27.11.08

293

TER OU NÃO TER

Parece ser consenso o fato de a classe média estar voltando a ser mais representativa no Brasil. Ainda bem, dirão os economistas, pois ela é o motor do crescimento econômico. Para eles, países desenvolvidos são marcados por ampla predominância desta fatia no prisma social. Ainda bem, dirão os governantes, já que a classe média é a vítima primordial dos impostos e, aqui, “fatia” ganha a conotação mais alimentícia para o apetite público. Segundo pude apurar em declarações recentes, estudiosos de economia e políticos divergem apenas na hora de classificar alguém como pertencente à faixa intermediária de consumo e renda. Na falta do número definitivo de salários mínimos para enquadrar determinada família na classe média, proponho uma classificação semântica: ricos e pobres são classes “e”. Os médios pertencem à classe “ou”. Explico.

Os ricos costumam morar em casas (apartamentos, coberturas, chácaras) amplas e localizadas em endereços considerados nobres. E são eles, também, os proprietários dos carros luxuosos e importados, quase nunca solitários nas espaçosas garagens – a regra costuma ser um para cada componente da família. E são ricos os melhores clientes de agências de turismo, hotéis e companhias aéreas. E as joalherias e as butiques e as escolas particulares e as casas de espetáculo e os restaurantes da moda e uma infinidade de comerciantes e prestadores de serviços são sustentados pelo estilo de vida dos ricos. Enfim, os ricos têm isso “e” aquilo. Fazem isso “e” aquilo. Freqüentam esse “e” aquele lugar.

Os pobres, ao contrário, habitam as mais modestas residências das cidades – algumas, inclusive, que nem mereceriam esta classificação: casebres localizados na periferia, em áreas invadidas, favelas e vilas populares. Pobres andam apenas de ônibus e trens e de bicicleta. Conhecem cidades charmosas pela TV – tela que os apresenta para hotéis, parques, aviões; praias de água cristalina e montanhas nevadas. Têm os filhos nas escolas públicas e têm direito às cestas básicas e recebem doações de roupas e freqüentam lazer gratuito e trabalham nos postos menos qualificados das empresas e são os clientes do mercado informal – o qual, muitas vezes, o compõem. Logo, aos pobres falta galgar quase todas as conquistas da civilização “e” tudo mais. Uma soma repetida de carências.

E a classe média? Bom, diferente dos que não precisam escolher e dos que não têm escolha, ela é a classe do “ou”. Ou moram em uma boa e bem localizada casa, ou guardam um carro de luxo na garagem. Ou conservam os filhos em escolas particulares, ou passam uma temporada por ano conhecendo o mundo. Ou se vestem com roupas de grife, ou estacionam no shopping um carro acima de mil cilindradas. Ou vão ao show do cantor famoso, ou mais de duas vezes por mês em restaurantes. Ou pintam a casa, ou trocam de carro. Ou são sócios do clube, ou pagam a prestação da casa na praia. Ou presenteiam a filha com uma festa de quinze anos, ou lhe proporcionam uma viagem. Ou se esfolam para pagar a faculdade dos filhos, ou já se esfolaram para que o jovem apenas estudasse – bastante – para passar em universidade pública. Ou, ou, ou, em infinitas combinações.

Assim fica fácil de saber se você, leitor, é de classe média: meça o quanto de sacrifício contém cada uma de suas conquistas. Toda vez que estiver abrindo mão de muitos hábitos ou algum patrimônio para galgar um objetivo mais elevado na escala de valores, estará honrando o pertencimento à Associação Permanente Trapezistas do Orçamento (APERTO), cuja bandeira se parece com um cobertor curto. A boa notícia é a enorme satisfação contida em cada esforço premiado. A má notícia é que, quando alguém de classe média alça uma vitória sublime (casa boa, carrão, temporada em Paris), acaba sendo rotulado de rico pelos pobres, e de inconseqüente pelos abonados. De uma forma ou de outra, parecerá viver uma ilusão. Para concluir, me sirvo da grande definição de classe “ou”, que até onde sei não foi cunhada por economistas ou políticos, e sim pela minha esposa: “classe média é aquela que sabe o que está perdendo”. Ou você tem uma melhor?

