30.8.07

Número 230

A COBRAR

 

Juarez, cinqüenta e dois anos, engenheiro de vendas, casado, dois filhos, enfarta com as chaves do carro na mão. A morte não estava em seus planos de, digamos, curto prazo. Ainda mais naquele dia: retornaria para casa com uma notícia fundamental. Por isso, faz de tudo para ser recebido em instâncias superiores.

– Com licença, eu gostaria de falar com o senhor...

         Pedro olha o recém chegado por cima de seus óculos de leitura. Dá um longo suspiro e atende com a santa paciência:

– Você diz, o Nosso Senhor?

– Não, não: com o senhor mesmo. – o homem se achega, confiante. – Me chamo Juarez e lhe indicaram para resolver o meu problema.

– Desculpe-me, filho – explica o Santo – aqui não há mais problemas.

– Justo! Este é o caso: se eu acho que tenho um problema, é a prova de que não estou aqui, como dizer, por inteiro.

         Nuvem adentro, já ao lado de Pedro, Juarez dá claros sinais de sua determinação. O Santo abandona o livro e resolve atendê-lo com meio sorriso.

– Ok. E qual seria este seu problema?

– Eu preciso falar com a minha esposa, digo, viúva – apontando para a Terra.

Pedro é categórico:

– Impossível! – desviando o olhar de volta para a sua leitura. – É contra as regras.

– O senhor não entendeu: é importante! Quando morri, tinha algo a dizer que mudará o destino da minha família! E eu pago bem!

– Filho – Pedro volta-se para Juarez em tom de advertência – é você quem parece não entender este seu novo momento... Além do mais, está esquecendo de um detalhe mortal: seu dinheiro ficou todo do lado de lá – e estende a mão para baixo.

Quando São Pedro retorna ao livro para dar o assunto por encerrado, resmungando contra o anjo que deixara o novato passar, Juarez tenta a última cartada:

– Então ligamos a cobrar! Isso: Ana Lúcia jamais recusaria a minha chamada!

 

Ana Lúcia, quarenta e nove anos, contabilista, viúva, mãe de dois filhos, passeia na calçada com Marvin, seu Yorkshire. Toma um tremendo susto ao ser abordada, de sopetão, por uma cigana:

– Madame, madame: Eleonora vê o passado, o presente e o futuro... E alguma coisa diz para Eleonora que a senhora precisa saber de algo muito, muito importante! – uma pausa, olhos nos olhos, voz grave: – É sobre o falecido...

Marvin, latindo e avançando nas pernas da cigana, precisa ser contido no colo. Ana Lúcia tonteia a ponto de balançar em suas convicções: como saberia tal mulher da recente morte de Juarez? Mas, em um resgate de lucidez, pergunta:

– Hummm... e como é que é isso?

A Cigana estende suas mãos em um gesto dúbio, talvez para pegar nas mãos de Ana Lúcia e ler o futuro, talvez para receber adiantado:

– São duzentos reais...

 

São Pedro recoloca o telefone no gancho. Olha condoído para Juarez.

– Sinto muito, filho: desligaram.

23.8.07

Número 229

A COMISSÃO

 

Atualmente, a população humana está na casa dos bilhões, e não pára de crescer. Por isso, mesmo reconhecendo a onipotência Divina, desconfio que o Todo Poderoso está recorrendo a uma Comissão para auxiliar na tarefa de criar homens sempre inéditos e particulares. Algo como uma equipe de cinema, cada um com uma especialidade. Ao menos essa seria uma explicação convincente para os diferentes talentos e vocações de cada um.

 

Os homens criados sob forte influência dos roteiristas, por exemplo, seriam aqueles que sempre sabem o que dizer. Comediantes natos, políticos rápidos, sedutores incorrigíveis, os filhos dos roteiristas são aqueles que têm as respostas na ponta da língua. Sempre com os melhores argumentos.

 

Está com inveja? Pois, que tal os descendentes dos diretores: além de dominarem o texto, capricham no timing e na entonação. Nasceram para estar no comando. São tão convincentes e ensaiados, que passam para os outros a idéia de que tudo está sendo filmado o tempo inteiro. Nunca são pegos de surpresa: vivem em um constante déjà vu.

