29.12.09

Número 350

TRIBUTO AOS PESSIMISTAS DE PLANTÃO

Coisa irritante é essa época do ano, não acham? Parece que todo mundo resolveu ficar feliz, com uma alegria sem motivo ou, pior, movida apenas pela convenção do calendário. Será que esse coro dos contentes não vê que dezembro e agosto são iguais? E maio e setembro e fevereiro e julho... Só porque resolveram virar o ano nesse período, ficam impondo bem-dizeres. Quem aguenta?

Aliás, espero que 2009 vá embora de uma vez por todas. Êta aninho sem graça! Quando choveu, molhou tudo. Mas não ficou nisso: alagou. Em algumas regiões, consta que foi o ano mais chuvoso em cem anos. Até parece que os outros 99 deram mole para nós: esses caras só olham o lado positivo da estatística! E o sol, então? A camada de ozônio anda uma peneira velha. Com isso, ficou impossível ir para a rua de dia. Nem durante a chuva, pois as nuvens nos molham, mas não barram os raios daqueles raios UV. Saiamos à noite para sermos assaltados!

Dezembro vira uma verdadeira gincana. Não bastasse tudo que se tem para fazer normalmente, ainda tem o Natal. E as mensagens de Natal. E os espiritualizados lembrando todo mundo que as Festas existem para elevar o pensamento. E os lojistas lembrando que o crediário existe para elevar nosso poder de compra. E as financeiras lembrando que os juros existem para elevar seus lucros. E os filhos, netos e sobrinhos lembrando que os presentes simbólicos (maneira educada de dizer baratinhos) existem para elevar nossas culpas. E quando o presente é caro, dizem que também é por culpa da culpa!

É nessa época, também, que tiramos férias. Coisa horrível! Férias é igual a domingo: só existe para lembrar que dura pouco e no outro dia é segunda-feira. Quem vai para o Litoral, fica com inveja dos que estão na Serra. Quem está na Serra, sente falta de um banho de mar. Quem fica na cidade não tem o que fazer, nem amigos para conversar. E, se resolve dar um pulinho na praia no final de semana, fica parado na estrada reclamando que os outros tiveram a mesma ideia. Para viagens, caos nos aeroportos. Roteiros alternativos são sinônimos de mosquitos e banho frio. Aí, o melhor continua sendo ficar em casa: só assim se pode reclamar o ano inteiro que não se fez nada durante as férias.

Quem acha que está ruim, esqueceu dos otimistas. Os queridos que lotam nossa caixa de mensagem com desejos irrealizáveis. Dinheiro, sucesso, amor, amizade... Até parece que o Ano Novo vai ser diferente. Só porque é novo, não quer dizer que não venha bichado. Pensando de modo realista, as chances de baterem no seu carro ao furarem o sinal vermelho continuam as mesmas. Ou melhor: se não aconteceu ainda, só aumentaram! A mulher pode sair de casa, o marido arrumar uma amante, o filho rodar no colégio. 2010 é uma caixinha de surpresas desagradáveis, creia. Está só esperando o dia primeiro para nos decepcionar.

Estou exagerando, é?! Ah, não é bem assim? Parece que eu estou tirando onda, ou disfarçando muito mal o meu otimismo, reclamando de forma caricata? Quer dizer, então, que só vocês podem se queixar e lotar nossos ouvidos de lixo? Antes de escrever, deveria ter desconfiado que é impossível agradar vocês, os pessimistas de plantão.

Agora me afundo de vez: FELIZ, MUITO FELIZ ANO NOVO!

22.12.09

Número 349

NOEL NÃO EXISTE

Eu sei que essa polêmica sobre Papai Noel existir ou não é tão velha quanto piada sobre peru de Natal. Porém, me dei ao trabalho de recolher evidências mais do que suficientes para convencer até mesmo os mais crédulos de que o Bom Velhinho, por mais doloroso que seja, não existe. Vejamos:

Primeiro, quem acharia plausível que um garoto propaganda (e garoto, aqui, soa com muita ironia) ostentasse tamanho sobrepeso em uma época de evidente culto ao corpo? Como pode essa figura ilustre ainda não ter sofrido alguma pressão das entidades ligadas à saúde para deixar de estimular o acúmulo de gordura abdominal, fator de risco às doenças cardiovasculares? Bom velhinho, de verdade, mantém o peso sob controle através de dietas orientadas e exercícios moderados. Mesmo assim, Noel segue brilhando como um ídolo. Por isso, afirmo: esse cara não existe!

Outra: nenhuma de minhas roupas, por mais clássicas que sejam, sobrevive ao tempo sem as máculas da mudança de moda. Seja pelo corte, pelo tecido ou caimento, tudo na indústria do vestuário pede atualização. Sem parar, crescem e diminuem as ombreiras; alargam e estreitam as golas dos casacos e as bocas das calças; sobem e baixam as cinturas; cores vão e voltam... Só o jaquetão vermelho do Papai Noel, suas calças largas, cinto preto de fivela quadrada e gorro (gorro!) de pompom seguem firme. Nem os uniformes dos times de futebol, cuja expressão “uniforme” presumiria longevidade, deixam de ser atualizados. Logo, esse fenômeno fashion natalino, que atende pelo nome de Noel, só pode não existir!

Mas não para por aí. O que diriam meus amigos se eu ainda dirigisse o Corcel 1977 com o qual prestei exame de motorista? Carro muito bom para a época, típico de classe média, não tinha injeção eletrônica, freios ABS, air-bag, vidros elétricos, desembaçador, ar-condicionado, cintos retráteis, apoio de cabeça nos bancos e outros inúmeros itens normais na atualidade. Automóveis como esse foram batizados pelo Collor de “carroças”, lembram? Só Papai Noel não avalia a possibilidade de aposentar seu velho trenó movido por força animal. Então, já viram um homem que jamais pensa em trocar de veículo? Realmente, não existe!

E a barba? Se não for por preceitos religiosos, ninguém mais usa barbas longas hoje em dia. Lembrou do Fidel? Eu também! Mas, sejamos justos: o líder cubano não é parâmetro seguro para quem deseja defender tendência de comportamento. Se o Papai Noel existisse de verdade, já teria sido aconselhado a aparar a barba, como bem manda o visual do momento. Ou mesmo raspar, o que faria Noel rejuvenescer uns cinquenta anos... Além do mais, as mulheres pós-feminismo, seguras do que desejam, andam pouco pacientes com os companheiros barbudões. E um camarada que resiste firme e por tanto tempo à pressão feminina para uma aparadinha na barba não existe.

Por fim, minha tese ganha força lembrando a inquietação que a letra da antiga canção natalina já nos trazia: “Como é que Papai Noel, não esquece de ninguém?”. Do tempo em que foi composta para cá, a população humana cresceu aos milhões, espalhada em cada canto do planeta. A medicina, por sua vez, demonstrou para onde vai a memória com a chegada do Alzheimer. E, nessas todas, como crer que, “Seja rico, seja pobre, o bom velhinho sempre vem?” Nada me faz pensar que alguém desligado de sua saúde, barba por fazer, que não se importa em vestir sempre a mesma roupa e nem pensa em trocar de veículo, vai investir num computador. Avaliando sem paixões, com a quantidade de trabalho que dá atender todas crianças, alguém que confia simplesmente na memória, sinceramente, existe?

PS para o caso de o Noel estar lendo: velhão, você não existe, mesmo!

18.12.09

Número 348

NÃO PERDI: SÓ NÃO SEI ONDE ESTÁ

Existem duas situações que, mesmo diferentes entre si, quando vistas de modo simplificado, se irmanam. Refiro-me a perder as coisas e não saber onde elas estão. Aconteceu comigo esses dias: minha mulher encontrou órfã, na área de serviço, a capinha do recém comprado guarda-chuva portátil. Perguntou onde ele estava. Respondi que não sabia. “Depois reclama quando as crianças perdem as coisas”, ela me repreendeu. Em minha defesa, disse que não havia perdido, só não sabia onde ele estava. Gargalhando, ela não aceitou meu argumento. Porém, sustento que há diferenças.

Por exemplo: se por distração, desleixo ou mera interrupção da tarefa (toca a campainha), eu deixo a tesoura da cozinha sobre a pia. Ato contínuo, alguém passa e a leva adiante. Quando retorno ao local, sem encontrá-la, considero que a perdi? Ou simplesmente não sei onde ela está? Ora, objetos inanimados não mudam sozinhos de lugar. Logo, se alguém pegou de onde eu tinha certeza ter deixado, simplesmente não sei onde está. Mesmo que pareça ter perdido! Nesse caso hipotético, se a pessoa que apanhou a tesoura de cima da pia foi minha esposa, nem é preciso sair da cozinha: basta ir à segunda gaveta (de cima para baixo) e lá estará. Tudo que passa por sua mão repousa no lugar. Mas, e se foi um filho?

Na mesma situação, tudo muda se vou atender à campainha levando a tesoura comigo, e a deixo sobre o chapeleiro do hall de entrada para apanhar a chave da porta ali pendurada. Agora, ao retornar à tarefa, constatarei ter perdido a tesoura. Notem: ninguém mais interferiu na ação. Restará a alternativa de refazer meus passos para tentar de algum modo encontrar o objeto perdido. Isso na hipótese de a esposa já não ter passado pelo chapeleiro do hall de entrada e ter devolvido, indignada, a tesoura para o pouso correto. Sim: aqui em casa, o primeiro lugar para se procurar algo é onde sempre deveria estar. Sou casado com a organização em pessoa.

O caso do guarda-chuva novo foi parecido com o exemplo da tesoura: saí com ele para ir à casa de um vizinho próximo. A chuva prometida não aconteceu: perde-se guarda-chuvas assim. Cauteloso, usei toda minha concentração para voltar com ele para casa. Entrei pela porta da área de serviço. Deveria estar ali, bem próximo de onde ficara sua capinha. Mas não estava. Por isso, justo depois de tanta atenção, de tanta certeza, não aceitei a acusação de tê-lo perdido. Tinha convicção: voltei com o guarda-chuva para casa, só não sabia onde estava. Gargalhadas...

Anteontem (de quando escrevi a crônica) nosso filho encontrou o guarda-chuva. Estava pendurado no cabide de parede onde há bonés, sacolas de feira, guia do cachorro, aventais de cozinha etc. Além de não ser seu lugar habitual, estava oculto pelo avental de churrasco. Em suma, nunca havia saído da área de serviço. Apanhei-o nas mãos, triunfante, e bradei: “Viu só! Eu disse que não tinha perdido! Só não sabia onde estava!” Na certa, alguém o guardou fora do lugar. No caso, se eu tivesse deixado na casa do vizinho, aí sim teria perdido.

Ao escutar meu libelo cheio de entusiasmo, o filhão disse que existe uma comunidade do Orkut com esse nome. Aliás, segundo consta, ele próprio é um dos integrantes. Está lá: “Não perdi, só ñ sei onde está”. Na foto, uma menina mergulhada em seu guarda-roupa. São 801.752 pessoas a me darem razão. Em sua maioria, devem ter sido acusadas injustamente de perder algo. Ganhei o dia!

Desde então, meu guarda-chuva portátil está, devidamente encapado, no lugar certo: no chapeleiro do hall de entrada, junto com suas irmãs sombrinhas. É onde também está pendurada a chave da porta, bem como manda o figurino. E, por falar chapeleiro do hall, se por acaso eu agora precisar da tesoura, sei exatamente onde encontrá-la.

Na segunda gaveta da cozinha, de cima para baixo. Claro!

10.12.09

Número 347

AMIGO SECRETO

Um dos mais tradicionais ritos de final de ano é o amigo secreto. Em resumo, um sorteio para definir a quem presentear entre familiares, colegas de trabalho, amigos, vizinhos ou qualquer outro grupo que pretenda festejar Natal e Ano Novo. Prenúncio de desastre, ele é adotado pelo mesmo motivo por que optamos pela democracia: dos males, continua sendo o menor. Comprar presentes para todos é muito caro. Para ninguém, antipático.

Desde a primeira vez em que participei de amigo secreto, assisti inúmeras tentativas de aperfeiçoar o método. Por exemplo, estipular um valor a ser despendido. Fruto do nobre intuito de evitar constrangimentos entre humildes e abastados (ou domar avarentos e perdulários), o parâmetro monetário já apresenta defeitos na largada: nunca há consenso. Uns acham impossível comprar algo de qualidade por R$10,00, outros preferem morrer a gastar R$50,00 nessa bobagem. Deixar em razoáveis vinte ou vinte e cinco reais pode até funcionar. Mas sempre aparece aquele maldoso fofoqueiro dizendo que determinado presente está por R$9,90 na loja da esquina, e olhe lá!

