31.3.10

Número 363

RÉGUA EMOCIONAL

Sábado passado cheguei numa festa com passos miúdos. Naquele momento eu estava assim, como dizer, meio deslocado. Em cada ambiente, a conversa já corria solta. Peguei uma em seu final, sem saber por onde tinha começado. Mas pouco importa, pois o que escutei fora suficiente para ficar calado por mais um tempo, pensativo. Dizia um interlocutor: “O melhor é nunca voltarmos para os lugares grandiosos de nossa infância. Basta o olhar adulto para vermos que é menor do que lembrávamos, mais feio, menos encantador. Nem os livros eu releio: prefiro guardar a impressão que tive na primeira passada de olhos”. Fui tomado de assalto – eram palavras que faziam sentido.

Quem de nós já não sofreu uma cabal decepção ao chegar num pátio em que jogava futebol – muitos em cada time – para descobrir que o espaço nem acomoda uma cancha de vôlei? Ou naquele corredor enorme na lembrança, encurtado pela perspectiva madura? Isso sem falar no muro altíssimo, na árvore frondosa, na piscina sem fim, na caverna assustadora... Esses dias, descrevia para meus filhos o barranco que havia no pátio da escola: perigoso. Será? Para o olhar infantil, os ambientes têm outra medida, jamais determinada por metros: fatores intangíveis são preponderantes. Quanto mais medo, respeito, desafio, tanto maior representavam.

Alguns adultos também eram verdadeiros gigantes. Pouco importava a altura em centímetros: valia muito mais suas atitudes, ferocidade, imponência. Intuíamos com perfeição a autoridade de alguém – crianças compreendem muitas coisas. O tom da voz também fazia a diferença, e nisso os homens sempre levaram vantagem na hora de impressionar um pequeno. Quando crescemos, ao mesmo tempo em que idosos diminuem, a mágica perde impacto. Os bem educados preservam o respeito aos mais velhos. Mas, no fundo, a relação de forças tende a favorecer as gerações que estão no ápice, e não raras vezes nos decepcionamos com a fragilidade de pessoas que julgávamos invencíveis.

O mar, as dunas, o cão feroz, a mesa de jantar. Na meninice, tudo era maior, tudo mais grave. Paisagens recobertas por uma aura de mistério, tecidas pela fantasia, impossíveis de se aferir ou compreender. Mensagens cifradas surgiam nas rodas dos amigos dos meus pais: política, economia, sexo. Tão grande quanto o pé direito da igreja ou do saguão da escola, era o mundo que desfilava naqueles discursos noite adentro. Isso até quando nos permitiam ficar acordados, o que em tempos passados era pouquíssimo.

Confesso que algumas vezes já questionei a riqueza, ou precariedade, que pude oferecer aos filhos durante seus primeiros anos de vida. Ainda mais agora que crescem diante de nós, deixando a inocência cada vez mais para trás. Talvez estivesse sendo severo demais comigo. Ou equivocado, simplesmente. Afinal, o mesmo olhar deslumbrado que um dia tive, faiscou no semblante deles até pouco tempo. E ainda falta muito para terem a fria compreensão das proporções, empobrecida por fatos, alijada de imaginação. Assim espero, ao menos...

Só sei que sábado, na festa, eu era um dos gigantes, numa casa enorme, argumentando sobre temas complicados, oferecendo e cobrando explicações dos pares. Mas apenas depois de passar pelo meu leve desconforto. Estranhamente, cheguei de calças curtas no lugar. E um pouco assustado, pois aquela conversa sobre o olhar infantil, incrível, me denunciou.

25.3.10

Número 362

A BELA ENSURDECIDA

Bela, ao nascer, encantou a todos: seria a herdeira do legado artístico da família. O pai, produtor musical, e a mãe, cantora, chamaram compositores, intérpretes, instrumentistas, maestros e programadores da TV e rádio para a festa de boas vindas ao bebê. Por algum engano, porém, uma das correspondências não chegou. Justo aquela dirigida para a mais badalada apresentadora, Ibope altíssimo e fada madrinha dos artistas de destaque. Tomando como pessoal, a fada virou bruxa e rogou uma praga: aos quinze anos de idade, Bela espetaria o dedo em uma agulha de vitrola, perdendo a voz e o ouvido musical para sempre.