 

Os homens que nascem da cabeça dos figurinistas têm muito estilo. Não importa se são neohippies, pósyuppies, prépunks: tudo o que vestem lhes cai bem. No inverno ou no verão, para festas ou no trabalho, eles estão corretíssimos e atraem os olhares. Quando ficam em crise total, parados defronte ao closet (sim, guarda-roupa é para os outros), o que fazem? Ditam uma nova tendência de moda.

 

Quando brota das pranchetas dos diretores de fotografia, o camarada se parece com um camaleão. Não tem um estilo: tem todos. Com isso, fica como que mimetizado ao ambiente, circulando como se fosse o detalhe que faltava para compor o quadro. Dificilmente chama a atenção para si. Nem por isso deixa de ter a importância reconhecida. Afinal, carrega consigo o poder da harmonia.

 

Peculiar, também, é o destino de quem se origina das planilhas dos produtores. Estas pessoas não são charmosas, não falam bem ou chamam a atenção com facilidade. Em compensação, sabem lidar com a informação como ninguém. E, captando recursos de toda a ordem (monetário, material e humano), fazem de si alguém de inestimável utilidade. E, é claro, de muita influência.

 

Os homens que são criados pelos financiadores são conhecidos pelo apelido carinhoso de "filho do homem". Provêm de contas numeradas de bancos estrangeiros e, muito família, delas nunca se desligam. Não são charmosos, ou articulados, ou líderes. Nem precisam ser. Ricos, espertos e ríspidos, não encontram dificuldade em exercer o mais feroz dos poderes: o monetário.

 

Mas, como falei, estamos na casa dos bilhões. E, por mais roteiristas, diretores, figurinistas, diretores de fotografia, produtores e financiadores que estejam supostamente trabalhando na Comissão do Criador, jamais dariam conta de tantas tarefas. Então, se você não tem o dom da palavra, o charme que todos invejam, a presença de espírito, muita grana ou outras qualidades descritas acima, faça como eu: conforme-se em ter sido projetado por um estagiário.

 

Sim, na Comissão, há milhares deles.

17.8.07

Número 218

CONDENADOS

 

Está na resolução n° 245 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran): a partir de agosto de 2009, todos os carros zero quilômetros deverão sair das montadoras já equipados com rastreadores e bloqueadores antifurtos. De acordo com as autoridades, tais equipamentos permitem recuperar até 90% dos veículos furtados. Com isso, ao proprietário será facultado gastar mais (contratando o controle do veículo 24 horas por dia, via satélite), ou menos (caso opte por um bloqueio simples, via celular) para buscar seu carro de volta. Prender ladrões e receptadores, aplicando corretamente os impostos, nem pensar.

 

Esta fórmula invertida de resolver o problema da segurança pública, isto é, repassando a (dupla) conta e o gerenciamento para o cidadão, poderá servir de modelo para os demais órgãos governamentais. Afinal, temos culpa de nascer no Brasil. E culpa maior em caso de mérito –   como é a situação dos afortunados que conseguem comprar um carro novo. Nos moldes do Contran, viriam estas outras resoluções:

 

Resolução da Secretaria de Obras: a partir de tal data, toda construção residencial seria obrigada a conter, em seu projeto, grades em todas as janelas e portas. Mais: cerca elétrica e arame farpado; alarme com sensores de presença em cada peça e monitoramento (operado por empresas ou via celular); canil e guarita na calçada. Afinal, mais de 90% das casas arrombadas não contam com a metade destas garantias.

 

Resolução da Secretaria de Comércio e Serviços: a partir de tal data, só receberia alvará de funcionamento o estabelecimento que apresentasse, em seu projeto, um sistema de monitoramento interno via circuito fechado de TV. Além disso, deveria conter portas com detector de metais, botões anti-pânico em locais estratégicos e guarita à prova de balas. Para o caso de bares e restaurantes, seria exigida a apresentação dos diplomas de Ninja de seus garçons; aos cozinheiros, Curso de Atirador de Facas. Heliporto e telefone vermelho dentro de uma queijeira – para falar direto com o Batman. As estatísticas indicam que mais de 90% dos casos de assalto seriam evitados com tais equipamentos.