Outra forma de fazer o amigo secreto menos acidentado é o uso da lista de presentes. Nela, há um quadro em local público e, ali, cada um coloca o que gostaria de receber. Gravata, saleiro, tesoura de jardim, caneta tinteiro, xícara decorada... Aí começam a perverter: Grazi Massafera, Ferrari, laptop, a paz mundial etc. Mesmo quando todos levam a lista a sério, o risco de receber um presente horrível permanece. Uma vez coloquei na lista: despertador. Pensei que seria algo útil, fácil de encontrar, barato e com mínimas chances para o azar. Ganhei um relógio de mesa de ursinhos, daqueles que parecem esculpidos em durepoxi. Até hoje fico intrigado: devia ter uma mensagem subliminar embalada no mesmo pacote. Ninguém dá um presente desses sem segundas intenções...

Porém, o mais bizarro amigo secreto que já soube foi em uma empresa cuja gerente de RH era tão esforçada quanto inconsequente. Por uma teoria maluca, decidiu fazer um amigo secreto temático. Todos deveriam presentear os colegas com roupas íntimas. No quadro de dicas, as seguintes alternativas: convencional, moderno, avançado, sexy ou fetichista incorrigível. Depois, P, M, G ou XG. Frisson geral, comentários ruidosos, promessas de sacanagem... A empresa era só alegria enquanto dezembro avançava. Era de se tirar o chapéu para a RH, pois ela conseguira um ambiente descontraído em uma época do ano cheia de stress. Todos achavam graça, menos o Durval.

Durval recém havia começado no emprego e era muito, muito tímido. Não tinha coragem de perguntar quem era Gessy, que nunca encontrara em sua rotina. Com certeza trabalhava, como ele, direto em serviços externos. E lá estava no quadro de dicas, supostamente marcado por Gessy: sexy, M ou G – quem haveria de duvidar? Durval, filho temporão e solteiro, não fazia ideia de como escolher uma boa lingerie. Encheu-se de coragem e comprou um baby-doll azul turquesa. Tamanho G: não queria parecer vulgar.

Quando o Dr. Gessy, diretor da empresa, foi saudado ao microfone, Durval pensou que fosse enfartar. E, segundo o protocolo, o chefe precisava ser o primeiro a receber o presente (voltaria para São Paulo em poucas horas). Durval subiu ao palco e improvisou: disse que comprara o presente pensando em quanto o Sr. Gessy apreciaria retirá-lo de sua companhia amorosa. Aberto o pacote, todos passaram mal de tanto rir. O próprio Dr. Gessy se contorcia. Depois do surto hilariante, aos sussurros, começou um bookmaker para descobrir se o pobre Durval resistiria no emprego até o Ano Novo.

Em dois dias saiu a nota de demissão: foi-se a gerente de RH. Durval se mudou para São Paulo, promovido ao escritório central. Hoje é o braço direito do Dr. Gessy. Sem dúvida, o danado acertou na cor.

3.12.09

Número 346

NO FUNDO, É TUDO AO CONTRÁRIO

No fundo, no fundo, os torcedores do Flamengo estão torcendo muito para o Grêmio engrossar o caldo no último jogo do Campeonato Brasileiro de 2009. Impor uma resistência brava, gaúcha, Farrapa! Transformar o Maracanã em um novo Estádio dos Aflitos e, quem sabe, lançar um DVD em 2010. Se os gremistas amolecerem, se entregarem o placar sem resistência alguma, de modo vergonhoso e pusilânime, o título ficará para a eternidade maculado – e de modo indelével. Não faltará, em nenhum dos botecos cariocas, um vascaíno para dizer a verdade: sem luta, não há mérito. O verdadeiro rubronegro almeja o título depois de uma batalha inesquecível.

No fundo, bem lá no fundo, os São-paulinos e Palmeirenses torcem de modo apaixonado pela amarelada do Grêmio no próximo domingo. Nada melhor do que conspurcar um título dos cariocas colando na faixa um episódio sórdido de entrega covarde capitaneado – que espetáculo! – por gaúchos. Aliás, isso será motivo de novas piadas sobre a masculinidade do Centauro dos Pampas, com requintes de crueldade. Todos os paulistas esquecerão o papel ridículo a que se prestou o Corinthians, cujo goleiro correu o risco de defender um pênalti sem sair do lugar: em ato reflexo, por pouco não esticou o braço para o lado. É o que bastaria para bloquear um chute quase no meio do gol. Depois, bateu palmas.

No fundo, no fundinho mesmo, os colorados torcem muito para os rivais humilharem-se no lendário palco do futebol mundial, ainda mais diante de todos os olhos da nação. Essa atitude colocaria para baixo do tapete uma quantidade enorme de pontos desperdiçados em jogos fáceis, diante da torcida, em pleno Beira-Rio. Nas contas de qualquer analista neutro, durante jornadas ridículas da equipe, o Inter jogou fora nada menos do que cinco pontos. Isso sem falar no prazer em lembrar dessa passagem negra da biografia tricolor para sempre. Aliás, seria uma atitude representativa para tantos outros fracassos no Rio Grande do Sul: aqui, se torce mais para o malogro do outro do que para nosso próprio sucesso.

No inconfessável fundo da alma, os gremistas de verdade torcem muito e fervorosamente, domingo, por aplicarem uma goleada heróica no Flamengo. Depois, todas as possibilidades de resultado no Beira-Rio são deliciosas: se o Inter empatar ou perder, a flauta será histórica. Se ganhar do mísero Santo André, os alvirrubros ficarão devendo este título para o rival por, no mínimo, três gerações. E, aos olhos da nação, a bravura tricolor fará sombra à taça de qualquer um dos beneficiados – prato cheio para quem se gaba de feitos improváveis, mesmo quando em escalas inferiores.

No fundo, bem no fundo, é tudo ao contrário do que parece. Mas ninguém está muito interessado em chegar no fundo dessas questões. É na superfície que respiram as aparências e derramam-se as lágrimas.

26.11.09

Número 345

NOVO PARABÉNS

Um dia, em um cubículo obscuro de uma repartição nada representativa de um escalão para além de inferior, dois prestimosos funcionários públicos chegaram a uma conclusão definitiva: ninguém aguentava mais cantar Parabéns a Você. Não era possível que, em um país como o Brasil, com sua vasta tradição musical, ninguém fosse capaz de atualizar a maneira de entoar os votos de aniversário. Pensaram em um concurso. Elaboraram um anteprojeto e, de articulação em articulação, percorreram os mais diversos escalões da política nacional. A ideia era convocar os mais talentosos compositores e criar uma nova trilha sonora para o apagar das velinhas.

Como a iniciativa não melhorava em nada a saúde, a segurança, a educação ou a infraestrutura nacional, ela prosperou. E, chegando à mesa da Secretaria de Comunicação do governo ao mesmo tempo em que eclodia mais um escândalo de corrupção, ganhou grande publicidade: o Brasil sempre soube eleger seus temas... Então, atraídos pelo nobre intuito de melhorar a vida das pessoas e, em escala menor, pelo elevado valor do prêmio, alguns artistas mandaram suas contribuições, salvaguardados em cuidadosos pseudônimos. Seguindo a tradição do sigilo em concursos no Brasil, tive acesso a uns fragmentos. Façam suas apostas.

Borges Vem Jor
Que maravilha / Nós gostamos de você / (tuturutututututu) / Que maravilha / Faz mais um pra gente ver / (tuturutututututu) / Quando esse dia foi chegando, ninguém acreditou / Com muito amor, com emoção, você aniversariou, oôu! / Foi há tanto tempo que esqueci do primeiro / Mas dá para ver que continua inteiro / Que maravilha / Nós gostamos de você...

Humberto Vil
Olha pr’esse bolo / Se lhe serve de consolo / Todo mundo vai querer / (vai querer) / Na data querida / Que consiga nessa vida / O melhor para você / (pra você-e-ê) / Apagando a vela / Desejar diante dela / Vai enfim lhe garantir (garantir) / Amor e dinheiro / E saúde por inteiro / No ano que está por vir (no porvi-í-ir!)...

Mico Buarque de Irlanda
Parabéns a você! (breque) / Parabéns a você / Amanhã há de ser / Outro dia! / Mais um ano acabou / E você não dançou / Isso ninguém queri-ia / A saúde vai bem / O dinheiro também / E você merecia! / Mais um ano chegando / E a gente querendo / Muito sua companhia / Parabéns a você! (breque)...

Zeca Tagordinho
Deixa a vida desejar: / Parabéns a você! / Deixa a vida desejar: / Parabéns a você! / Deixa a vida desejar: / Parabéns a você! / Paz, dinheiro e saúde / Para dar e pra vender! / (Só no sapatinho!) Deixa a vida desejar...

João Gil Lerdo
(introdução) Paraaabéns, bim-bom / Paaarabéns, bim-bom / Paraaabéns, bim-bom / Paaarabéns, bim-bom / Paraaabéns, bim-bom / Paaarabéns, bim-bom / Paraaabéns, bim-bom / Paaarabéns, bim-bom (paciência, ainda vai longe)...

Carlinhos Brownie
Parabenaculelê / Parabenaculalá / Paratimbum, paratinalê / Piroperoparará, tô lá! / Indaiaiê: saúde! / Ondanelê: dinheiro! / Parabenaculalé / Zunarecatinguelê! / (Mãinha, me alcança o caxixi) / chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic chic-chic-chic-chic-chic chic-chic-chic...

20.11.09

Número 344

A MORTE E A MORTE DE UM IMORTAL

Até a pé nós iremos, para o que der e vier
Mas o certo é que nós estaremos
Com o Grêmio onde o Grêmio estiver
Lupicínio Rodrigues


Meu sogro era gremista. Bem gremista. Visceralmente gremista. Tanto que, para estar à altura de sua paixão, decidiu levar esse ardor para além da vida. Ele, que talvez não seja o único, comprou uma sepultura especial no João XXIII: na face do cemitério porto-alegrense que dá vistas ao Estádio Olímpico. Desde 1996, é lá que repousa sua alma. Sobrevive (agoniza?) o plano de acompanhar a saga esportiva de seu amado time, do qual era sócio remido, para a eternidade. Seguindo à risca os belos versos do hino composto por Lupicínio Rodrigues, tornou-se um imortal tricolor.

Quanto respeito e admiração eu, que sou colorado de nascimento e orgulho, devoto ao grande gremista que foi meu sogro! Que honra me foi concedida ao me tornar parte da família de alguém cuja entrega transcende a própria existência terrena! Seu exemplo impõe a mim, esposa e filhos, alvi-rubros, um parâmetro elevadíssimo de apego. Afinal, nesse Grenal de torcidas, desejamos a vitória, mas o empate é o mínimo que perseguimos.

Por isso, em respeito à memória do Seu Telmo, quero registrar o protesto com relação à provável demolição do Estádio Olímpico, parte do projeto de uma arena esportiva em outro ponto da cidade. Caso se confirme, representará uma segunda morte imposta a um grupo de torcedores diferenciados e que elevaram suas intenções terrenas ao mundo dos céus. Verdadeiros tricolores imortais! Pessoas que dedicaram suas vidas ao Grêmio, e, para sempre, a morte também.

É claro que o tema suscita a história recente de Porto Alegre, na qual o Sport Club Internacional deixou o Estádio dos Eucaliptos para mudar-se para o Gigante da Beira-Rio. Porém, nossa nova casa (hoje quarentona) foi construída conforme o exemplo do lendário Olímpico: com recursos próprios, com participação da imensa nação colorada, com o suor e o sangue de mais de uma geração. O que se avizinha no horizonte tricolor é um estádio edificado por terceiros, dispostos a explorar comercialmente a paixão de uma torcida. Pior: caso o empreendimento naufrague em seu transcurso, como já ocorreu no recente e bem intencionado caso ISL, nossos irmãos azuis restarão despejados, prejudicando o equilíbrio que sustenta e eleva a dupla Grenal no cenário futebolístico mundial.