O pai se desesperou. Investiu todas as economias em empresas que desenvolvessem algo que aposentasse o disco. Num instante inventaram o K7 (cassete), tipo de fita magnética popular, muito mais delgada e barata do que as tradicionais. Recebida com entusiasmo, a novidade se tornou bastante difundida. Mas quem disse que o pessoal abria mão dos discos? Que nada: até criaram o três-em-um, uma espécie de plataforma de mídias para contar com a fita e o disco em um mesmo som. Nessas todas, Bela estudava nos melhores conservatórios e entoava com precisão clássicos do cancioneiro popular.

Sem poupar esforços, o pai arregimentou cientistas ocidentais e orientais numa ação revolucionária: a utilização do laser para tocar música. Costurou com muita habilidade interesses conflitantes e ajudou a desenvolver o compact-disc. Livre do incômodo de virar de lado, o pequeno disco prometia jogar os bolachões para o lixo da história tecnológica. Estranhamente, quem rumou para a extinção foi o cassete. Mesmo assim, os discos foram sendo gradativamente abandonados e, com eles, os toca-discos e suas malditas agulhas. Bela já cantava e seduzia platéias infanto-juvenis. Cientes de que o mundo pop era restritivo, os pais impunham doses de bossa-nova, jazz e MPB mais refinada – era preciso preservar o nível da princesinha.

Como cartada final, o pai de Bela tomou carona no incremento acelerado da informática para saudar a chegada do i-pod e do MP3. Também estimulou a difusão de músicas pela internet – um tiro no pé, segundo colegas produtores musicais. Azar! O que não podia era a sua amada filha ficar sem ouvido e voz. Porém, para seu desespero, movimentos contra-revolucionários defendiam a melhor qualidade sonora dos tradicionais LPs, elevando os antigos toca-discos, ainda que raros, ao patamar de fetiche.

Ah, a adolescência... Nos exatos quinze anos de idade, Bela foi até a casa de uma amiga e enlouqueceu ao ver um belíssimo prato Gründing. Sem saber lidar muito bem com aquilo, a pobre espetou o dedo na agulha, fazendo cumprir a profecia. Com voz de taquara rachada, contou aos pais, que imediatamente entraram em depressão. A bruxa, suplantando doses elevadas de botox, sorriu vingada.

Quando tudo parecia perdido, surgiu um jovem príncipe, também produtor musical. Ele vestiu roupas eróticas em Bela, contratou coreógrafo, assessor de imagem e o melhor técnico de som com seus afinadores digitais. Também obscuros compositores e venais poetas. Comprou espaços privilegiados na TV e catapultou a moça ao estrelato instantâneo. Casaram-se e se separaram várias vezes, sempre com generosos espaços em mídia espontânea. O casal enriqueceu em poucos anos duas vezes mais do que os pais de Bela, que morreram de desgosto fulminante vendo a filha rebolar em um clipe do youtube.

A bruxa, por sua vez, não morre tão cedo: apreciadora de música, seu castigo é viver com a internet, a TV e o rádio ligados em Bela e seus clones para se martirizar pela besteira que fez.

18.3.10

Número 361

O DESEJO

Se um homem for sincero, verdadeiro e puro, talvez, um dia, quem sabe?, confesse para a mulher o que sempre desejou dela. Não será tarefa fácil. Alguma coisa em nossa carga genética, na sabedoria (burrice?) ancestral, induz os homens a jamais declararem o mais recôndito desejo à companheira, o qual nem ousa lembrar. O desejo que, quando atendido, de tão magnífico, de tão significante, parecerá pedir demais. E, pela envergadura, transformar-se no último desejo.

Aliás, para quem critica a simplicidade dos machos, temos aqui um paradoxo masculino: como pode vir a ser o último, aquele desejo jamais confesso? Ele estaria, isto sim, mais adequadamente classificado como primeiro desejo. Por isso, quando o homem encontra a mulher de sua vida, aquela que aceita sua corte e, de permissão em permissão, torna-se sua esposa, projeta nela a pessoa capaz de, na hora certa, cumprir com seu maior desejo. O problema é: existe a hora certa? E, ela chegando, haverá coragem para a revelação?

Esta constante repressão faz muito mal ao homem. Ela é presença firme em sua vida. Toda vez que ele olha para a mulher no fundo dos olhos, mas no fundo mesmo, fundíssimo, e puxa o ar para enunciar seu desejo, algo lá no fundo diz: não peça! E o homem nunca sabe ao certo se a misteriosa voz veio do fundo dela, ou estava no fundo de si. De uma maneira ou outra, recua. Adia. Volta a conviver apenas com a promessa de talvez, um dia, quem sabe?, dizer o que verdadeiramente quer. É quando ficamos mudos diante delas – nem sorrindo, nem chorando, nem nada. Tipo, abobados.