 

Resolução do Conselho Tutelar: a partir de tal data, todo bebê que nascesse em lar brasileiro deveria ganhar uma pulseira de rastreamento via satélite. Nela, um chip programável informaria aos pais, com preços módicos, a freqüência da criança nas aulas, com quais amiguinhos ela tem andado e se foi ao banheiro hoje (e quanto tempo lá permaneceu). Para o caso das mães que trabalham fora, informaria se chegou perto do fogão e tomadas elétricas; ou mesmo se ficou todo o tempo na frente da TV. Pesquisas indicam que mais de 90% dos casos de delinqüência juvenil, acidentes domésticos e prisão de ventre seriam prevenidos.

 

Outros projetos: a obrigatoriedade de cintos de castidade para todas as mulheres, a fim de prevenir estupros. Detectores de mentira individuais, para escapar de estelionatos. Coletes à prova de bala em qualquer traje (principalmente uniformes escolares), para escapar de balas perdidas. Toque de recolher nas doze badaladas.

 

Então, no momento em que todas estas portarias entrassem em vigor – agosto de 2009, quem sabe, junto com a inspiradíssima resolução 245 do Contran –, os governantes poderiam, enfim, abrir de vez as portas das prisões. Teria sido mais fácil e barato monitorar, cercear e enjaular todo mundo.

 

Exagero ou premonição?

9.8.07

Número 227

ÓRFÃOS

 

É complicado ser órfão no Dia dos Pais: um patinho feio que será esquecido por todos os anúncios e cartões da data. Pai morto não ganha furadeira ou espeto de churrasco. E, muito menos, pagará a conta do presente que o filho lhe comprar. Mas existe muita gente que encontra mais motivos para chorar do que para sorrir no segundo domingo de agosto. À revelia dos departamentos de marketing.

 

Entre os amigos pessoais que perdi e a maior tragédia aeronáutica do Brasil, nenhum outro Dia dos Pais me avizinhou com tantos falecimentos como esse de 2007. Dos tantos órfãos que surgiram ao meu redor, embalados por fatalidades pessoais e coletivas, cada qual sofrerá a dor da separação de modo particular, apanhado pela fatalidade em momentos distintos da existência.

 

Como é o caso de um pequeno amigo, bebê lindo e de olhos azuis, que ganhou do pai os mais afetuosos abraços do mundo, mas terá essa lembrança impressa apenas no coração, e não na memória. Quem lhe deu a vida partiu muito cedo, antes mesmo de ganhar, em retribuição, o valioso porta-lápis pintado com tinta têmpera na sala de jardim de infância. Caberá à mãe, aos tios e amigos, a incumbência de contar as histórias do pai, para garantir-lhe a presença. Justo (injusto!) um pai conhecedor de tantas histórias que mereciam ser compartilhadas.

 

No dia dezessete de julho, data do vôo TAM3054, muitas outras crianças também perderam os pais. E o fato de algumas serem crescidas, levando para adiante boas lembranças paternas, não será de modo algum suficiente consolo. Ao contrário, receberam da vida um ensinamento duro e precoce: o de que o papai super-homem não é invencível. Todo cuidado será necessário para que o medo não seja a companhia destes pequenos.

 

Igualmente, jovens e adolescentes, às pencas, acabaram por se despedir para sempre de seus velhos nada velhos no aeroporto. Com isso, deixarão de receber preciosos conselhos que fariam questão de ignorar para, mais tarde, compreender. Sobre seus ombros, pesará o amadurecimento instantâneo imposto pela orfandade. Já tendo passado por isso, mesmo que em outro momento da vida, garanto: Quando morre o pai, parecemos envelhecer décadas em um instante. Torço para que todos suportem a carga.

 

Porém, de todas as mortes que assaltaram minha (nossa) rotina nesses dias, existe uma que traz consigo a maior de todas as dores. Ela é uma orfandade ao contrário: a que se impõe ao pai no sepultamento do filho. Afinal, na medida em que o homem se torna perpétuo em sua descendência, morre seu futuro quando o destino lhe ceifa o herdeiro. Esta é a maior provação pela qual pode passar um pai.

