31.3.12

Conto contíguo

Dois a menos

Momento do tudo ou nada.
Ela disse tudo.

29.3.12

Câmbio

Número 466

Rubem Penz

Quem muito viaja está acostumado com casas de câmbio: lojas em que uma moeda é vendida ao preço de outra. Nessa relação de comércio, há moedas mais caras e outras com valor menor. Quando vamos para algum lugar diferente, é preciso estar com a moeda local, mas sem perder a noção de medida, pois nossos proventos não fazem câmbio. Aí o turista fica lá fazendo suas contas, para saber se determinado produto ou serviço está pela hora da morte ou barato demais.

Algo parecido ocorre em outros âmbitos. Esses dias um amigo disse que, ao fazer aniversário, recebera cerca de trezentos cumprimentos de amigos pela rede social. Número impressionante, maiúsculo, grandiloquente. No mesmo dia, ganhou uns cinco ou seis telefonemas. E não teve dúvida de que esses telefonemas valeram muito mais do que as três centenas de recados. Porém, um camarada apareceu no escritório de surpresa para simplesmente lhe dar um abraço – gesto solitário que valeu ainda mais do que os telefonemas. Tudo uma questão de câmbio.

Quer dizer, valores são muito relativos. Dependendo do lugar em que estivermos, no momento de fazer o câmbio afetivo, trezentos pode valer um, ou até menos do que um. O que não desmerece em nada aquele abraço virtual, ou o telefonema tão carinhoso. É só um problema de relação entre as moedas. Fossem trezentos amigos até o escritório abraçar o aniversariante, para ao menos igualar o feito, precisaríamos de umas noventa mil mensagens. E eu estaria diante de alguém muito, mas muitíssimo querido.

Ainda há os casos de moedas raras: ali, o preço não está no valor de face, mas em sua preciosidade ou afetividade. Numa hipótese tola, pois impossível, quantos recados de Facebook seriam necessários para empatar com o abraço de meu pai, já falecido? Asseguro que nem os recordes de seguidores das celebridades chegariam perto de tal valor, ao menos para mim. Como exemplo mais corriqueiro, os abraços dos filhos são muito valiosos. E, para receber o aconchego de alguém que amamos, dispensaríamos na troca centenas de ligações telefônicas.

Pode parecer que estou desvalorizando os sinceros e queridos cumprimentos que recebo no meu dia de nascimento, ou os que eu mesmo ofereço no cotidiano aos amigos aniversariantes das redes sociais. Mas não é nada disso. O valor muda apenas quando viajamos para o mundo real e passamos pela casa de câmbio. É preciso compreender que são moedas diferentes por natureza. Ou uma amizade real poderá ser conquistada tão somente com um clique no botão de aceito? Nunca. Há que investir mais, muito mais.

Arrisco uma tese em que o esquecimento real, vindo com um tardio pedido de desculpas, ao vivo ou por telefone, ainda vale mais do que a fria lembrança virtual. Mas aí os amigos de fé, aqueles que me conhecem de verdade, já desconfiam que eu possa estar advogando em causa própria. Afinal, sou campeão de lapsos em datas de aniversário.


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23.3.12

Adroaldo

Número 465

Rubem Penz

Era uma casa amarela, dois pisos, nenhuma identificação na fachada. Bem poderia ser uma residência particular, uma clínica, um escritório, um prostíbulo, um cassino clandestino. Mas não era nada disso. Ali funcionava um clube. Um clube secreto. Toda noite o portão de ferro art deco era destravado para entrarem, uma a uma, pessoas que falavam uma senha ao interfone.

A senha tinha uma particularidade: mudava todos os dias. Como era passada adiante, ninguém sabia ao certo. Certo, mesmo, é que o sistema funcionava, pois jamais entrara alguém que não deveria estar ali. Quando o sol desenhava o contorno do horizonte e os garçons começavam a empilhar as cadeiras sobre as mesas, olhos e ouvidos se dirigiam ao Adroaldo, o barman, responsável pela escolha da palavra chave:

         – Adroaldo, qual é a senha?

         – Albatroz.

Clóvis, de todos o mais detalhista, mantinha uma lista de todas as senhas desde a abertura do clube. Sobre ele pesava a obrigação de jamais deixar uma palavra se repetir. Mas Adroaldo era de uma originalidade infalível:

         – Adroaldo, qual é a senha?

         – Virabrequim.