A pior notícia ainda está por vir: homem que é homem desconfia de que a mulher sabe o que ele guarda trancado na garganta, mas jamais se antecipará ao seu pedido. Ela deixa, ardilosamente, ele a cozinhar em fogo brando. Faz tudo para manter a crença de que, pedindo, será atendido. Principalmente por saber o quão difícil será para o homem proceder com sua confissão mais reveladora. Age como quem blefa: pouco se importa com o jogo que tem nas mãos, ou se estará apta a atender, enfim, ao desejo. Sua aposta é a de que, na hora H, o homem corre da mesa. Ganha sem revelar-se.

Em uma reunião de amigos homens – na volta da churrasqueira, no vestiário do campo de futebol, na mesa de bar – pode haver quem proclame: minha mulher faz tudo aquilo que eu peço. Será festejado, sem dúvida. Elas não costumam ser assim tão generosas. Cada vez menos, diga-se de passagem. Dependendo do teor alcoólico, da intimidade ou da falta de vergonha, o falastrão poderá desfilar detalhes capazes de fazer corar uma freira. Ou se gabará por ter uma vida de Paxá: ao som de suas palmas, coisas incríveis acontecem. A alegria, na certa, terminaria se um gaiato fizesse a pergunta fatal: mas, nesse tudo, está tudo mesmo? Claro que ninguém questiona. Estragar a festa, para quê?

Porém, embriagado por uma aflição inexplicável, desde que comecei a escrever, o fiz disposto a abrir o coração. Dar uma de Jesus Cristo e me imolar por todos nós, homens. Morrer (atenção que é metáfora, se acontecer algo comigo não usem esse texto como carta de adeus) para libertar a todos de seus pecados. Ou, no caso, sonhos. Jogar a dádiva no ventilador! Ainda agora, nas últimas linhas do derradeiro parágrafo, brilham as teclas capazes de revelar o secreto desejo dos homens. Vou ao sacrifício na esperança de que a amada me atenda, constrangida pelo testemunho dos leitores? Ou me calo outra vez? Força: desde a primeira hora do dia, estive com a impressão de que era agora ou...


11.3.10

Número 360

TANTAS INFUSÕES...

Surpreendo-me distraído, preparando o café da manhã. Uma ação que, de tão rotineira, assume contornos de ato reflexo. Tanto quanto lavar o rosto, fazer o café já se tornou uma prática adotada pela coletividade. Hoje, parece acontecer em cada metro quadrado do planeta. Porém, a banalidade esconde a natureza mágica e ritualística de preparar e sorver infusões. Pior: a pressa sonega dos sentidos toda e qualquer ambição transcendental que, um dia, encantou o homem diante do vapor aromático e do paladar excêntrico.

Há registros que datam a preparação sistematizada de chás no Oriente à época da dinastia Tang. Parênteses: a coincidência com determinado suco em pó pode tanto ser algo a enaltecer em termos de marketing, como a lamentar pelo sabor adocicado da bebida industrializada. Sem incidir em excessos, arrisco-me a elevar o ato de mergulhar ervas, flores, folhas ou raízes em água quente a uma escala global e tempos imemoriais. Afinal, também nossos antepassados africanos, americanos e europeus, de modo mais ou menos organizado, experimentaram suas próprias imersões e usufruíram seus resultados.

O café como nós conhecemos, arábico, nascido da observação de pastores às reações das cabras que comiam a fruta, talvez seja a infusão mais relevante da história. No passado, denominou ciclos econômicos e, hoje, elevado a status de commodity, chega a rivalizar com o petróleo em termos de representatividade no mercado mundial. Nada mal para um líquido escuro incapaz de mover qualquer máquina. No entanto, o que ele proporciona vai muito além da combustão ou da petroquímica: deleite! Além do perfume imbatível e do sabor inigualável, o café ainda oferece como subproduto uma maior disposição – há quem seja movido pela cafeína. Aposto que essa droga lícita até nos deixa mais inteligentes.

No Cone Sul (Brasil, Argentina, Uruguai...), temos outra infusão digna de registro: o chimarrão. Há poucos dias estava, justamente, ensinando meu filho a cevar o mate. Ensinando modo de dizer: ele mesmo afirmou que, na teoria, por observação, já era capaz de montar o chimarrão sozinho. Logo, o que fiz foi apenas lhe dar a oportunidade de preparar a bebida que seria compartilhada por nós. Mesmo aquém do café em termos de perfume e intensidade gustativa, o chimarrão é, para nós gaúchos, a síntese da congregação. Enquanto a cuia roda, os homens são iguais, adquirem um caráter de pertencimento e cultivam a fraternidade. Valores dignos de serem passados para aqueles que estão, justamente, entrando na juventude.