 

Sou pai, e temo mais pela vida dos filhos, do que pela minha própria. Desde que o primeiro me chegou ao colo, ainda na sala de parto, conheci a maior alegria do mundo. Ela só encontra magnitude rival com a responsabilidade que nasce junto com aquela vida que ajudamos a gerar. Cumpro meu encargo enfrentando o desgaste da educação, o tolhimento da liberdade, as renúncias voluntárias. Nenhum sacrifício, diga-se.

 

Nesse Dia dos Pais, quero me solidarizar com os órfãos, crianças e jovens, marcados em perdas recentes. E, principalmente, com os pais que se despediram de seus filhos muito antes da hora, dor imensa. Vocês não estão estampados em nenhum cartaz de loja. Mesmo assim, conhecem como ninguém o significado das palavras presente e lembrança.

2.8.07

Número 226

A LINHA TÊNUE

 

Bezerra entra na loja de armarinhos do Turco. Primeira vez. Seu ar é de desconfiado. Freguesa, é sua Madalena – comprara lá desde os lençóis do enxoval, passando pelas fraldas dos filhos e, mais recentemente, os guardanapos escolares dos netos. Mãos para trás, os olhos para o alto, um leve cantarolar nos lábios. Em poucos passos já está no balcão, diante de Aziz, que lhe sorri encantador.

– Bom dia, freguês! – ele abre os braços com as mãos espalmadas para cima. – O que procura, seja o que for, temos por bom preço!

Bezerra responde o cumprimento com um meio sorriso. Solta as mãos. Fixa o olhar no vidro do balcão. Percorre com o dedo indicador os diversos escaninhos lotados de carretéis. Estaria, na verdade, atrás de algo muito difícil: uma linha a qual todos se referiam, mas que nunca mais vira. Uma linha tênue. Teria dessas?

– Depende, freguês. Depende... – puxa de cima da mesa o carretel de linha verde. – Dessa aqui, por exemplo, agora mesmo levaram um pouco: é a linha tênue que separa a boa intenção da incompetência. Interessa?

Sem tirar os olhos da vitrine, Bezerra nega com a cabeça. Dá duas batidinhas de unha e aponta para a cor de laranja. Ergue o olhar.

– Está mais para essa...

– Ah, a linha que separa a letargia da classe média da ignorância diante do perigo constitucional. Faz tempo que ninguém a percebe. Perdoe a curiosidade, mas o senhor está desconfiando de algo?

– Não, não. Gosto do tom, apenas. Tem bastante dela, ainda?

– Carretel único, freguês, bem no fim – desconversa. – Mercadoria que não gira, comerciante algum repõe.

O Turco puxa a gaveta para si em busca de alternativas:

– Olha, para ser franco, bastante tenho dessa, amarela – apanha o carretel e alcança para Bezerra. – Vê se gosta: é a linha tênue que separa a pretensão de inocência da investigação isenta. Faz anos que está na moda!

– Vê a minha idade, seu Turco! – franze o cenho, olha nos olhos. – E homem velho liga para moda?

Aziz corre com as mãos atrás de algo melhor para oferecer. Pára na linha preta. Muda de idéia: apanha a cinza. Ela separaria a consciência crítica da informação pura e simples.

        Gostei. Meu genro, por exemplo, nem faz idéia que ela possa existir.

Nesse momento, Bezerra tira uma pequena amostra de linha do bolso. Coloca sobre o vidro. Vai ao assunto:

– Essa, a linha tênue que separa a ação política descomprometida da corporação partidária, o senhor tem para vender?

O Turco olha em volta. Estão a sós. Pede licença, sai de trás do balcão. Fecha a porta de vidro da loja. Tranca. Passa correndo e pede com as mãos que o aguarde, diz que está no estoque. Ruma para os fundos.

Bezerra fecha as mãos e comemora. Pega o telefone celular. Busca na agenda do aparelho o nome do amigo repórter de jornal. Chama o número e desiste. Guarda o celular. Pára defronte a vitrine de lingeries, passeia com os olhos.

Espia a porta por onde sumiu Aziz. Volta a apanhar o telefone. Disca para casa. Toca diversas vezes. Ninguém atende. Caminha até a porta de vidro com as mãos nas costas. Ainda segura o celular. Cantarola. Retorna para o balcão. Repara: O Turco levou a amostra! Liga para o repórter. Toca uma vez. Duas, três vezes.

Escuta uma sirene. Parece que é a Polícia.