Em respeito ao imortal tricolor que foi (é) meu sogro, lamentando a impossibilidade de salvaguardar seu último desejo, faço um alerta: gremistas, roguem para que os deuses da bola não punam aqueles que decidiram macular a vontade derradeira dos que, hoje sepultados, viveram e morreram arrebatados pelo Grêmio. Será que seus heróis precisavam de um novo templo? Ou bastava a modernização de uma casa histórica, construída com os bravos recursos da paixão? Afinal, nada será maior do que um fracasso capaz de deixar o tricolor gaúcho mais do que (até) a pé: sem ter para onde ir.

12.11.09

Número 343

LONGEVIDADE

Existem expressões, modos de falar ou metáforas que, de tão perfeitas, sobrevivem por um longo tempo, mesmo após a extinção do ato ou objeto gerador. Por exemplo: dar a mão à palmatória. Com o perdão do trocadilho, pode-se contar nos dedos as pessoas vivas que presenciaram (ou sofreram) tal castigo nas escolas. Oscar Niemeyer talvez seja um. Porém, o atual sistema de ensino não oferece um substituto com igual adequação. Ninguém em sã consciência vai considerar a possibilidade de, para demonstrar arrependimento, falar que “sim, me submeto a um convite à reflexão”. Mesmo sendo politicamente correta, a nova expressão nasce sem a metade da força.

Outra: caiu a ficha. Não imaginam o sorriso largo dos meus filhos no dia em que, vasculhando gavetas, encontraram um ficha telefônica de verdade. Foi um assombro darem-se conta de que aquele disco de metal significava, fisicamente, créditos para a conversa. Explicamos que, ao completar a ligação, ou quando terminava o tempo pago, a ficha realmente caía para dentro do telefone público, vulgo orelhão. Essa geração bem poderia dizer que “completou o download”. Então, por que continuam falando que a ficha caiu? A única justificativa que encontro me remete outra vez à palmatória: cair a ficha também é uma ação concreta, rica em movimento, som e significado. Tudo indica que sobreviverá Era Celular adentro.

Ainda no telefone, dois termos se inscrevem na categoria de expressões que, de tão bacanas, torço para que sobrevivam à nascente: passar um fio e ficar pendurado no gancho. Podem até ser usadas em uma única frase, por mais paradoxal que pareça: “o fulano ficou de me passar um fio, mas fiquei pendurado no gancho...”. Já andam raros os telefones com fio – só lembramos de instalar um desses quando a casa fica sem luz. E o gancho, a exemplo do disco, virou peça de museu. Mas, convenhamos, que maravilha de metáfora para a espera tediosa a de ficar pendurado no gancho. Ainda mais no tempo em que todo telefone tinha fio, o que obrigava uma imobilidade implícita!

Outro dia percebi que, nos supermercados, já não existem mais filmes fotográficos para vender. De tão raros, agora só em lojas especializadas. Com a popularização das câmeras digitais, ninguém mais corre o risco de, por acidente, ver queimado o seu filme. Mesmo assim, duvido que alguém reclame do outro dizendo: “ô meu, desse jeito você vai deletar minha imagem!”. Outra vez temos uma manifestação física suplantando em força de significado uma ação virtual. É um caso idêntico ao de virar o disco. “Camarada, você já me encheu: troca a pasta desse i-pod!” tem muito menos poesia do que “deixa de ser chato e vira esse disco!”. Isso sem falar na tagarelice repetitiva denunciada pelo disco arranhado...

Outra expressão que já não encontra mais eco em nosso cotidiano, mas, mesmo assim, é de perfeita e duradoura compreensão é “desandar a maionese”. Na época em que ela foi cunhada, as donas de casa empreendiam longo tempo e laborioso esforço para servir à mesa este alimento tão delicioso quanto calórico. Bater a maionese requeria cuidado, pois, caso desandasse, o trabalho restaria perdido e sem a menor chance de recuperação. Algo parecido com faltar luz justo agora, antes de eu salvar esse texto (ufa, salvei!). A noivinha que, hoje em dia, só conhece um fogão de ouvir falar, corre o risco de queixar-se para a mamãe que desandou a maionese no seu casamento sem jamais imaginar que o acepipe pode ser feito em casa, à mão.

Enfim, chego à conclusão de que as boas expressões, ricas em cores, sabor, movimento e plasticidade, sobrevivem ao tempo e enriquecem nosso vocabulário. Claro que as inovações tecnológicas podem deixar, por sua vez, seu próprio legado – isso o futuro dirá. Afinal de contas, não vão deixar o cavalo passar encilhado, né?!

PS: Quem lembrar-se de outras expressões e quiser me mandar, por favor: pegue esse bonde andando!

5.11.09

Número 342

LENHAS & LINHAS

Eu era bem pequeno, mas recordo a luta da mãe e suas irmãs para convencerem a minha avó a migrar do seu tradicional fogão à lenha para o fogão com bicos de gás. Frau Seth foi reticente e tinha argumentos inquestionáveis: estava habituada à cocção nas chapas de aço, não via nenhum desconforto em rachar e armazenar lenha e, principalmente, cozinhar em fogão com chamas de gás alterava o sabor dos alimentos. Não procurava a praticidade do moderno nem ligava para a economia de energia e tempo. Também na cozinha da outra avó, Morena, a transição foi nada veloz. Durante muitos e muitos anos os dois modelos acomodaram, lado a lado, a base das panelas.

Meus filhos acompanham outra peleja: não há Cristo que faça a minha mãe usar o forno de microondas. Ela até tem um, mas nem ligado na tomada o pobre permanece. Enlouqueço quando a vejo aquecer o leite na leiteira: um dos meus traumas de juventude era lavar a louça quando lá estava aquela panela de leite com seu tradicional anel de gordura a ser vencido. Haja sabão e Bombril! Ela usa, também, o fogão e três panelinhas para aquecer uma comida pronta, ao invés de servi-la gelada, direto no prato, e colocar no micro.

Minha mãe, de modo cíclico, é reticente e tem argumentos inquestionáveis: está habituada à cocção nas chamas azuis, não vê nenhum desconforto em lavar panelas e, principalmente, o aquecimento em microondas altera o sabor dos alimentos. Minha sogra, não: usa o micro todos os dias. Mesmo assim, reconhece que o eletrodoméstico jamais de substituirá inteiramente o fogão tradicional, o que projeta uma longa convivência de ambos em sua cozinha.

Lembrei disso para meter minha colher torta na entrada do e-book no mercado livreiro com mais efetividade. Fico pensando se a resistência de muitos será bastante eficaz a ponto de frear o processo. Mais: começo a ter muitas dúvidas se ela é, enfim, correta. O motivo para isso é o singelo exercício de imaginar grandes cidades como São Paulo com seus milhões de habitantes cozinhando em charmosos fogões à lenha.

A celulose, qualquer piá sabe, é a matéria prima para se fazer papel. Vem da madeira, aquele elemento que arde no fogão à lenha. Mesmo que na atualidade ela seja obtida exclusivamente de florestas artificiais e renováveis, o processo, no mínimo, utiliza-se de insumos e espaços agriculturáveis. Com o aumento brutal da população humana e a festejada redução dos índices de analfabetismo, o futuro fica complicado. E livros exclusivamente de papel podem ser algo tão anacrônico, poluidor e impraticável quanto fogões queimando lenha nos apartamentos das metrópoles.

E agora? Agora começa o período de tempo indeterminado (eterno?) em que livros tradicionais e eletrônicos passarão a conviver em nossas casas e bibliotecas. Muitas avós, pais, mães e tios serão alvo de incompreensão ao optarem pela compra de grandes volumes de brochuras ao invés de carregarem seus e-books. Se tudo isso resultar no desejável consumo da literatura, alimento insubstituível, tudo bem. Quem sabe, e eu rogo por isso, muito mais se produza e muitos mais terão acesso aos bons livros.

Porém, ninguém me convence de que é igual. Reticente, tenho argumentos inquestionáveis: estou habituado ao apelo tátil das páginas, não vejo nenhum desconforto em suportar o peso de alguns livros e, principalmente, ler em telas altera o sabor do que está escrito.

PS: dia 11/11, 19h30, na Casa do Pensamento, Armazém A do Cais do Porto, na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, estarei na mesa redonda A Literatura na Era Digital: possibilidades e desafios, ao lado de Dodô Azevedo e Luiz Paulo Faccioli. Feito o convite!



29.10.09

Número 341

O JOGO


Rapaz, peça azul, recebe suas cartas do destino. Moça, cor-de-rosa, idem. Em jogo, o cotidiano do matrimônio. Os dados ditam os possíveis avanços. Começa outra emocionante partida de devagar se vai (ou não) ao longe.

Rapaz atira os dados: cinco. Puxa uma carta que diz: a esposa chega do salão de beleza com os cabelos recém cortados. 1. Ele repara e elogia na hora: pula as cinco posições. 2. Ele até repara, mas comenta sem muito entusiasmo: avança uma só casa. 3. Ele não repara, mas elogia bastante quando ela chama a sua atenção: permanece no mesmo lugar. 4. Ele não repara e, quando ela conta a novidade, a resposta é: – Nossa, quanto custou isso? Volta para o começo do jogo...

Moça atira os dados: três. Puxa uma carta que diz: (ao telefone) – Querida, vou com o pessoal tomar um chopinho, tá? 1. Ela responde que sim e manda um abraço para a turma: avança as três posições. 2. Ela reclama, mas – vá lá – aceita, desde que ele chegue cedo: avança uma só casa. 3. Ela aceita relutando e deixa nas entrelinhas que isso vai ter um preço: permanece no mesmo lugar. 4. Ela não só proíbe, como ainda fica de mal quando ele chega em casa: volta para o começo do jogo...

Rapaz atira os dados: dois. Puxa a carta que diz: a pia está cheia de louça. 1. Ele toma a iniciativa, lava tudo e ainda prepara um cafezinho: avança as duas posições. 2. Ele faz de conta que não vê, mas atende ao pedido dela para que lave a louça: avança uma só casa. 3. Ele faz o serviço depois que ela insiste muito, e ainda guarda tudo nos lugares errados: permanece no mesmo lugar. 4. Ele chama a esposa de relaxada e, se ela pede para que ele lave dessa vez, de preguiçosa: volta para a casa dos pais, ao menos por uma noite.

Moça atira os dados: seis. Puxa a carta que diz: a TV vai transmitir a final do campeonato de futebol. 1. Ela prepara uma pipoca, veste-se para a ocasião e senta ao lado do marido: avança as seis posições. 2. Ela diz que vai ao cinema e, ao sair, deseja boa sorte ao torcedor: avança uma só casa. 3. Ela fica em casa cruzando propositalmente na frente da TV: permanece no mesmo lugar. 4. Ela marca um compromisso para os dois na mesma hora, e arma uma briga violenta quando ele se recusa a cumpri-lo: se o time for campeão, volta para o começo do jogo. Se não, vai para a ponte que partiu e não volta tão cedo!

Rapaz atira os dados: dois. Puxa a carta que diz: ela quer sexo. 1. Ele busca taças e o espumante que está na geladeira, deixa o ambiente em meia-luz e se desdobra em carícias: avança as duas posições. 2. Ele topa e parte para cima com uma urgência desproporcional: avança uma só casa. 3. Ele entra no jogo, mas mal consegue um empate aos quarenta e cinco do segundo tempo: permanece, perigosamente, no mesmo lugar. 4. Ele diz que está cansado, estressado, deprimido. E já não é a primeira nem a segunda vez... Aí ela pergunta: – Será que tem volta?

Moça atira os dados: quatro. Puxa a carta que diz: ele quer sexo. 1. Ela busca taças e o espumante que está na geladeira, deixa o ambiente em meia-luz e se desdobra em carícias: avança as quatro posições. 2. Ela topa, mas o recebe com mínima reciprocidade: avança uma só casa. 3. Ela, depois de certa insistência, entra no jogo sem nenhum tesão, consultando o cronômetro a cada minuto: continua, fria e estática, na mesma posição. 4. Ela diz que está cansada, estressada, deprimida. Ele suplica. Aí ela relembra que ele sequer reparou em seu novo corte de cabelo: ele volta para o começo do jogo.

22.10.09

Número 340

DESMATAMENTO

Casamento é mata fechada, densa, com delicada diversidade, mas com alguma chance de sufocar. Um estado civil bem diverso ao da solteirice: campo ensolarado e franco, cenário de batalhas para caça e caçador. No campo, o horizonte se mostra pleno, 360° de possibilidades para as mais loucas aventuras. No casamento, resta subir à copa dos sonhos para liberar a visão em todos os sentidos. Mesmo assim, lá não viveremos o tempo inteiro: não somos pássaros, e os sonhos apenas nos iludem com asas de nuvens.