20.11.08

Número 292

AS TRINCHEIRAS DA ETERNIDADE

Múltiplas obras de ficção, tanto de literatura como adaptadas ao cinema, projetam um futuro aparentemente sombrio: homens despidos de suas conquistas tecnológicas e sujeitos, outra vez, às forças hostis da natureza. Quem imagina que tais presságios são fruto de autores ressentidos com os rumos da sociedade, protestando em delirantes brados de alerta, engana-se feio. Escritores são, especialmente, bons observadores. Percebem, assim, a transitoriedade do homem – que se julga tão poderoso – e a força da natureza, eterna em sua capacidade de recuperação.

Para a confirmação desta tese, proponho um exercício prático: escolha um pedaço de chão de qualquer tamanho e faça o mais caprichado jardim, tão lindo quanto possível. Cuide de cada detalhe: ph do solo, nutrientes, sombra, flores, pedras decorativas, folhagens e tudo o que mais lhe agradar. Zele por tal ambiente durante um ano – tempo que, creio, levará para a vida se fazer plena na beleza planejada. Então, finja morrer, isto é, não controle – altere – mais nada. Depois, acompanhe a evolução do seu jardim por igual período, com a acuidade de um cientista. A natureza, em sua vocação de vida, proverá ao espaço delimitado uma imensa diversidade, substituindo o tênue critério da estética humana por outro muito mais seguro: o do equilíbrio ambiental.

Em última instância, é essa visão que assombra os ficcionistas: a natureza aguarda apenas uma distração do homem – um mero acidente de percurso, uma fatalidade qualquer – para seguir seu rumo. Depois, terá muito tempo para restabelecer a ordem, mesmo sendo ela nova, posterior às alterações advindas de nossa passagem na terra. Porém, em nada parecida com os jardins artificiais por nós denominados de cidades – lugares com menos vida, no sentido de diversificação de espécies, do que qualquer inocente matinho de arrabalde. Um exemplo? No Parque Estadual de Itapuã, às margens do Guaíba, ambientalistas preservam as ruínas das casas de invasores para que nós, visitantes, possamos testemunhar a impressionante retomada da natureza, ocorrida em pouco mais de uma década. Calcule, agora, o que restará das habitações em milênios.

Quando os ecologistas defendem uma mudança de rumo na dita civilização, redirecionada ao equilíbrio ambiental, estão mirando muito mais na salvação da humanidade do que no socorro ao planeta em si. Em milhões de anos, a terra viu nascer e sucumbir todo tipo de animal e planta, cujos resquícios nos são oferecidos aos estudos paleontológicos. Se alterarmos demais o ambiente que permitiu nossa presença por aqui, fazemos crescer nosso próprio risco de extinção. Basta olhar o exemplo de tantas outras espécies – vítimas do desmatamento e da poluição –, outrora imponentes, transformadas em criaturas tão frágeis como as flores do nosso jardim. Há um limite nesta sanha de progresso: tornarmo-nos, com ironia melancólica, incompatíveis com o meio que modificamos.

Ao contrário do que se possa pensar, a sociedade não está imune a um colapso energético, tecnológico ou de saúde pública. E não são apenas os escritores a pressentir e temer por isso: há um alerta geral neste sentido, partindo de diversas áreas do conhecimento. Se a nossa vida tornar-se excessivamente dependente das alterações que propiciam um conforto de caráter imediato e consumista, ela estará em sérios apuros. Respeitar a natureza na qualidade de seres transitórios é nossa única chance de acompanhá-la em sua plenitude. Estar em harmonia com a diversidade biológica é a oportunidade de também fazer parte dela. Despoluir o meio ambiente e salvar espécies em vias de extinção é antecipar ações que, no futuro, podem garantir nossa própria continuidade. A vida sempre vencerá a batalha, já está decidido. Logo, é preciso lutar a seu favor, agora mais do que nunca, nas trincheiras da eternidade.

13.11.08

Número 291

EMENDAS E SONETO

Querida,

Se você está lendo esta carta, é porque abriu a gaveta que era só minha. E, prosseguindo na busca de documentos, é certo que chegará ao envelope pardo que está bem no fundo. Por isso, me adianto em explicar seu conteúdo... Caso não tenha desconfiado, sempre sonhei em ser poeta. Quando lhe conheci, compus um soneto dedicado ao mágico sonho que era o amor nascente. Porém, por perfeccionismo – insegurança? –, voltei ao poema a cada março, nosso mês. Minha idéia era revisá-lo para que fosse ao máximo fiel, sem medo de fazer supressões ou acréscimos.