Na ocasião em que Clóvis fora hospitalizado, Heleno tomou para si a incumbência e, dia após dia, anotava a senha inédita: cumeeira, miragem, fuzil, rubi, endométrio, joio, orvalho, quibe, cedilha...

Um mistério, a habilidade de Adroaldo: senhas sempre fáceis de guardar e difíceis de serem adivinhadas. Alguns malandros, percebendo a dinâmica, até tentavam: alface, cizânia, braile, redondilha. Ninguém jamais acertou. Na madrugada, vinha Adroaldo: Pipa. Mas de vinho ou papagaio? – alguém indaga. O barman nunca respondia. O caso dele era com a senha, não com significados ou sinônimos.

Até o dia em que Adroaldo não apareceu no trabalho. Falecera. Mal súbito. Deixara como último legado a irônica e macabra senha da noite: miocárdio. No clube, muitos brindes em sua memória. Saudade, melancolia. E, na promessa de manhã, quando as cadeiras começaram a subir sobre as mesas, ninguém sabia para quem dirigir o olhar, de quem ouvir a próxima senha.

Miguelão, que atendera no bar, tomou a tarefa para si:

 – Aquarela!

Alguns segundos depois, Heleno vetou: aquarela fora a senha em 17 de outubro de 1975. Felpa, disse Miguelão. Senha de 1982, em 3 de agosto. Sabonete! Essa apareceu em 1979, 2 de abril. Ilíaco? 7 de fevereiro de 1969. Pluma? Recente: 2002, 11 de março. Em mais de quarenta anos, Adroaldo não repetira uma só senha. Naquela amanhecer, Miguelão tentou vinte e três delas sem êxito.

         – Senha! – gritou Fabinho, desesperado.

Finalmente. Jamais o termo senha havia servido de senha. Porém, na noite seguinte, sete estranhos acertaram a palavra, algo que a obviedade faria prever, mas o desespero deixou que acontecesse.

Heleno chegou a propor a troca de sistema, quem sabe com controle biométrico. Mas o clube havia se tornado folclórico justamente pela inexpugnável sequência de palavras chave. Além do mais, Clóvis, de sua clínica de saúde, mandara um torpedo: se mudassem o sistema, ele fugiria apenas para incendiar a casa.

Faz três meses que a casa amarela está com suas janelas e seu portão de ferro fechados. O mato cresce no pequeno jardim. Dentro, móveis estão brancos de pó. O piano desafina. Jaz uma história. Também sete corpos ocultos pelo tabuado.


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16.3.12

Revisor de plantão

Número 464

Rubem Penz

Há uma regra não escrita, mas que parece ter validade mundial ontem, hoje e sempre: quando o leitor esbarra em um erro ortográfico ou de gramática, o livro inteiro desce um degrau no conceito. Milhares de palavras íntegras e orações perfeitas são maculadas por um deslize. Ou, o que é pior: as ideias expostas, a história contada, as teses defendidas sofrem um abalo sísmico. Quando a compreensão é atingida pelo erro, vá lá, estamos diante de muitos graus na Escala Richter. Porém, na maioria acachapante dos casos, a falha passa despercebida por muita gente, e em nada afeta o conteúdo. O que minimiza o fato, mas não destrói a questão de que haverá desmerecimento.

Por isso sempre fui e sempre serei um fã incondicional dos revisores. Eles estão ali para garantir a saúde do texto oferecendo uma segunda opinião. Os brilhantes, e não são muitos, leem palavras, frases e parágrafos permanecendo vigilantes ao sentido. Manuseiam as vírgulas com a delicadeza de um ourives; notam os acentos como um maestro a escutar cada detalhe da orquestra; caçam falhas de digitação como a tricotadeira que não perde um só ponto. São atentos como o analista, seguros de que o discurso poderá trair o desejo do escritor (para o bem ou para o mal). Então, apontando a falha no ato, darão ao autor a rara oportunidade de pensar melhor antes de o livro ser impresso.

Sei que não é fácil receber o original de volta da revisão. É triste ver que poucas páginas escapam virgens – o que exige muita humildade no momento de aceitar e recusar as modificações sugeridas. A primeira reação é um enorme "não é possível, eu redijo bem, o revisor quer escrever por mim". Depois, aos poucos, domamos a fera e baixamos a crista, reconhecendo que a vaidade sempre foi péssima conselheira. Quando redator publicitário, eu implorava por revisão considerando o próprio autor o menos qualificado para o trabalho. Numa agência consegui que a coordenadora de produção lesse os textos, e muita dor de cabeça foi evitada. Desconfie dos que odeiam revisores: se achar infalível é a primeira de muitas outras falhas. E a maior delas.