A floresta chamada casamento é para além de sedutora, escondendo no lusco-fusco muitos encantamentos. Só nela, e em nenhum lugar mais, florescem orquídeas raras. A sombra é constante e prazerosa; o anoitecer, aconchegante. Quem conhece as trilhas encontra com facilidade cachoeiras de água pura. Também é lá que estão as árvores de raízes profundas e troncos com seiva perfumada ‒ ah, o amor! Há borboletas e filhos, canto dos passarinhos, cipós para servirem de varal, cheiro forte de terra. É nas cavernas da mata que estamos seguros das tempestades. Difícil mesmo é evitar o surgimento do limo nas pedras do caminho.

Por outro lado, todo homem casado, e toda mulher, antes de se embrenharem na mata, habitaram o campo. Conhecem muito bem a rotina do vento forte, dos rápidos deslocamentos, da vegetação rasteira ‒ composta de beijos orvalhados e pouco comprometidos. A amplidão do céu crivado de estrelas em noites solitárias. As árvores esparsas, nas quais se pode subir de vez em quando: nunca deixamos de sonhar! Eles ainda lembram que no campo era necessário, também, conviver com uma certa dose de perigo ‒ a exposição é típica neste cenário. Talvez seja por isso que os descomprometidos andem sempre em bando. Amigos ‒ nossa! ‒, como se protegem...

Houve um tempo em que estes dois ambientes eram menos permeáveis. Os humanos que se mudavam para a mata fatalmente morriam por lá. Ou, como alternativa, terminavam seus dias nas suaves clareiras da viuvez. Hoje, posso estar até enganado, vejo as pessoas entrando na floresta meio de costas, sem tirar os olhos da saída. Agindo assim, nem bem estão no campo, nem bem no mato. E, sem coragem para mudar de entorno, dificilmente penetram muito fundo. Que cachoeira qual nada! Sai para lá borboleta! Ao diabo com essa raiz que só me faz tropeçar! Êta tronco áspero! É lá fora que brilha o astro rei... Há, também, aqueles que estacionam nas margens ‒ um pé lá, outro cá.

Porém, mesmo quem se aprofunda na floresta pode um dia desejar sair. Ou de lá ser despejado, como se intruso fosse. De um momento para o outro, precisará se expor ao sol aberto, apelando para urgente proteção. Faltará fôlego para as correrias, malandragem na hora de arrumar alimento. Nenhum desespero: trilhar o campo é como andar de bicicleta ‒ descontada a pouca destreza (que sobrava outrora) ninguém desaprende. E mato não tem porta: é só voltar lá para dentro na primeira oportunidade. Ou na segunda, terceira, décima oitava... Pois é: às vezes fica complicado voltar ‒ querer não será o suficiente.

Enfim, nosso tempo está deixando a fronteira do mato com o campo mais frequentada que entrada de formigueiro. Mas essa não é nem de longe a pior (melhor?) notícia. Preocupante mesmo é a derrubada galopante da floresta. Parece que virou moda a idéia de que só o campo aberto é lugar de se colher felicidade. Estarei eu, bicho do mato, fadado à extinção?

15.10.09

Número 339

OBITUÁRIO

Uma querida amiga é fanática pela leitura de Obituários. Ela vê uma singela beleza naqueles resumos de existência, além de uma interessante paridade social: ao lado de um General, empresário ou professora emérita, pode estar uma costureira, um estudante, o fanático torcedor de um time da terceira divisão cuja especialidade era assar churrasco. Isso me fez pensar no caso de a seção de Obituário habitar outras partes do jornal, quem sabe rendendo bons textos. Economia & Negócios, por exemplo:

Depois de uma vida inteira dedicada à comunicação entre pessoas em diversas localidades, faleceu recentemente Telefonia Residencial Analógica, filha de Ligação por Telefonistas e neta do revolucionário Telégrafo ‒ este que, durante sua vida, chegou a sofrer uma séria intervenção ortográfica, tendo extirpado seu ph. DDD, como era conhecida, faleceu em virtude de um severo abalo tecnológico, que vitimou boa parte de sua família: a Ficha de Orelhão, o Telefone de Disco, a impertinente Linha Cruzada e DDI, sua irmã gêmea, esposa de Satélite de Comunicação. No Brasil, esteve casada com o Governo durante grande parte de sua vida, divorciando-se depois de um processo de privatização (para alguns, nem tão amigável). Partiu sem deixar herdeiros diretos vivos. Seu legado foi transferido aos sobrinhos, filhos de DDI e Satélite: Telefonia Digital e Telefone Celular. A comunidade jamais esquecerá a importância de DDD na aproximação entre vizinhos e amigos, na criação de serviços de tele-entrega e no auxílio à Defesa Civil ‒ sempre voluntariosa ao chamar o Corpo de Bombeiros, a Polícia e ambulâncias.

Pode-se dizer que as redações de jornal, as agências de propaganda, os escritórios contábeis e de advocacia, os cartórios, escolas e mesmo as residências jamais serão iguais depois da partida de Máquina de Escrever. Seus movimentos coordenados ‒ de grande engenhosidade mecânica ‒ e ruídos característicos acompanharam as mentes mais brilhantes da humanidade por muitos e muitos anos, registrando todas as idéias e documentos por elas produzidos. Gradativamente aposentada e vendo crescer a importância de Máquina Elétrica (com o prático Corretor Automático a seu lado), mantinha-se útil em repartições desatualizadas por todo lado. Porém, Máquina de Escrever foi atropelada pelo Editor de Texto que, junto com a Impressora de Dados, pilotavam um PC (Computador Pessoal) em altíssima velocidade. Com seu passamento, ficaram órfãos as Fitas de Tinta (Bicolor e Preta), o Curso de Datilografia, o Mimeógrafo e o cooperativo Papel Carbono. Ainda é possível encontrá-los por aí, mas sem o mesmo ânimo.

Contrariando o que faria supor sua pouca idade e encantamento, faleceu obscura e tragicamente Disquete de 5”1/4. Seu irmão mais novo, 3”1/2, está na UTI, sem esperanças de recuperação, enquanto Disco ZIP, o caçula, morreu logo depois de nascer. Foram todos vitimados por uma febre conhecida como obsolescência precoce aguda, doença desenvolvida por carências na capacidade de armazenamento, gerando pouca esperança tecnológica no longo prazo. Visto como símbolo de uma época, a aparência de Disquete 5”1/4 chegou a ser sinônimo de modernidade nos anos 80 (auge de sua utilização). Seus herdeiros convivem com a ameaça constante da mesma febre, que parece ser um mal genético na família Informática. Isso poderia explicar tamanha fertilidade criativa e a pressa com que se renovam, criando filhotes a cada semana: frágeis, um deles há de sobreviver para perpetuar o legado.

8.10.09

Número 338

FÁBULA FUTURÍSTICA

O homem parecia ter alcançado a fronteira final: depois de passar décadas aglutinando informações em bancos de dados e, ao mesmo tempo, desenvolvendo formas de armazená-las em espaços físicos cada vez mais exíguos, conseguira um meio de acessar os dados apenas com o pensamento. Funcionava assim: ao arranhar a pele e ali colocar um robô desenvolvido com nanotecnologia, este saberia chegar, por via circulatória, ao cérebro. Ali, e ligado ao conglomerado de bancos de dados do mundo, o nano robô passaria a ser um portal entre o indivíduo e todo o conhecimento acumulado pela humanidade.

Se o portador do robô pensasse: sânscrito, já saberia se comunicar nesse idioma. Pensasse: física quântica, saberia tudo sobre o tema, desde fundamentos até conceitos avançados. Pensasse: lista telefônica, e teria acesso a qualquer número do planeta. Pensasse: Beethoven, já seria capaz de executar qualquer sinfonia do mestre. Pensasse: energia nuclear, e seria capaz de construir de usinas até bombas. Enfim, não importaria mais o tema, pois todo o conhecimento acumulado estaria disponível ao indivíduo, como se ele conhecesse tudo sobre tudo.

Desenvolvida a tecnologia, a primeira providência foi a de controlar sua disseminação. Afinal, conhecimento sempre fora sinônimo de poder. Porém, nem todos pensavam dessa forma. E, depois de se autoinocular um robô, um dos cientistas envolvidos passou a deter todas as informações sobre o projeto, habilitando-se a fazer robôs piratas. Então, em cada um que recebia essa verdadeira maravilha falsificada, nascia o desejo de produzi-la também, tendo lucro com a comercialização. Por fim, em menos de um ano, a inteligência absoluta havia se espalhado em velocidade viral, com quase a totalidade dos homens transformada em verdadeiros gênios.

Chegara, enfim, o tempo da utopia. Ninguém seria mais do que ninguém, nem melhor, nem teria qualquer vantagem. Todos igualados pelo robô. Grego? Falamos todos. Anatomia? Sabemos todos citar cada um de nossos ossos, ou de qualquer animal. Propulsão a jato? Farmacologia? História da arte? Cálculo estrutural? Informática? Direito? Ninguém mais precisava do outro: sabia tudo. E o conhecimento deixou de ser uma marca de diferenciação, de hierarquia, de poder. Do agricultor chinês ao pescador amazonense; do presidente da ONU ao chefe do cartel colombiano; do príncipe árabe à prostituta de alguma ilha do Caribe, para ninguém mais existiam segredos.

Todas as tentativas de frear o processo acabavam abortadas ‒ durante as reuniões, invariavelmente as informações vazavam. As economias entravam em colapso. Todos sabiam tudo, mas ninguém sabia o que fazer, em quem confiar, para quem ceder o comando. A truculência física começou a fazer a diferença. Adultos começaram a matar crianças, homens eliminavam mulheres, maiores assassinavam menores. A luta passou a ser pela água, pelo alimento, pelo teto, pela roupa do corpo. Um homem de quase dois metros de altura matava a todos indistintamente usando uma marreta, enquanto recitava Pirandello ‒ no fundo, era alguém sensível. Até que mísseis nucleares começaram a alçar voo de todo lugar para todo lado.

Infelizmente, a humanidade sucumbiu com a plena, total e absoluta consciência de que nem todo o conhecimento do mundo seria capaz de transformar o homem em um animal racional. E de que a diferença individual é a chave para a igualdade social.


1.10.09

Número 337

LOQUACIDADE

Elisa estava farta de tanto se queixar. Pela manhã, cutucava o marido enunciando sua primeira reclamação: antes mesmo de desligar o despertador; antes mesmo de saber se chovia ou fazia sol; antes mesmo de lavar o rosto. Aliás, quando chegava até a pia do banheiro, pelo caminho, topava com dois a três motivos para reclamar. Outros muitos eram servidos junto com o café, sobrando para todos, incluindo filhos e cachorro. Ao ficar só, enquanto não chegava a hora de ela sair de casa, queixava-se, no espelho, de si para si. E para quem dos arredores estivesse disposto a escutar.

Elisa se queixava da vida para a colega de trabalho que, não lhe dando ouvidos, somava mais um motivo para as tantas queixas. Reclamava do chefe pelas costas. Pela frente, reclamava da falta de estrutura para mostrar seu potencial. Mas a estrutura nunca mudava, o chefe nunca mudava, as reclamações se repetiam exaustivamente. O máximo que recebera, e de alguém que nem era do seu setor, foi a curiosidade em saber por que razão, afinal, só a escutava se queixando. Elisa, atônita com a pergunta, não soube por onde começar, deixando o interlocutor falando sozinho. Enquanto se afastava, queixava-se de tamanha falta de sensibilidade.

Elisa, péssima idéia, queixava-se do marido para a sogra. A velha só não a chamava de maluca por jamais usar esses termos, mas se fazia entender. Isso enfurecia Elisa mais do que qualquer coisa, acrescentando motivos de sobra para incluir toda aquela família em seu interminável rosário de lamentações. Porém, bastava maldizer seus cunhados e cunhadas para lembrar de milhares de causas para reclamar de seus irmãos. Nem o pai morto escapava da língua afiada de Elisa. Logo ele, um abnegado funcionário público, esteio de honradez em uma repartição venal do município. Por falar nisso, uma de suas queixas recorrentes em velórios era a velocidade com que os amigos e parentes esqueciam dos defeitos de quem morrera. Isso, e as reclamações com o eterno descaso do sistema de saúde.