A primeira grande alteração aconteceu depois do casamento. Para melhor, imaginava: muitos versos românticos cederam espaço para um conteúdo mais envolvente. Erótico, ouso dizer. Troquei minha imaginação por nossas descobertas. Seu corpo ganhou mais destaque a cada verso. Cantei suas formas e sabores; seus olhos e suspiros; seu sorriso ao amanhecer. Garanto que não poupei mesuras. Estava quase convencido a lhe mostrar o soneto quando chegou a notícia da gravidez. Senti que era preciso, contigo, esperar.

A chegada do Alfredinho deu novas cores à minha vida. Como havia intuído, meu soneto já pedia outros versos, com o encanto da maternidade, robusta e lânguida. Descobri em você uma nova mulher. Plena, eterna. Perdi noites em busca do melhor tom – um tanto de cantiga de ninar, outro de amor roubado nas madrugadas. Também tínhamos a casa nova, ambiente idílico para versos cabais. Paredes brancas, imaculadas; janelas nuas e poucos móveis. Tudo a me ocupar. Novas rimas, inclusive.

O soneto parecia novamente pronto antes mesmo da mobília estar completa. Mas a vinda de um novo filho impôs paciência. Filho nada: a nossa Ana Maria. O anjo mais lindo que Deus criou, agora estava posto em meus braços. Pergunto: como poderia deixá-la de fora dos versos, se Aninha era poesia em forma de gente? Além do mais, se um dia nossa flor quisesse ler minha obra, morreria de vergonha das confissões sensuais que cometia. Labutei na busca de casar aquele amor carnal à condição de família, legado de um novo tempo. Com o correr dos versos, o erotismo findou sutil, ainda que presente. O soneto, enfim, estava no ponto para ser revelado. O que não aconteceu...

André, rebento temporão, soterrou meu intento. Horror confessar algo tão imerecido, porém verdadeiro: já não conseguia cantar o terceiro filho com o mesmo lirismo de outrora. Junto a isso, sentia culpa em citar com tanta devoção o primogênito e sua irmã, relegando o caçula a uma emenda mal feita. Ou entravam os três com a mesma ênfase, ou saíam todos. Quando vi, o soneto, de pronto, ficou reduzido ao começo e umas rimas soltas pelo meio. Ainda mais que suprimi o cantar da casa, desiludido com aquela teimosa infiltração a nos escurecer as paredes. E você, minha amada, sempre exausta, em nada acudia o poeta.

Foram incontáveis os marços em que movi poucas linhas. Pobre soneto, restou abaixo das mensalidades escolares, das prestações da casa da praia, dos planos de viagens (adiados). Quando, enfim, os filhos saíram de casa, pensei que seria fácil concluir o trabalho: fazer o soneto definitivo. Passei vários anos, a cada fim de verão, lembrando contigo nossos tempos áureos. Aposentado, tinha paz, mas a inspiração me abandonara. Suprimir versos me parecia indiferente. Acrescentar, impossível.

Logo mais você encontrará, minha querida, sacramentadas no envelope pardo quase cinqüenta versões da mesma poesia. E nenhuma será melhor para a despedida do que o soneto original, de todos o mais fiel – meu retorno à magia dos sonhos.

6.11.08

Número 290 + 2 convites

Olá! Quer se encontrar comigo na 54º Feira do Livro de Porto Alegre?

Dia 7/11, sexta-feira, 20h, estarei autografando Pedra, Papel e Tesoura ‒ Contos de Oficina 38, junto com os demais autores, no térreo do Memorial. O livro, organizado pelo Prof. Assis Brasil, surpreende pela qualidade e diversidade de vozes literárias. Recomendo!

Sábado, 8/11, 17h30min, palestra Centenário de Cartola ‒ as rosas não falam, sala Arquipélago do CCCEV, com a Profa. Dra. Maria Regina Bettiol, o poeta Prof. Dr. Marlon de Almeida e o músico Rubem Penz (eu); canja sonora com David Sosa (voz) e Cristiano Fischer (violão), comigo na percussão. Horário bom, de graça e muito bacana!

