculinidade, dirão serem mal amadas, lembrarão deslizes dos filhos, desejarão que sejam os primeiros a morrerem, pois na morte não se leva nada – bem feito! As orelhas dos soberbos arderão muito durante este período de tempo.

Os emocionais compõem o grupo sobre o qual nada mais importa. Para eles, nenhum bem material irá suprir a ausência deixada por quem partiu. Eles se consideram abençoados pelos anos de convivência, enriquecidos pelos ensinamentos, gratos pelo legado humano. Entram na reunião tão derrotados como um boi no abatedouro. Mas, em algum momento, terão seus cinco minutos de destaque ao versar, aos prantos, sobre as virtudes de quem agora está no céu. Condenarão o desrespeito à memória expresso em tanta mesquinharia. Lembrarão que Deus está assistindo atos tão vis. Azar o deles: voltam para casa com um joguinho de chá de porcelana cujo açucareiro perdeu uma das alças.

Bom, existe o caso de quem morreu deixar um testamento. Então, na presença de um advogado, o destino de cada bem terá o dedo do antigo proprietário. O dedo que, aliás, poderá pressionar diversas feridas. Em situações como essa, os exaltados gritarão ainda mais alto, aparteados pelo grupo dos ponderados. Os emocionais repetirão “mas nem precisava” dezessete vezes – quando não abrirem mão de algo para calar os exaltados. Os soberbos serão representados por alguém. E, ao final, quem terá as orelhas aquecidas será aquele que partiu. O mesmo que daria um dedo para assistir a cena. Dedo, aliás, apontado para a justiça, pois quem se preocupa em deixar testamento, viveu bastante para conhecer cada herdeiro como a palma de sua mão. Para desespero de uns e alívio de outros.

2.1.09

Número 298

TRÊS DESEJOS

Trata-se de um clássico: eu estou caminhando absorto pelas areias de uma praia qualquer, com os pensamentos boiando entre a segunda e a terceira rebentação, quando o dedão chuta um objeto cortante. Depois de um palavrão para aliviar a dor, de reclamar da falta de limpeza no litoral e de maldizer a sorte, verifico se está sangrando. Porcaria, está! Já com a vacina antitetânica no horizonte, eu resolvo averiguar o objeto mal sepulto na areia. É uma lâmpada. Nem incandescente nem fluorescente. É uma do tipo maravilhosa, parecida com um candelabro.

Descrente, eu junto o artefato e esfrego a camiseta em busca das três palavras mágicas do capitalismo: “made in China”. Porém, ao invés de descobrir a origem da lâmpada, uma fumaça branca e inodora revela o surgimento de um gênio. Um do tipo padrão, com roupas bufantes e transparentes, turbante e barba ao estilo Clóvis Bornay. E, como primeiro sinal de genialidade, ele fala comigo em português, sem o menor sotaque e na velocidade de um anunciante das Casas Bahia. Conta que foi ali aprisionado por um mago oriental há milhões de anos, que a maldição só seria quebrada no caso de a lâmpada ser friccionada por um tecido com 35% de polyester e que, em sinal de gratidão, me concederia três desejos.

Imediatamente, eu procuro os sinais de câmeras e microfones ocultos. Olho bem para o gênio para reconhecer o ator famoso por detrás daquele disfarce. Já imagino para qualquer momento a chegada daquela menina da produção com um contratinho padronizado para eu autorizar o uso de minha imagem na TV. Acredito piamente na oportunidade dos meus trinta segundos de fama ao pagar um mico em rede nacional durante algum programa de domingo. Por isso, e apenas por isso, topo continuar a conversa. E tento fazê-la render.

Pergunto, só a título de curiosidade, se os pedidos estariam sujeitos a algum patrocinador. Seu desejo será uma ordem, meu Amo, responde o gênio com uma mesura, como quem não entendesse a desconfiança. Ganho tempo: poderia ser algo só para mim, ou precisaria ser um pedido para a humanidade? Seu desejo será uma ordem, meu Amo, responde o gênio, repetindo o gestual com a ensaiada naturalidade de um guia turístico mirim. E o prazo de validade – quero saber – seriam pedidos perecíveis? O gênio devolve a questão com a mesma frase de sempre, curvando-se com suavidade. Percebo que não avançarei mais um segundo. É chegado o momento dos pedidos. E, claro, devem estar gravando.

Como em um rasgo de lucidez, uma revelação, um luminar, me dou conta de que não estou na praia coisíssima nenhuma. E meu dedão do pé está intacto. A moça da produção – morena, cabelos ondulados, vinte e poucos anos, jeans e camiseta branca, sandália rasteirinha, óculos – tampouco virá. Estou, isto sim, sentado diante de uma tela de computador, escrevendo a crônica da semana. Porém, de modo estranho, o gênio não some, aguardando meus três desejos. Desejos para 2009. E eu não sei o que lhe pedir.

Você, na mesma situação em que estou, teria condições de fazer três pedidos com sabedoria? Pergunto na hipótese de ser atendido de verdade, por este Clóvis Bornay das arábias que paira diante de mim, ou por qualquer outra força mágica. Se positivo, parabéns! Eu confesso que estou perdido, mesmo sabendo que, da feitura dos pedidos, depende o final do texto. Então, não tendo remédio, vamos lá:

Que em 2009 sejamos justos. Que em 2009 sejamos carinhosos. Que em 2009 sejamos agradecidos.

P.S.: e o gênio, safado, sem garantia nenhuma de vir a me atender, agora está indo embora de mãos dadas com a moreninha da produção...