Elisa se queixava para o padre José. Se tivesse chance, queixaria-se ao bispo, ao cardeal, ao Papa. Este último, por sinal, mal podia esperar: se não fosse tão caro ir até Roma, se o seu salário de fome lhe permitisse uma extravagância tão comezinha para os abonados do condomínio da esquina, o Papa teria muito a escutar. Onde já se viu uma instituição tão importante e poderosa ser descuidada a tal ponto com seus seguidores? E sobraria também para o pároco, pois, fosse o pecado que fosse, ele dava o mesmo ato de contrição e as mesmas três Ave-Marias de penitência. Vai ver, e isso sem dúvida era uma queixa, o padre José não escutava ninguém do outro lado do confessionário.

Até o dia em que Elisa chegou em seu limite. Nem soube direito qual fora a gota d’água, mas a bacia, definitivamente, transbordara. Calou-se, Elisa. Muda despertou, muda lavou o rosto, muda serviu o café. Vestiu-se muda, muda enfrentou o ônibus, muda fez suas obrigações, muda almoçou. Muda entrou em casa de volta, muda parou diante da TV, recolheu-se sem dizer uma palavra. Mudara.

No dia seguinte, o marido perguntou mais de uma vez se estava tudo bem; os filhos mostraram para Elisa o boletim escolar; o cachorro pulou no portão como quem quer festa ou pede carinho. O chefe teceu um elogio incomum ao trabalho do setor, e colega convidou Elisa para juntar-se à turma na sexta-feira, quando costumam tomar um chope antes de ir para casa. A sogra, meio bruxa, intuiu qualquer coisa e mandou a cunhada (estranho, ela sorriu) levar-lhes um pudim de laranja para sobremesa. O mundo agora parecia livre de seus pecados.

Elisa finalmente se fizera escutar.

25.9.09

Número 336

ORGULHO DE TER VERGONHA

Não sei quantas vezes durante a infância, pouco importando o tamanho da arte cometida, escutei essa frase vinda dos meus pais: menino, tu não tens vergonha? Fosse fazer xixi no pátio do vizinho, quebrar ‒ de propósito ‒ o brinquedo da irmã, responder de modo desrespeitoso a um adulto, toda e qualquer malcriação, na visão de quem me educava, deveria ser motivo suficiente para que eu me envergonhasse. Além do mais, quando eu não me comportava direito na casa dos outros, na escola ou em uma loja, quem morria de vergonha eram os meus pais. Então, depois de se desculparem por mim, me repreendiam severamente, deixando claro que eu, agindo assim, os envergonhara.

O resultado dessa educação de rédeas curtas e limites claros, muito comum em outros tempos, foi a consciência de que, não gostando de passar vergonha, eu deveria tratar de ser bem educado e andar na linha. Em outras palavras, a capacidade de eu sentir vergonha dos meus desvios de conduta passou a ser motivo de orgulho para quem me educou. Assim, depois de crescido, não precisei mais do pai ou da mãe me dizendo o que é certo ou errado, nem como fazer para ser considerado alguém digno de respeito. Sou muito grato a eles por isso, na mesma medida em que espero a gratidão dos filhos, no futuro.

Essa introdução faz algum sentido quando analisamos um fato recém acontecido em Viamão, cidade da Grande Porto Alegre onde moro, mais especificamente na Escola Estadual Barão de Lucena. Logo depois de arrecadar dinheiro na comunidade e pintar o prédio em forma de mutirão (ele estava coberto de pichações), a professora (e vice-diretora) obrigou um aluno de 14 anos a, diante dos colegas, cobrir com tinta os escritos que ele próprio havia feito, entre outros, nas paredes recém pintadas. Mais: teria dito que o menino seria um bobo da corte, fato evidente por ter sido filmado em um celular. Ao filme, obtido por um estudante sem o aval da professora, foi dada publicidade. O resultado é que os pais se insurgiram contra a educadora, alegando humilhação. Exigem sua punição, enquanto o menino não quer mais voltar para a sala de aula.

Antes de defender ou condenar a professora, ou mensurar seu eventual excesso, fui acometido de um sentimento exultante: até que enfim as pessoas estão retomando a capacidade de sentir vergonha! O pichador foi revelado corrigindo seu delito e ficou com vergonha? Viva! Os pais estão morrendo de vergonha por ter um filho malcriado e reagem de modo passional e desesperado em sua defesa? Aleluia! Porque quando alguém vem me visitar em Viamão, e transita diante dos prédios completamente pichados da principal avenida da cidade, quem morre de vergonha somos nós: eu e todos mais que respeitam o espaço público e privado.

Precisamos abandonar a ideia de que quem comete delitos é esperto e quem é cumpridor de suas obrigações é trouxa. Aparecer na TV algemado depois de cometer um delito é vergonhoso? Sim, é: todos tentam esconder o rosto. Para evitar isso, que tal não cometer crimes? Ver exposta sua identidade sofrendo uma censura depois de fazer algo errado é vergonhoso? Claro que é, tornando legítima a reclamação dos pais do aluno pichador. Vergonha maior, no entanto, deveria ser o fato de ele ter cometido, acintosa e deliberadamente, o ato! Isso foi o que eu aprendi em casa.

Dou a cara a tapa diante dos estudiosos da área da Educação quando me posiciono mais a favor da professora do que dos pais e do aluno. Considero como atenuante o fato de que ela ainda estava com os braços doendo depois de repintar o prédio quando foi incisiva na punição ao pichador. Também desculpo a população que vibrou tanto quanto eu ao ver alguém ser punido de modo exemplar: faz tempo que a vergonha está pendendo apenas para o lado de quem não deveria senti-la. A inversão anda tanta que um corretivo merecido, ao invés de ser trivial, virou notícia de TV! Ou a população revisa seus valores, voltando a ter orgulho da virtude e vergonha da delinquência, ou tudo estará perdido. Estranhamente, uma das minhas virtudes é saber, desde pequeno, como é ruim sentir vergonha.

17.9.09

Número 335

AMANTE DE BOLSO

A tese é de uma amiga, e me pareceu bastante curiosa: o homem ideal para se ter como amante é aquele de porte pequeno – baixo e, necessariamente, magro. A maior estranheza nasce da inversão plena do senso comum, no qual o Ricardão dos sonhos é grande (e aí está o superlativo para nos auxiliar), musculoso e bem dotado. Isso tudo passaria a ser uma polêmica vazia caso ela não fosse capaz de sustentar a sua teoria. O problema é que ela trouxe para a conversa uma série de argumentos, e eles foram por demais eloquentes.

Primeiro, minha amiga se deteve em aspectos logísticos: nos apartamentos de hoje, como esconder um amante de tamanho GG para escapar de um flagra? Segundo ela, é muito difícil. Só um magrinho é capaz de enfiar-se debaixo de uma cama Box ou encontrar um canto em armários cada vez mais lotados. Em outras épocas, as camas eram altas e os amantes do tipo armário cabiam com folga dentro dos robustos guarda-roupas. Isso sem falar nas manobras de desespero: quem aguenta mais tempo pendurado do lado de fora de uma janela, o levezinho ou o pesadão? Acima do segundo andar isso faz muito sentido.

Porém, prosseguiu ela, partindo do pressuposto de que o amante, de qualquer porte, conseguisse esconder-se ainda nu para escapar do flagrante: como explicar as roupas? Para minha amiga, o vestuário está cada vez mais assexuado. Logo, um par de tênis assim pequenos, um jeans de corte clássico ou uma básica Hering não denunciaria, necessariamente, homem algum. Lamento confessar que ela me descrevia... Então, lógico, única preocupação passaria a ser a cueca – que poderia voar pela janela ou ser colocada no lixo do banheiro. A danada parecia ter pensado em tudo!

A seguir foi categórica: amante gordo, jamais. De pesados, bastam os maridos! Os homens miúdos, opinião dela, tendiam a ser mais criativos, ágeis e dotados de bom fôlego. Também mais dóceis para o caso das propostas eróticas que incluem dominação, pois jamais seduziram mulheres na base da imposição física. Outra vantagem dos amantes pequenos seria a necessidade de eles, desde jovens, serem atenciosos e bons de papo. Enquanto os sarados eram assediados por todas as meninas, os miudinhos aprendiam a compreendê-las, valorizá-las, encantá-las, tornando-se uma melhor companhia. E eu nunca havia pensado nisso...

Foi quando eu tentei derrubar sua tese: e aquela específica questão anatômica, como ficaria? Afinal, na média, o corpo humano segue uma certa dose de proporcionalidade. Péssima idéia, pois escutei o que nenhum homem gosta de ouvir: se as mulheres levassem em conta o tamanho daquilo tanto quanto nós pensamos que elas levam, poucos maridos passariam no controle de qualidade. Casado que sou, me senti parte do grupo dos iludidos. Pior, sem saber se deveria me ofender ou me consolar.

Espera um minuto: pensando bem, qual teria sido a razão de ela entrar nesse tema, e com tal riqueza de detalhes, justamente comigo? Será que é por causa do meu manequim 38 e meu pé 37? Ou mesmo por causa do trabalhão que tive na adolescência para arrumar namoradas, enquanto os fortões tinham até duas por vez? Estaria ela tentando me dar algum recado indireto? Não, não, não pode ser. Prefiro acreditar na mera coincidência e ficar imaginando que tem outro magricela por aí, este sim, pegando todas!

11.9.09

Número 334

ANIVERSÁRIO

Aniversário é o dia em que nascemos visto ao longe, nós na janela de trás do ônibus, ele abanando na plataforma de partida. Todo ano nos viramos para conferir se ele ainda acena feliz e, depois de vermos seu sorriso – cada vez mais incrédulo, mas ainda firme –, fica mais fácil seguirmos a viagem.

No aniversário de casamento, por sua vez, somos nós solteiros quem ficamos na rodoviária, abanando para nós casados olhando da janela do assento compartilhado do ônibus. A diferença é que a esposa não gosta muito que olhemos constantemente para trás, nostálgicos, para vermos se aquela vida que deixamos ainda nos sorri. Mas, mesmo ralhando conosco, ela também aproveita para dar uma espiadinha para si, eufórica e saltitante, mandando beijos à distância.

Aniversário de morte são os afetos desembarcados do ônibus por terem chegado aos seus respectivos pontos, nós seguindo adiante. Tanto será mais belo, conquanto beleza e saudade possam conviver em harmonia, tanto mais estivermos sorrindo para quem amamos. Daí a importância de sinalizarem com sabedoria o ponto certo para a despedida. Ou, no mínimo, termos a certeza de que o trajeto percorrido levou todos a uma medida satisfatória de vida.

Meus primeiros aniversários, ainda nos anos sessenta do século passado, tinham sabor de pudim de leite. Um inteiro só para mim, pedia à mãe. Ela, sem falta ou espera, me dava o presente com amor e carinho. Era quando, ano após ano, eu compartilhava a sobremesa com a família. Um doce que excede o apetite, por mais desejado que seja, acaba sendo uma lição para a vida.

O décimo oitavo foi o mais aguardado, torcido, comemorado aniversário da minha vida. Com ele viria a sonhada habilitação de motorista, mil vezes mais importante do que o título eleitoral, outro documento bastante almejado. Também o passaporte para os filmes impróprios para menores – quase todos em tempos de censura. De lá para cá, a censura deu lugar aos dóceis critérios de classificação etária e jamais me envolvi em um acidente de trânsito que me causasse ferimentos, tristeza ou culpa. Porém, quisera ter sido tão bem sucedido com as eleições...

O aniversário repete algumas condições que existiam no momento do nascimento (ou morte). Por exemplo, o sol ilumina a terra de modo semelhante. Em algumas oportunidades, porém, nuvens escuras podem impedir que vejamos esse detalhe. E, mesmo na cálida presença solar, o tempo fará modificar todas as sombras projetadas – as árvores crescerão, a cidade será outra, nós mudaremos também.

Uma vez por ano, somos instigados a olhar para trás, para nossa plataforma de partida. É também quando a vida, a História e a morte sentam-se à mesma mesa em celebração de aniversário, seja ela de uma pessoa, de uma cidade, empresa, conquista ou tragédia. Ali estarão servidas lembranças frescas ou bem conservadas, surpreendendo nossa memória com muita clareza. E, entre comemorações e lamentos, ressentimentos e abraços, o que terá maior valor será a oportunidade de congraçamento, de partilha, de íntima comunhão – por mais legítimo que possa parecer o desejo de um exclusivo pudim de leite condensado.