Pena que na vida não tenhamos essa figura tão útil a marcar em vermelho nossas palavras e atitudes. Para muitos, revisor de plantão seria luxo. Para outros, porém, necessidade. O problema é que o revisor acabaria mal visto ou mal interpretado justamente por quem mais precisa.

 

         – Olha lá que linda! Vou chegar nela e dizer "Que tal darmos as mãos para mim dançar contigo"?

         – O certo seria "eu dançar contigo".

         – Eu dançar com você? Jamais!

         – Você não entendeu: é "eu" com ela.

         – Nada disso! Vi primeiro. Além do mais, sou o autor da cantada. Você, no máximo, revisa.

         – Tá bom, tá bom. Vou sugerir outra forma, já que você não alcançou: que tal "dançarmos juntos".

         – Ih, olha aí o cara! Só pode estar de brincadeira. Homenagem atroz, só comigo e duas mulheres, compreendeu?

         – Ménage à trois. É francês.

         – Só podia ser mesmo: coisa de fresco. Levo outro homem para cama e, quando vejo, a vaca torce o rabo.

         – É a porca quem torce o rabo. A vaca vai para o brejo.

         – Bem isso. Olha lá: outro cara pegou a menina na frente de eu.

         – Na minha frente.

         – Que seja, então, na frente de nós dois. Ei, espera, aonde você vai?

         – "Mim" precisa de um uísque...


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9.3.12

Abandonando as franjas

Número 463
Rubem Penz
Cada vez que meu amigo Guilherme penteia os fios de cabelo que me restam logo acima da testa em direção aos olhos para cortá-los, o que vejo no espelho do salão é o fiel retrato da devastação. Sobraram-me não mais do que resquícios de uma floresta densa, hoje transformada em pasto ralo. Escombros de uma civilização. Clareira. Cidade fantasma. Por isso, quando afirmo que nada pode ser mais ridículo do que um homem barbado usando franja, pode soar como inveja. Mas é o que passa pela minha cabeça.
Um dos poucos benefícios da calvície nos homens é o de agregar à nossa face um ar inteligente. É um sinal de experiência, maturidade, plenitude. Ficaram para trás os arroubos juvenis com suas cristas elevadas em forma de topete ou moicano, cedendo lugar à ponderação das entradas. O crescimento da testa nos aproxima visualmente de homens como Villa Lobos, Mário Lago, Vinícius de Morais, Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo... Poucos de nós alcançarão o brilhantismo dos citados, mas a calva ajuda a compor o quadro de aproximação. Mulheres se penteiam, maquiam-se e se vestem para parecerem poderosas e atraentes. Nós, perdemos o cabelo.
Nada contra os rapazes que mantém a vasta crina pela vida afora. Ao contrário: ganham com isso um benefício de grande valor na atualidade – prolongam a juventude. Especialmente se forem figuras públicas, como atores, intérpretes, músicos, jornalistas... Eu mesmo escolheria permanecer por mais tempo com o perfil dos trinta anos, se tivesse a chance. Para esses abençoados, em maioria, a sapiência da idade chega na forma de têmporas brancas, neve que marca o fim de um verão de ingenuidades.
Arriscando uma antropologia de botequim, imagino que a valorização estética e simbólica do amadurecimento masculino, expresso em calvície, por exemplo, tem relação com o fato de ele ter sobrevivido por mais tempo, mostrando-se um forte. Em tempos ancestrais, homens morriam feito moscas por doenças, predadores e guerras. Aqueles que permaneciam vivos não apenas ganhavam sabedoria, como deixavam mais descendentes. Galgavam o respeito dos pares e, assim, a simpatia das mulheres. Competiam em pé de igualdade, apesar de que com armas diferentes, com os machos jovens e viris.
E onde entra a franja nessa história? Simples: tente imaginar um penteadinho Príncipe Valente nos homens citados nessa crônica. Ou, vá além: usando as ferramentas que a computação gráfica permite, coloque simpáticas franjinhas em respeitáveis baluartes da História. Talvez combine apenas nos Césares Romanos, mas deu no que deu. Porém, não precisamos ir tão longe, pois tal recurso usado na foto de nosso avô ou pai traz o mesmo e trágico resultado. O fato é que a maioria avassaladora dos homens fica muito ridícula com esse modelo de penteado.
Minha teoria é a de que esconder a testa infantiliza o homem, mais do que deixá-lo jovem. É como se virasse o fio, com o perdão do trocadilho: ao invés de parecer viril, pareceria imaturo, verde, incapaz. Ingênuo, bobo, covarde. Samurais e outros guerreiros, mesmo ostentando cabelos longos, penteiam-se de modo a revelar a testa – tanto melhor quanto maiores forem suas entradas. Fazer crescer a fronte, além de inteligência, simboliza valentia. Índios chegam a raspar a cabeça, sinal de que algum valor a calvície deve agregar.
Tudo isso passa pela minha cabeça na cadeira do barbeiro e alivia a dor da perda. Também serve de consolo ao ver descer para o corte, valentes e solitários, dez ou vinte fios de cabelo, quantidade bisonha em comparação com outrora. Sim, sim, fui abandonado pela franja. Mas já havia deixado dela antes, ainda na adolescência. Tal penteado só me deixaria mal na foto.