Por falar em legado, jamais podemos deixar de mencionar o valor medicinal dos chás. Quantas dores de barriga foram amenizadas pelo delicioso remédio familiar? Outras vezes, é no amargor da infusão que repousa a solução de nossos males. E, mesmo quando a química contida na água quente em nada contribui para a cura, o carinho de quem oferta um chá pode vir a ser o placebo mais eficaz do mundo – principalmente para os reflexos da dor em nossa alma.

Como estava dizendo, surpreendi-me, distraído, preparando o café pela manhã. Mas – que dádiva! – seu perfume acabou por me libertar das grades da banalidade. Talvez esteja aí a grande importância dos pequenos rituais: nos induzir para além dos movimentos peristálticos ou condicionados. E, no beijo quente da xícara, pelo método mais saboroso: o do prazer.

4.3.10

Número 359

TODA INFIDELIDADE É BURRA

Pesquisadores ingleses colocaram mais um tijolinho na muralha que divide os homens entre fiéis e infiéis. Agora, de acordo com os números apurados, os comportadinhos tendem a ter um QI mais elevado do que os peraltas. Em outras palavras, a inteligência seria um traço mais frequente nos rapazes monogâmicos. Ou, sem perder a graça, fica revogada aquela máxima que diz: duas cabeças pensam melhor do que uma. Pela nova lógica, a sabedoria repousa em não dar ouvidos aos argumentos sempre muito urgentes da cabeça pélvica, má conselheira contumaz. Parênteses: estranhamente, tal relação não apareceu entre as mulheres pesquisadas.

De modo tão instantâneo quanto o nascimento da exceção quando proposta a regra, surgiram piadas assim que anunciaram o resultado da curiosa pesquisa. As primeiras que ouvi: burrice é trair e ser flagrado; homem inteligente jamais admite que trai (nem mesmo em pesquisas); tudo não passa de uma conspiração dos chifrudos para desqualificar os amantes da esposa. Outra foi indagar a legitimidade dos ingleses e norte-americanos para servirem de parâmetro quando o tema é sexo, o que faz muito sentido... E a melhor de todas: homem inteligente não trai a esposa porque é solteiro! A enorme repercussão da pesquisa prova, sem dúvida, o sucesso que é debater nossa sexualidade.

Nessas todas fiquei com algumas dúvidas: estaria a fidelidade tão desprestigiada nos dias de hoje a ponto de precisar outra virtude associada para enaltecê-la? Ou, ainda pior, um homem casado assumiria a fidelidade não por ser o correto em termos éticos, e sim para contemplar a opção mais racional? Valeria mais escapar de um divórcio oneroso do que corresponder verdadeiramente a um juramento de lealdade? Quando a (re)pressão sexual se distende, o senso comum aponta justamente para o caminho contrário, ou seja, anormal é aquele que fica de fora da festa, da orgia. Periga ter safado se comportando melhor por pura malandragem!

Eu, muito particularmente, continuo fiel a minha teoria que divide os homens e as mulheres nos grupos com e sem vergonha. De acordo com ela, os com vergonha são fiéis por natureza e total incompetência para agirem de outra forma. Se pularem a cerca, ou serão flagrados, ou terminarão confessando para aplacarem a torturante culpa. Já os sem vergonha ‒ que fazer? ‒ não traem por maldade: apenas respondem a uma verdade pessoal. Para eles, para elas, casos extraconjugais não representam necessariamente uma traição. Sexo e compromisso estão em gavetas separadas. Enfim, contrariando a pesquisa, a fidelidade estaria muito mais ligada aos traços de personalidade, anteriores ao casamento ou namoro, do que aos níveis de QI.

Porém, correndo sérios riscos de parecer moralista, quando um pacto de confiança existe, assinado ou não, considero toda infidelidade burra. Afinal, desobedecer regras ‒ romper compromissos ‒, sempre implica sanções. Por mais que existam justificativas (e elas sempre existem), quem trai perde a causa. Para escapar dessa armadilha, a única saída é o diálogo. No momento em que ambos refazem os pactos, casos extraconjugais deixam de ser deslealdades. Antes disso, ou quando isso não é possível, o traidor estará sempre constrangendo, ferindo e humilhando a pessoa amada.

Opa! Agora a vaca foi para o brejo: inventei de falar de amor no final da crônica. Logo dele, que tem o poder de tornar irrelevante o embate entre o instinto e a razão...