4.9.09

Número 333

MÃOS ATADAS, SORRISO SOLTO

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Carlos Drummond de Andrade


Aconteceu algo estranho comigo durante a semana, uma situação que julgava difícil de ocorrer. Quando encontrei um bom amigo lá dos tempos de Universidade, e enquanto conversávamos, chegou até nós o seu filho. Depois das apresentações, estendi a mão ao graúdo rapazinho de onze anos. Ele, que estava de braços cruzados, assim permaneceu, deixando minha mão dependurada no vazio. O pai, atônito, alertou: Vem cá, não vai cumprimentá-lo, meu filho? Ele respondeu apenas com um olhar de surpresa, como quem diz: Está louco? Depois de poucos segundos de perplexidade geral, como quem decodificasse a mensagem não dita, meu amigo explicou: Ah, isso é por causa da Gripe AH1N1...

Ato contínuo, falou-me que o menino estava tão imbuído do espírito de prudência que não permitia que ele chamasse o elevador apertando o botão com o dedo (indicava o cotovelo como alternativa), entre outras atitudes de cautela. Mesmo assim, ainda incrédulo, o pai voltou a pedir que a criança apertasse a minha mão, pois isso seria a atitude mais educada. Neste momento, fui eu a declinar, antes mesmo de ele esboçar alguma intenção: nosso aperto de mãos bem poderia ficar para outra hora, em condições menos adversas. E, convenhamos, todos nós já estávamos com uma boa dose de constrangimento para administrar.

Depois de nos despedirmos, imediatamente me coloquei no lugar do pai (pois também o sou). Fiquei pensando se eu, na mesma situação, poderia fazer algo além do que ele fez. Acho que não... Isto é, partindo do pressuposto de que aconteceu uma conversa entre pai e filho logo adiante – e eu acredito nisso. Como se trata de pessoas educadíssimas, ficara evidente que o menino não estava sendo malcriado, muito menos assim considerava-se. Reagia, isto sim, mecânica e incondicionalmente ao treinamento de prevenção recebido. Para a criança, errado (imprudente, deslocado) fui eu quando lhe ameacei com um temerário aperto de mãos.

Aí está o problema da informação, do treinamento, da orientação em massa. Cada um de nós absorve as indicações para prevenir-se do contágio da Gripe AH1N1 em uma medida extremamente variável. Uns, mais paranóicos, deixam de sair de casa sob qualquer hipótese. Os indolentes passam, no máximo, a lavar as mãos com uma frequência um pouco maior. E, entre o preto e o branco, passa a existir uma enorme faixa gris, clareada ou escurecida conforme julgamentos pessoais. Neste sentido, as autoridades sanitárias fazem o que podem, comunicando atitudes que, a princípio, parecem padronizadas. Mas acabam de mãos atadas diante das tantas interpretações diferentes.

Fiquei um tantinho sem jeito com a situação em que acabei envolvido, a ponto de compartilhar o sentimento com os leitores. De um lado, um menino com medo, ou cuja natureza é a de levar tudo ao pé da letra. Do outro, um adulto (eu) até certo ponto descuidado, confiante ao extremo no organismo e suas defesas. Entre nós, um pai colocado em indefectível saia justa. Depois, refletindo, cheguei à conclusão de que só há uma vacina capaz de prevenir essas circunstâncias: o bom humor. Substituíssemos o aperto de mãos por um largo sorriso e um Olha a gripe!, nenhum desconforto teria nos inoculado.

26.8.09

Número 332

EM MEIO À MEIA

Recém passou meu quadragésimo quinto aniversário e tudo parece meio estranho... O problema é a desconfiança de eu estar no ápice, no auge, na flor da meia-idade. Aliás, eu e toda a minha geração. Não que isso me deixe muito preocupado. Digamos assim: estou apenas meio preocupado. Por isso, especulando as implicações que isso traz.

Por exemplo, o que seria a meia-idade, senão aquele momento da vida em que ficamos meio cegos atrás de indefectíveis óculos de leitura, e mesmo assim enxergamos longe barbaridade? Ficamos meio surdos (ainda mais os músicos, especialmente bateristas), mas compreendemos até o que não está sendo dito? E meio mudos para sermos ainda mais eloquentes com nosso providencial silêncio? Ah, pois é...

Outro fenômeno meio esquisito é que, bem na meia-idade, olhamos para os filhos pensando que eles estão meio parecidos conosco. Eles, por outro lado, nos consideram meio parecidos como os avós, que, já tendo passado pela meia-idade, sempre acham tudo completamente diferente. Aí vemos as duas distantes gerações se entendendo bem, e nós colocados meio de lado nessa relação!

Não obstante o fato de termos muito, ou quase nada termos, na meia-idade o que mais acontece é grande valorização de outros termos: os meio-termos. Isto é, não estamos contagiados nem pelos arroubos apaixonados e inconsequentes da juventude, nem pela estagnação aposentada dos que se deixaram envelhecer demais. Quem está na meia-idade, para o bem de todos e felicidade geral da nação, vai mais devagar com o andor, pois ele, e o mundo, pesam em suas costas.

Este período da vida deixa alguns de nós meio gordinhos, outros meio carecas, meio grisalhos, meio doloridos. É um pouco pior quando tudo isso acontece ao mesmo tempo... Sei de amigos que, achando-se meio acabados, chegam a ficar meio deprimidos. Bobagem! Basta meia hora de caminhada, meio prato de comida, meia taça de vinho e meia-rédea no ritmo, de preferência na companhia da cara-metade. Conseguindo isso, já é meio caminho andado.

É também a meia-idade uma boa ocasião para dar-se meia-volta e alterar os rumos da vida enquanto se tem força, vontade e, quem sabe, um pé-de-meia. Que tal dar vazão ao talento deixado sempre meio de lado? Ou ao pobre sonho, esquecido meia hora depois do sol nascer? Quem sabe descer o meio-fio e pegar a estrada? Aproveitar tanta experiência adquirida para encontrar novos meios de realização pessoal – algo já pensado, no mínimo, meia dúzia de vezes? Como diria um presidente, sim, nós podemos!

No coração da meia-idade vale a pena aproveitar o ar aprazível da meia-estação para namorar um pouco. Caprichar na meia-calça, no sutiã meia-taça, nas palavras ditas a meia-voz e no ambiente bucólico da meia-luz. Lamber meias-palavras em beijos mais quentes e prolongados. Mas, de preferência, antes da meia-noite, pois varar manhãs inteiras na cama, com o passar do tempo, vai ficando cada vez mais difícil.

Por fim, caso você tenha se enquadrado na metade dessas ponderações, parabéns: está sobrevivendo aos atropelos da meia-idade, o que nos faz meio parecidos. Contudo, se espera algum tipo de conselho para o fechamento da crônica, com a solução para os males que nos afligem, tenho más notícias: me faltam meios para tanto. Além do mais, para mim, auto-ajuda é literatura de meia-tigela.

20.8.09

Número 331

THE E-BOOK IS ON THE TABLE

Semana passada, enquanto visitávamos a nova morada de uma querida amiga, ao comentarmos as soluções arquitetônicas para mobiliar o quarto de seu filho, mencionamos uma mesa que serve atualmente de escrivaninha para nossa caçula. É um pequeno móvel de aço, desmontável, típico dos anos oitenta. Salvo engano, foi comprado na Tok & Stok – loja reconhecida por sua aposta em design contemporâneo. O interessante na conversa foi a constatação de que a mesa fora adquirida por minha esposa, ainda solteira, para acomodar o computador que à época serviria para a escritura de sua dissertação de Mestrado: um TK-3000.

Os mais velhos certamente recordam o enorme salto qualitativo que o computador pessoal (PC) empreendeu para compor documentos longos como uma dissertação, algo difícil de ser avaliado pelas gerações atuais. A possibilidade de digitar, corrigir e salvar um arquivo em disquete era uma absoluta novidade naquele instante, mesmo contrastando com a atual precariedade do equipamento (o TK-3000 continha um microprocessador de 1 MHz e 8 bits). Nos tempos da reserva de mercado em informática, era o que tínhamos ao alcance. Tanto que sua tela verde fez história, e ele se tornou um dos maiores sucessos de vendas da Microdigital Eletrônica, marca importante no início da Era Digital no Brasil.

Lá se foram duas décadas e, como podem adivinhar, o TK-3000 virou peça de museu. Nem com boa vontade seria possível continuarmos usando este PC, pois os disquetes compatíveis não existem mais no mercado. Porém, desde aquele tempo e até hoje, a pequena mesa desmontável jamais deixou de ter ótima serventia para a família. Esteve compondo ambientes tanto na nossa sala de estar como na de amigos, até a chegada do nosso primogênito. Então, pela facilidade de regular sua altura, virou escrivaninha infantil. Logo depois de um up-grade visual, passando do preto fosco para a tonalidade branca, trocou de dormitório, mantendo igual finalidade. Com seus dias de escrivaninha contados (os filhos e suas necessidades crescem), não creio que faltará bom uso para uma prática mesa de aço em nossa casa.

Se em tecnologia digital vinte anos são uma eternidade, para móveis a regra é outra. Herdamos, por exemplo, mesa e cadeiras de jantar de minha infância, fabricadas na década de cinquenta do século passado (em processo de restauração). Outra mesa da mesma época, e que mobiliava a casa da minha avó materna, está aqui na biblioteca. Ao lado da cama, uma charmosa escrivaninha que pertenceu ao meu sogro compõe a cabeceira, sustentando o laptop vez que outra. Isso sem mencionar outros móveis como cristaleiras, armários e mesas de apoio em estado de novo, avós da mesa de aço, com data de validade absolutamente em aberto, espalhados em todos os ambientes de nossa casa.

Isso me fez recordar a recente polêmica em torno do dito “fim do livro”. O suporte papel, segundo especialistas, será gradativamente abandonado em favor de e-books, telas nas quais o conteúdo será carregado a preços módicos conforme a vontade do freguês. Assim como já acontece com a música, a literatura será desmaterializada, sobrevivendo no etéreo mundo da informação digital. E, na corrida incessante e frenética do mercado, alguns revolucionários mecanismos de ler fora do papel, muito festejados agora, serão iguais ao TK-3000 em cinco ou seis anos. Há quem defenda a tese de que as mudanças de suporte pouco afetarão a obra literária. Algo me faz desconfiar dessa impressão.

Tudo bem: posso apenas estar sendo mais uma vítima da vertigem na escalada digital. Mas, que fazer se cada vez mais me agrada a idéia de materialidade... Quero objetos que pesem na mão, agradem ao tato, sejam frios ou quentes. Tenham, também, cheiro e marcas de história, e que necessitem de boa dose de zelo – além do habitual cuidado com a tecla delete. Como não interfiro em rumos que parecem já traçados – até prova em contrário – meu ato de resistência será acomodar o mp3 (4, 5?) e o e-book sobre sólidas mesas, esperando que o aço e a madeira confiram a estes transitórios objetos um mínimo de perenidade. Míseros bits de ilusão.

14.8.09

Número 330

OS MORCEGOS DO ANDAR DE CIMA

Temos em casa um telhado proeminente, planejado para ocupar os altos da residência com a biblioteca. Como moramos no Rio Grande do Sul, terra que acomoda temperaturas desde siberianas até caribenhas durante as mudanças de estação, deixamos um generoso espaço entre as telhas e o forro, com estratégicas entradas de ar. Isso atenua um pouco o elevado pé direito da sala (bom para o inverno) e promove uma refrigeração para tornar suportáveis os dias de sol escaldante. Porém, tal generosidade foi muito bem recebida pelos morcegos, animais capazes de penetrar por risíveis frestas entre as telhas. Em pouco tempo, habitavam as dezenas (centenas?) sobre nossos livros.

Enquanto somavam uns poucos, os morcegos eram até suportáveis – eles lá, nós aqui. O problema começou a se tornar grave com a proliferação: ruídos, odor, revoadas ao anoitecer, invasões. Como tenho a audição diminuída nas frequências agudas, considerava exageradas as queixas sobre seus grunhidos. Até o momento em que se somaram, multiplicaram e tornaram-se evidentes até para mim. O cheiro dos excrementos, também, começou a ultrapassar a barreira do tolerável. Sem falar no fato de vermos nossa sacada se transformar em intenso aeroporto ao por do sol, com partidas de aeronaves a cada dez segundos. Por duas vezes, também, tivemos morcegos dentro de casa. E não é tão fácil tirá-los, com a uma aranha, sapo ou lagartixa (para ficar nos tradicionais ingredientes das poções de bruxas). Providências já, pedia a esposa.