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2.3.12

ISO é a vida

Número 462

Rubem Penz

É uma manhã comum de terça-feira cumprida com rotineira eficiência naquela empresa multinacional. Na ampla sala do décimo oitavo andar, o horizonte inunda as paredes de vidro com suas ondas de luz. Entre os profissionais, dois estão diante de uma mesma tela, um de pé, atentos a um projeto recém esboçado e confabulando em tom diminuto. O restante do pessoal permanece ensimesmado em suas mesas, alguns com fones de ouvidos, outros em silêncio. Como uma lufada de inexplicável vento, o diretor administrativo entra no recinto servindo de precursor ao diretor superintendente, três passos atrás – chegara de surpresa na cidade. Ele traz uma notícia que não deveria circular nem mesmo na intranet:

         – A canoa virou.

Todos permanecem em seus lugares quase como paralisados. Celso, aquele que se encontrava de pé, estanca no meio da mascada do chiclete com a boca aberta – eis uma imagem que poderia definir a situação. Porém, em dado momento, numa coreografia tão perfeita que dispensa ensaios, mil olhos apontam para Antônio Castro. Engenheiro Antônio Castro, o líder do programa. O maestro. Quem reunira, um a um, todos os que ali estavam. Dele viria uma posição. Não se furtou:

         – Porque deixaram ela virar.

Mas o diretor superintendente viera calçado. Apoia sua pasta sobre uma das mesas, abre e dali saca um calhamaço de relatórios. Desde que passara a ser uma exigência para seguir competindo em escala global – isto é, há muito tempo – a empresa investira pesado em complexos sistemas de normas. A cada ano, novos processos, numa escalada que beirava o engessamento. Todos haveriam de nadar corredeira acima, nem que parecesse um trabalho de Sísifo, para estar em dia com tais normas. Erguendo os papéis como se contivessem os Mandamentos, o homem acusa:

         – Foi por causa da Maria.

Maria Eulália. Miss Engenharia 1996. Porte de destaque de escola de samba na pele de deusa nórdica. Pós-doutora. Abandonara promissora carreira acadêmica para atender ao chamado sedutor de um salário acrescido de alguns zeros à direita. As tantas normas que foram incapazes de evitar o afundamento da canoa serviram, tão somente, para denunciar as vacilantes resoluções da engenheira acima de qualquer suspeita. Ela é, agora, o centro das atenções. Terá muitas explicações pela frente, pois a acusação é forte:

         – Ela não soube remar.

No fim da sala, quase na fronteira com as portas dos sanitários, está Gustavo, engenheiro trainee, ocupando o posto há poucos meses. Ele não tem a mais remota responsabilidade pelo que acontecera com a canoa, pois foi o último dali a subir no barco. Em suas mãos estivera pouco mais de uma mísera felpa de tal remo. Por isso, não parece temer a lógica empresarial que costuma transferir as responsabilidades para a base da pirâmide de comando, sacrificando o lambari e poupando os tubarões. É apenas um doce edipiano perdido em ilusões quase pueris. No afã de conquistar o coração de Maria Eulália, é refém do traiçoeiro canto da sereia. Apenas sonha:

"Se eu fosse um peixinho

E soubesse nadar

Eu tirava a Maria

Lá do fundo do mar"

Sim, os engenheiros também amam. No fundo, Gustavo, peixe pequeno, sem saber, antecipa seu destino.


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