Ficam os convites e meu abraço.


O OVO OU A GALINHA?

Quem nasceu primeiro: o homem na cozinha, ou a cozinha na área social da casa? Essa dúvida saiu da casca passeando com minha esposa pelas ruas do nosso condomínio. Afinal, em várias residências ‒ quase todas bastante novas ‒ a cozinha é vista na fachada, adiante até mesmo da sala de estar. E, não raro, são os homens que estão lá dentro, pilotando um belo fogão ao invés da churrasqueira. Aqueles mesmos que em tempos recentes se orgulhavam de não saber fritar um ovo ‒ atributo (defeito?) ligado ao machismo ‒, agora ostentam um avental bem-humorado.

Fácil de pensar que primeiro nasceu o homem na cozinha. Porque a mulher, depois de ser cozida em séculos de submissão, queimou o sutiã e quebrou os pratos. Assim, por livre e espancada vontade, o homem consentiu em dividir com ela as lides domésticas, cada vez menos realizadas por serviçais. Em um movimento coincidente ‒ e talvez não por coincidência ‒ uma série de inovações foram desenvolvidas para deixar a preparação do alimento mais fácil, prática e agradável. Eletrodomésticos com comandos eletrônicos; frigideiras, panelas e fôrmas antiaderentes; fornos e liquidificadores autolimpantes; cutelaria de luxo e molhos pré-cozidos, tudo criado por obra da engenharia de... homens! A galinha, também, passou a chegar limpa, separada em pedaços e sem pele. Uma barbada.

Porém, mesmo depois disso tudo, faltava o ornamento do prato: importar o status dos grandes chefs de cuisine e transformar o limão em limonada. Neste momento, preparar o almoço se transformou em artifício de sedução. O velho truque de conquistar pelo estômago mudou de lado e, cada vez mais, as mulheres passaram a apreciar os bons de colher de pau. Mas é complicado ser pavão em um ambiente arcaico e relegado aos fundos da casa. Foi quando caíram as paredes da cozinha ‒ que ganhou visual para a sala de jantar ‒ e seus móveis abiscoitaram uma beleza ímpar. Por fim, a peça conquistou um lugar de destaque nas plantas baixas, transformando-se na cereja do bolo. A novidade à mesa? Mulheres que, em matéria de panelas, não entendem um ovo. Com orgulho!

Ou nada disso: o macho da casa resistiu tudo o que pôde antes de esquentar a barriga no forno. Com isso, foi a cozinha em novo status quem primeiro nasceu. Todas as invenções que facilitaram a vida da dona-de-casa, mesmo quando criadas por engenheiros homens, vieram para ser usufruídas, sim, pela mulher. Ela, independente e brilhante, jamais poderia ficar excluída enquanto preparava o jantar, inspirando os arquitetos a integrarem os ambientes. E, só depois da rotina deixar de ser massacrante e a cozinha ganhar status na casa (e a empregada pedir as contas), apenas aí o homem foi convencido a aderir. Agora, mais do que nunca, está frito: o tempo do galo bebendo uisquinho no sofá terminou.

Eu não acredito que os homens sejam altruístas a ponto de revolucionarem a cozinha para suas mulheres e, depois, em generosidade suprema, ajudar em casa. Com a máxima de que a dor ensina a gemer, bastou a esposa começar a trabalhar fora para o mercado perceber a oportunidade de negócios ‒ homem no fogão, só sendo mais fácil e mais bonito. Com isso, o processador de alimentos nasceu depois de um marido chorar com a cebola. O teflon depois de ele gastar as mãos lavando uma leiteira. O forno de microondas para ele poder acordar dez minutos mais tarde. Entre o ovo e a galinha, acho que o primeiro a nascer foi o pinto: um rapazola solteiro, morando sozinho, precisando se virar e ainda conquistar a namorada. Isso: a idéia de integrar a cozinha à sala foi do pinto!

3.11.08

Indicação para pêmio


Com alegria trago uma boa notícia aos leitores do Rufar dos Tambores: o blog foi indicado finalista do 1º Prêmio Gaúcho de Arte Eletrônica. Desde já, divido esta honra com você, leitor!