Fui para a internet e descobri aparelhos que, ligados às tomadas, emitiam ruídos inaudíveis aos humanos e desagradáveis para morcegos. Compramos logo dois, na esperança de sumirem os bichos. Pura ilusão... Ou fomos iludidos pelo fabricante, ou nossos morcegos se habituaram ao desconforto sonoro. Então, chamei um empreiteiro: seria possível lacrar o telhado? Talvez sim, mas sairia muito caro e com tênue a garantia de sucesso – os morcegos são especialistas em procurar novas fendas. Por fim, falei com um biólogo: posso colocar veneno no telhado? Não: os morcegos são importantíssimos na cadeia alimentar e, assim, estão protegidos pela legislação ambiental.

Quando tudo parecia perdido, uma oportuna reportagem de jornal jogou uma luz sobre o tema. Morcegos precisam se abrigar em ambientes sombrios durante o dia, para dormir. Indicava, então, intercalar algumas telhas transparentes com o objetivo de tornar iluminado o espaço acima do forro. Como em um passe de mágica, sem grandes investimentos, os morcegos nos deixaram em paz. A lógica, de tão simples, me fez estupefato: como não pensei nisso antes?

Livre dos morcegos reais, leio sobre a política nacional, sobre nossos poderes, nossas estatais. O Brasil é um enorme telhado crivado de fendas, algumas até protegidas por lei. Somos um criadouro de morcegos, alimentando-se de nosso sangue à noite e protegidos na escuridão durante o dia. Finda a ditadura, a imprensa passou a emitir sons que, ao menos na teoria, deveriam espantar os morcegos. Mas eles não dão bola. Muitos cidadãos perguntam se não é possível reconstruir o Brasil sem frestas, blindado contra tais morcegos. Impossível, é a resposta. Em nenhum lugar no mundo existe telhado assim. Os radicais adorariam envenenar-lhes a pizza, e só não o fazem por ser ilegal.

Agora que a quantidade, os excrementos, os danos provocados pelos morcegos já alcançam o nível do insuportável; sabedores que somos da natureza dessa espécie – que precisa necessariamente habitar a escuridão –; livres para pensar e fazer nossas escolhas, fica a pergunta: o que falta para se fazer o óbvio? Contra todos os morcegos, para que eles não existam ao nosso redor, como bem apregoa Cláudio Weber Abramo, basta transparência e luz.

6.8.09

Número 329

PRECE

Aos meus amigos pais,
dedicados e amorosos,
com grande admiração.


Pai nosso que estás trabalhando – muitas vezes distante, mas com o pensamento na família –; que estás aposentado depois de uma vida inteira de dedicação incansável; que estás convalescente... Pai nosso que já te encontras no céu: relembrado, respeitado, reconhecido seja o teu nome.

Pai: venha a nós o teu legado, teu exemplo, tua história. De preferência em jantares com a família, festejando a vitória do clube, no carinhoso beijo de boa noite. Que não nos falte tempo para falar da tua infância, para recebermos teus conselhos, para que tenhamos a tua vida como bom exemplo a seguir. Que alcances a idade de ver os netos e, sendo pai duas vezes, possas rolar no chão arrancando risadas das crianças – soberana graça.

Pai: seja feita a tua vontade, tanto em casa quanto em qualquer lugar do mundo. Afinal, grande parcela de nossa crise moral tem nascido dentro do lar, justamente com o enfraquecimento da autoridade paterna. Não temas o fardo do comando, pai: prepara teus filhos para que enfrentem as frustrações como sendo inerentes ao processo de crescimento, e os insucessos com energia suficiente para darem a volta por cima. Dota os herdeiros com a consciência de que todos pagamos por nossos erros, cedo ou tarde. Faze-nos verdadeiros cidadãos.

Pai: o pão nosso de cada dia, fruto do teu suor, dá-nos hoje e sempre. Ele será nosso alimento para o corpo e para o espírito. Dará suporte para que cresçamos saudáveis e fortes, prontos para enfrentar os desafios do futuro. Pão este que terá mais valor tanto maior for o sacrifício em obtê-lo – momentos em que os pais passam privações em prol da família. Porém, jamais será por isso que ofertaremos menor reconhecimento àqueles que conquistaram a fartura, vigilantes para que os filhos não incorram em desperdício e soberba.

Pai: perdoa-nos de nossas ofensas. Elas são muitas vezes resultado do grande ímpeto juvenil, de teimosias infantis, de falta de amadurecimento. Quando souberes que estás com a razão, tem paciência e, diante de nossa ira, tem compaixão. Lembra-te do dia em que estavas com a nossa idade e nossa aparente segurança. Tem a grandeza de nos desculpar, na esperança de que tenhamos igual postura para, um dia, reconhecer nossas falhas.

Pai: proteje-nos das tentações. Proteje-nos das drogas fortalecendo nossa auto-estima e discernimento. Proteje-nos da criminalidade e seu sedutor, falso e danoso poder. Proteje-nos da violência ensinando o respeito ao próximo. Proteje-nos da ignorância valorizando a educação. Proteje-nos da cobiça e do individualismo mostrando o caminho da solidariedade. E, melhor, pai: faze tudo isso através do bom exemplo.

Pai: livra-nos do mal nos desejando o bem; nos ofertando o bem; nos indicando o caminho do bem. Que sejamos sempre bem-vindos em tua casa. Bem-quistos por teu coração. Bem interpretados em nossas intenções. Bem-aventurados ao seguir teus passos.

Filho: se você foi abençoado com um bom e justo pai, lembre-se dele todos os dias. Sua luz poderá ser o mais importante farol que o Pai lhe deu.

Amém.

Convite!

Quarta-feira é dia de palestra e autógrafos no Centro Cultural Auxílio ao Tema. Não perca!

29.7.09

Número 328

EXPRESSO

Entrei no bistrô para ali investir o precioso lapso de tempo que a manhã me proporcionava. Mal sentei à janela, o garçom se aproximou no ritmo ideal: nem tão rápido que sugerisse a ansiedade latente de um estabelecimento vazio, nem tão lento como a indicar um bom motivo para o grande número de mesas desocupadas. Solícito, me alcançou o cardápio, recolhendo-o diante do meu gesto de dispensa. Eu já sabia o que pedir.

– Preciso de uma crônica, por favor.

O garçom inclinou a cabeça, apertou suavemente os lábios e arqueou a sobrancelha. Demorou alguns segundos processando o pedido: quem sabe algo em mim não indicasse tal preferência? Buscando mais informações, perguntou se eu desejava um acompanhamento.

– Não, obrigado. Por hora, nada mais.

Ele assentiu, deu um passo curto para trás, girou e partiu na direção do grande balcão de madeira. Virei-me para a janela e deixei que a música ambiente se fizesse notar: Billie’s Bounce, do Charlie Parker. Na falta de alguém para conversar, aí estava o jazz para ser a boa companhia durante a espera...

Do lado de fora, a cidade não parecia sentir nem um pouquinho a minha falta. Os automóveis seguiam em sua habitual urgência, quase não acreditando ser necessário parar para atender a ordem do semáforo de pedestres. Quem estava a pé dividia-se entre taciturnos e distraídos. Todos, porém, dentro e fora dos carros, pareciam colocar o pensamento logo adiante – para o que lhes esperava –, esquecendo de viver o presente. Ninguém olhava para ninguém.

Uma moça de casaco claro, meio tom acima do cachecol, falava sozinha. Procurei por aquele ridículo fio em sua orelha que indicasse o uso do estranho vivavoz do telefone celular. Nada. Melhor assim... A impressão do lado de cá da vitrine era de que ela fazia um ensaio. Isso: ela repassava o texto, com direito a suas diversas nuances. Quando recebeu o sinal verde, partindo para meu lado da rua, uma das mãos mantinha a bolsa firme contra o corpo, e a outra, fechada, apertava-se com energia. Fosse o que fosse o motivo da palestra íntima, parecia sério.

Neste instante, um motoqueiro de entregas ameaçou disparar sobre ela, avançando na faixa de segurança. A mão que estava crispada se espalmou como quem grita pare, ao mesmo tempo em que o corpo saltava para o lado. A mim, que assistia, coube apenas puxar o ar em sobressalto. Os dois trocaram olhares e, cada um com suas razões, xingamentos. Ambos terminaram suas tarefas: ela atravessou a rua, ele prosseguiu com sua roleta russa.

O garçom chegou com a xícara fumegante, atraindo a minha atenção. Dentro dela, o líquido escuro e aromático estava coberto por uma diáfana espuma. Indicou onde estavam o açúcar e o adoçante, se quisesse, e ofereceu um biscoito de canela para acompanhar. Mesa posta, incluindo a comanda de pagamento, retirou-se assim que agradeci.

Quando voltei os olhos para a vitrine outra vez, procurei, mas não vi a moça do cachecol. Todos os demais prosseguiam com sua ensimesmada pressa metropolitana – como se aquela esquina existisse apenas para ser abandonada o quanto antes. Respirei fundo. Ou melhor, suspirei. Agora, ao som de Round Midnight, de Thelonius Monk. Porém, enquanto balançava a cabeça como quem diz que tudo está errado – minha vez de falar sozinho –, reparei que a tal moça entrara no bistrô.

Esperança: mais alguém na sexta-feira de manhã teria disposição para fazer a breve pausa de ler uma crônica. Ou até de servir de inspiração.

22.7.09

Número 327

NA HORA DO SALTO


E o beijinho vai para quem?
Xuxa


Um dos grandes feitos de nossa história recente completa quarenta anos em 2009: a chegada do homem à lua. Ação importante na trincheira científica da Guerra Fria, o pouso do Módulo Lunar da espaçonave Apollo 11 foi um dos primeiros fenômenos de comunicação de massa, acompanhado por milhões de pessoas em escala global. Conscientes da relevância do momento, os norte-americanos buscaram capitalizar o máximo de proveito do episódio, principalmente depois de assistirem ao soviético Yuri Gagarin ser o primeiro homem a alcançar o espaço a bordo da Vostok 1, em 1961. Desde então, pairava pelos corredores da NASA, tal qual o sussurro de um fantasma, a marcante frase do orbitante Gagarin: “A Terra é azul, mas não há Deus”.

Assim, tanto quanto os estudos técnico-científicos que permitiram aos astronautas pousarem e decolarem em segurança do solo lunar, os aspectos de comunicação também foram minuciosamente planejados. Filmagem, transmissão, bandeira, fotos, tudo pensado para enriquecer a História com informações e símbolos relevantes. Nos poucos anos que separaram as expedições de Apollo e Vostok, muito havia se avançado em termos de comunicação, o que permitiria uma visibilidade extrema. E, necessariamente, uma nova frase haveria de suplantar a anterior: “Um pequeno passo para o homem, um grande salto para a Humanidade”, dita por Neil Armstrong.

Por uma questão de romantismo, quero crer que os astronautas foram os autores das duas belas frases. No fundo, claro, e muito por causa da força de ambas, existe a possibilidade de alguma delas ter sido previamente criada. Soube de uma especulação em que o próprio Armstrong teria dito de forma errônea o texto decorado, trocando o correto “um homem” por “o homem” na primeira parte de seu enunciado. Aqui e agora, o mais importante para mim é exaltar a eficácia das palavras que foram proferidas em tais momentos cruciais para a Humanidade. Em igual proporção, louvar as frases marcantes de nossa vida, venham elas de iluminados improvisos ou ensaiadas linhas. Ao mesmo tempo, e por consequência, lamentar que tantas pessoas perdem essa oportunidade de ouro.

Por exemplo, o que acharíamos da seguinte cena: abre o microfone de dentro do capacete do primeiro homem a pisar em Marte. É dele o minuto para ser escutado por todos. Então, vemos o herói tirar do bolso do macacão espacial um papelzinho dobrado, enquanto confessa meio constrangido que precisa de uma “colinha”, mesmo tendo dias e dias para ensaiar suas palavras. Com a voz trêmula de emoção, ele agradece à sua avó, que tanto o incentivou desde os primeiros anos escolares; à sua mãe, que não poupou sacrifícios para que ele chegasse até ali; ao seu pai, esteja ele onde estiver, pelo exemplo; aos seus irmãos, pela camaradagem, e, finalmente, à sua noiva, que abriu mão de muitos finais de semana com ele enquanto estava se dedicando aos exaustivos treinamentos no Centro Espacial. Ah, em desagravo a Gagarin, agradeceria também a Deus: sem Ele, nada alcançamos.

Pois é... Aproxima-se o momento da série de cerimônias de formatura nos mais diversos cursos superiores. E, fazendo questão de acompanhar uma das benquistas professoras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), minha esposa, já estou preparado para escutar dezenas de vezes palavras, se não iguais, muito semelhantes àquelas que coloquei na boca do nosso hipotético homem que pousou em Marte. Por isso, minha vontade seria, antes, chegar aos alunos planejam sua colação de grau e pedir: pelo bem comum, que os formandos tenham direito a vinte, no máximo trinta palavras individuais no púlpito – maior extensão cabe, no protocolo, ao orador da turma. Depois, mostraria o magnífico poder de síntese das frases do soviético e do americano. Por fim, explicaria que, para eles, a formatura será o momento do primeiro grande salto de suas vidas, um instante que ficará para sempre. Logo, é a hora exata para falar pouco, todavia muito, muito bem. Este sim, um belo presente à mamãe!

15.7.09

Número 326

MENTIRAS PRESERVATIVAS

A vida de maridos que mentem sistematicamente para suas esposas não é nada fácil. Não que seja complicado inventar histórias, desculpas, explicações. Em regra, os homens são bastante criativos e escorregadios. E solidários, caso necessitem de álibis de parceiros de farra. Porém, do outro lado, encontram mulheres equipadas pela natureza com uma atenção diferenciada (principalmente quando o tema interessa) e uma memória muito, muito superior.

Neste momento, surge um paradoxo: ao criar uma mentira, se ela for pobre em detalhes, jamais será verossímil. Ou, em outras palavras, não colará. Porém, a chance de o mentiroso lembrar por bastante tempo dos detalhes de uma história elaborada e, por isso, presumível, é pequena. Menor ainda será a memória de um eventual comparsa. Por sua vez, a impressionante memória feminina guardará o enredo tintim por tintim. E no futuro, por acaso ou de propósito, a mentira poderá ser desvendada, gerando um desgaste infeliz.

Dias atrás, conversando com um amigo escolado, recebi orientações preciosas para resolver esse problema (o qual, diga-se de passagem, nem tenho). Com rigor quase científico, me disse que devemos ter sempre na lembrança a lição que o educador sexual dá aos pais para quando as crianças fazem perguntas sobre reprodução humana: não informe nada além da curiosidade. Na esperança de que o texto até aqui tenha sido suficientemente calhorda para levar as moças a abandonarem a leitura, reproduzo alguns dos exemplos citados:

Caso tenha perdido a aliança em uma atividade suspeita, e resolva inventar um assalto para explicar seu sumiço, seja econômico: foi na calçada, um homem, armado que, com pressa, levou o anel e mais nada. Não diga o nome e o calibre do revólver. Mesmo sem saber a diferença entre um 22 e um 38, elas guardarão os números e isso pode levar a uma contradição. “Arma” basta. Jamais descreva o assaltante! Diga que foi rápido demais e você nem viu direito. “Perto do escritório” pode ser suficiente. Tudo o mais pode ser passível de testemunhas.

No caso de não ter perdido nada além da hora, explique o atraso com um mínimo de informações. Experimente, primeiro, culpar o trânsito. Mas não caia na tentação de imaginar um acidente, uma obra viária, uma blitze da Polícia Federal. Se ela pedir detalhes, diga que “deve ter acontecido alguma coisa”, e prometa buscar a explicação no jornal do dia seguinte. Quando chegar em casa exalando perfume feminino, diga que foi uma demonstradora que, reparando na sua aliança, borrifou em você para convencer que seria um bom presente de aniversário. Porém, jamais descreva a tal demonstradora: seu inconsciente pode lhe trair e dar pistas do que, justamente, deve ser ocultado.

Dito assim, parece fácil. Mas não é. Se você faz parte da categoria dos homens que recorrem à mentira como ferramenta de harmonia conjugal, pode dar o azar de estar casado com uma mulher perspicaz. Ela, então, fará perguntas para descobrir uma contradição. E guardará as minúcias para futuras inquisições. O segredo é tentar ficar na superfície das generalidades, respirando aliviado, enquanto ela tenta desesperadamente puxar você para as profundezas do detalhamento.

Bom, para o caso de alguma mulher ter chegado até aqui, um consolo: no caso invertido (o de ser ela quem pula a cerca), qualquer explicação mal criada será suficiente. Bem no fundo, tudo o que os maridos querem é nada descobrir.

9.7.09

Número 325

DORME, CAROLINA

Carolina nasceu de parto normal, três quilos e meio, 48cm. Conduzida ao colo da mãe pelo obstetra, ali, nos primeiros instantes, amassadinha e vermelha, não se parecia nem com ela nem com o pai: parecia, isso sim, cansada. E cansada permaneceu durante todo o período em que estiveram na maternidade – mal e mal cochilava, já abria os olhos outra vez. E chorava um pedido incompreensível que punha a mãe nervosa.

Quando deixaram o hospital, eram duas sem dormir. Por isso, talvez seguindo algum instinto, a mãe restringiu tanto quanto pode o assédio natural e carinhoso de amigos, vizinhos, tios e avós em sua casa. Invertendo o senso comum, não era ela quem adormecia quando Carolina pegava no sono: a menina que parecia descansar apenas quando a mãe, exausta, apagava. Porém, bastava alguém entrar no quarto para os olhos da criança se abrirem outra vez. E, com eles, o choro.

A estranha relação de Carolina com o sono quase terminou com o casamento. O marido, lógico, não aceitava com alegria sua expulsão do quarto do casal. Mesmo assim, reconhecia a necessidade, pois a filha não pregava o olho enquanto ele não se retirava. A salvação foi descobrir que ela ficava muito mais tranquila quando a própria mãe se ausentava, deixando-a só. A partir de então, viram Carolina dormir em seu próprio quarto, sozinha, porta fechada, tudo com menos de três meses de idade.

Nunca, porém, o sono da menina deixava de ser preocupação. Quando começou a falar, suas queixas eram estranhas: sombra, mamãe. E escureciam ao máximo o quarto. Lagartixa, mamãe: e caçavam o animalzinho no canto do teto. Mosquito, mamãe: bom, essa reclamação encontrava eco na normalidade. Aos cinco anos ela ganhou um pequeno aquário habitado por um peixe Beta. Colocaram sobre a escrivaninha, imaginando que seria bom para ela curtir a companhia. Na manhã seguinte, lá estava o aquário no corredor, do lado de fora da porta do quarto. Perguntaram a razão. Ele nada durante a noite, foi o que explicou Carolina.

Aos poucos o problema ficava claro: Carolina, desde que nascera, despertava com o menor movimento que percebesse. Por isso adormecia no escuro, sozinha, sem nada se mexendo ao redor. Também essa era a razão de ter destruído três móbiles dados pelo tio (e não uma suposta antipatia que imaginávamos). Dar-se conta desse problema a fazia sofrer, principalmente depois de passar a noite em claro na primeira, e única, vez em que foi dormir na casa de uma amiga. E, para receber colegas e primos em sua casa, só se dormissem na sala de TV. Viagens, passeios, excursões, campeonatos esportivos em outra cidade, nem pensar. E isso explicava o fato de se manter acordada dentro do automóvel, quando todas as crianças dormem ferrado em viagens.

Carolina cresceu. Os filhos sempre crescem. E muito mais rapidamente do que gostariam os pais. Hoje, já uma moça, como não poderia deixar de ser, a menina está namorando. Fernando é o nome do rapaz. Estuda Educação Física, tem quase dois metros de altura e ficou para dormir. Armaram para ele o sofá-cama da sala de televisão, na esperança de que se acomodasse com razoável conforto. Neste momento a mãe está na cama, mas não consegue dormir: o pai caminha de um lado para outro sem parar, bem na frente dela. É compreensível sua preocupação. Ao desconfiar de que algo se move para além de sua porta, teme que Carolina não esteja dormindo.

2.7.09

Número 324

MEMÓRIAS DO FUNDO DO BOLSO

Nasci muitas moedas atrás, lá nos idos dos anos sessenta. Meu pai tinha pouco menos de trinta anos de idade à época. Ele, quando infante, viu morrer o Mil-réis – a moeda que antecedeu nosso primeiro Cruzeiro (Cr$). E foi com as novas cédulas que ele pagou sua grapete, as entradas de cinema, as passagens de bonde. Pagou a faculdade, as alianças que ofereceu à noiva e a maternidade de seus três primeiros bebês. Depois, na curta vida do Cruzeiro novo (NCr$), pagou o hospital que recebeu o filho caçula e, no mesmo ano, as entradas para ir comigo na inauguração do estádio Gigante da Beira-Rio. Com NCR$ comprou a pipoca daquela noite mágica em que o Colorado enfrentou o Benfica de Portugal, time do lendário Euzébio (Inter 2 X 1 Benfica). Para ficar no futebol, os Cruzeiros novos deram lugar outra vez ao Cruzeiro em 1970, um pouco antes de nos tornarmos Tricampeões Mundiais com Pelé, Zagallo, Jairzinho e companhia.

Mesmo reconhecendo que o primeiro Cruzeiro e seu novo (NCr$) saldaram despesas representativas na minha existência, a primeira moeda com que lidei de verdade foi o renascido Cr$. Era com Cruzeiros no bolso que eu pagava o sanduíche prensado durante o recreio no colégio, comprava gibis do Mickey e da Mônica, e picolés Chicabom nos verões intermináveis das férias na Praia do Barco. Com essa moeda levei para casa, orgulhoso, um LP da Clara Nunes. E os Cr$ foram acompanhando meu caminho musical até eu bater nas portas do jazz, no impecável álbum Zabumbê-bum-á de Hermeto Pascoal (1979). Temas como Suíte Norte Sul Leste Oeste abririam meus sentidos para, literalmente, todas as direções. Ainda com o mesmo padrão monetário, desgastado pela persistente inflação, entrei e saí da universidade, caindo no mercado de trabalho em um período de economia muito, muito desafinada. E de desvalorização monetária ensurdecedora.

Em 28 de fevereiro de 1986, no instante em que, entre amigos, cruzávamos o Rio Mampituba (a divisa entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina) nasceu o Cruzado (Cz$). Voltávamos de férias em Florianópolis. Dílson Funaro era o pai da nova moeda, vinda para tempos de Nova República. O mais proeminente ministro do primeiro governo civil de nossas vidas, presidido por José Sarney, cortou, junto com o cordão umbilical, três zeros da antiga cédula. Naquele dia, com tantas incertezas quanto esperanças, eu mudava de categoria: deixava de ser um pé-rapado milionário para me tornar um pé-rapado na casa das dezenas. Foi, também, o momento em que minha vida coincidiu com a vida das moedas nacionais: várias mudanças em pouco tempo. Pulando de plano em plano econômico, troquei de profissão, noivei, casei e descasei. Tudo isso entre Cruzados, Cruzados Novos (NCz$) e os Cruzeiros outra vez – a nova/velha moeda. Perdi as ilusões, muitos zeros no caminho e, tristemente, boa parte dos cabelos. Conheci uma nova companheira: a enxaqueca.

O Cruzeiro Real (CR$), sétima moeda que caía no meu bolso, foi criado por Itamar Franco em 1° de agosto de 1993. Isto é, nas portas dos meus 29 anos, coincidindo com a idade do meu pai à época em que nasci. No mês seguinte encontrei minha amada e, antes da chegada da URV (um fator de conversão com cara de dinheiro) e do Real (R$), já estávamos casados. Assim, para nós será sempre muito fácil saber a idade do atual padrão monetário, cujo aniversário de quinze anos aconteceu dia 1º pp. Na vigência do Real construímos a família. Tediosamente, nossos filhos não conhecem outra moeda. Nem os constantes cortes de zeros arremessados nos dragões da inflação. Nem sabem o que é a inflação. Eles acham isso tudo muito maluco!

A solidez da economia brasileira talvez seja o principal benefício resultante de nossa jovem democracia, senão o único. Meu desejo, agora, é que em um futuro próximo meus filhos escrevam um texto sobre os escândalos políticos, a anarquia administrativa e as fraudes generalizadas estampadas em nossas manchetes de jornais. E leiam para os meus netos, explicando o inexplicável: como conseguíamos viver daquela (dessa!) maneira. E anões do orçamento, mensalões e atos secretos soem tão distantes quanto Mil-réis, Cruzeiros e Cruzados. Enfim, que o nepotismo, a corrupção e o clientelismo sejam, de uma vez por todas, moedas fora de circulação.