26.8.09

Número 332

EM MEIO À MEIA

Recém passou meu quadragésimo quinto aniversário e tudo parece meio estranho... O problema é a desconfiança de eu estar no ápice, no auge, na flor da meia-idade. Aliás, eu e toda a minha geração. Não que isso me deixe muito preocupado. Digamos assim: estou apenas meio preocupado. Por isso, especulando as implicações que isso traz.

Por exemplo, o que seria a meia-idade, senão aquele momento da vida em que ficamos meio cegos atrás de indefectíveis óculos de leitura, e mesmo assim enxergamos longe barbaridade? Ficamos meio surdos (ainda mais os músicos, especialmente bateristas), mas compreendemos até o que não está sendo dito? E meio mudos para sermos ainda mais eloquentes com nosso providencial silêncio? Ah, pois é...

Outro fenômeno meio esquisito é que, bem na meia-idade, olhamos para os filhos pensando que eles estão meio parecidos conosco. Eles, por outro lado, nos consideram meio parecidos como os avós, que, já tendo passado pela meia-idade, sempre acham tudo completamente diferente. Aí vemos as duas distantes gerações se entendendo bem, e nós colocados meio de lado nessa relação!

Não obstante o fato de termos muito, ou quase nada termos, na meia-idade o que mais acontece é grande valorização de outros termos: os meio-termos. Isto é, não estamos contagiados nem pelos arroubos apaixonados e inconsequentes da juventude, nem pela estagnação aposentada dos que se deixaram envelhecer demais. Quem está na meia-idade, para o bem de todos e felicidade geral da nação, vai mais devagar com o andor, pois ele, e o mundo, pesam em suas costas.

Este período da vida deixa alguns de nós meio gordinhos, outros meio carecas, meio grisalhos, meio doloridos. É um pouco pior quando tudo isso acontece ao mesmo tempo... Sei de amigos que, achando-se meio acabados, chegam a ficar meio deprimidos. Bobagem! Basta meia hora de caminhada, meio prato de comida, meia taça de vinho e meia-rédea no ritmo, de preferência na companhia da cara-metade. Conseguindo isso, já é meio caminho andado.

É também a meia-idade uma boa ocasião para dar-se meia-volta e alterar os rumos da vida enquanto se tem força, vontade e, quem sabe, um pé-de-meia. Que tal dar vazão ao talento deixado sempre meio de lado? Ou ao pobre sonho, esquecido meia hora depois do sol nascer? Quem sabe descer o meio-fio e pegar a estrada? Aproveitar tanta experiência adquirida para encontrar novos meios de realização pessoal – algo já pensado, no mínimo, meia dúzia de vezes? Como diria um presidente, sim, nós podemos!

No coração da meia-idade vale a pena aproveitar o ar aprazível da meia-estação para namorar um pouco. Caprichar na meia-calça, no sutiã meia-taça, nas palavras ditas a meia-voz e no ambiente bucólico da meia-luz. Lamber meias-palavras em beijos mais quentes e prolongados. Mas, de preferência, antes da meia-noite, pois varar manhãs inteiras na cama, com o passar do tempo, vai ficando cada vez mais difícil.

Por fim, caso você tenha se enquadrado na metade dessas ponderações, parabéns: está sobrevivendo aos atropelos da meia-idade, o que nos faz meio parecidos. Contudo, se espera algum tipo de conselho para o fechamento da crônica, com a solução para os males que nos afligem, tenho más notícias: me faltam meios para tanto. Além do mais, para mim, auto-ajuda é literatura de meia-tigela.

20.8.09

Número 331

THE E-BOOK IS ON THE TABLE

Semana passada, enquanto visitávamos a nova morada de uma querida amiga, ao comentarmos as soluções arquitetônicas para mobiliar o quarto de seu filho, mencionamos uma mesa que serve atualmente de escrivaninha para nossa caçula. É um pequeno móvel de aço, desmontável, típico dos anos oitenta. Salvo engano, foi comprado na Tok & Stok – loja reconhecida por sua aposta em design contemporâneo. O interessante na conversa foi a constatação de que a mesa fora adquirida por minha esposa, ainda solteira, para acomodar o computador que à época serviria para a escritura de sua dissertação de Mestrado: um TK-3000.

Os mais velhos certamente recordam o enorme salto qualitativo que o computador pessoal (PC) empreendeu para compor documentos longos como uma dissertação, algo difícil de ser avaliado pelas gerações atuais. A possibilidade de digitar, corrigir e salvar um arquivo em disquete era uma absoluta novidade naquele instante, mesmo contrastando com a atual precariedade do equipamento (o TK-3000 continha um microprocessador de 1 MHz e 8 bits). Nos tempos da reserva de mercado em informática, era o que tínhamos ao alcance. Tanto que sua tela verde fez história, e ele se tornou um dos maiores sucessos de vendas da Microdigital Eletrônica, marca importante no início da Era Digital no Brasil.

Lá se foram duas décadas e, como podem adivinhar, o TK-3000 virou peça de museu. Nem com boa vontade seria possível continuarmos usando este PC, pois os disquetes compatíveis não existem mais no mercado. Porém, desde aquele tempo e até hoje, a pequena mesa desmontável jamais deixou de ter ótima serventia para a família. Esteve compondo ambientes tanto na nossa sala de estar como na de amigos, até a chegada do nosso primogênito. Então, pela facilidade de regular sua altura, virou escrivaninha infantil. Logo depois de um up-grade visual, passando do preto fosco para a tonalidade branca, trocou de dormitório, mantendo igual finalidade. Com seus dias de escrivaninha contados (os filhos e suas necessidades crescem), não creio que faltará bom uso para uma prática mesa de aço em nossa casa.

Se em tecnologia digital vinte anos são uma eternidade, para móveis a regra é outra. Herdamos, por exemplo, mesa e cadeiras de jantar de minha infância, fabricadas na década de cinquenta do século passado (em processo de restauração). Outra mesa da mesma época, e que mobiliava a casa da minha avó materna, está aqui na biblioteca. Ao lado da cama, uma charmosa escrivaninha que pertenceu ao meu sogro compõe a cabeceira, sustentando o laptop vez que outra. Isso sem mencionar outros móveis como cristaleiras, armários e mesas de apoio em estado de novo, avós da mesa de aço, com data de validade absolutamente em aberto, espalhados em todos os ambientes de nossa casa.

Isso me fez recordar a recente polêmica em torno do dito “fim do livro”. O suporte papel, segundo especialistas, será gradativamente abandonado em favor de e-books, telas nas quais o conteúdo será carregado a preços módicos conforme a vontade do freguês. Assim como já acontece com a música, a literatura será desmaterializada, sobrevivendo no etéreo mundo da informação digital. E, na corrida incessante e frenética do mercado, alguns revolucionários mecanismos de ler fora do papel, muito festejados agora, serão iguais ao TK-3000 em cinco ou seis anos. Há quem defenda a tese de que as mudanças de suporte pouco afetarão a obra literária. Algo me faz desconfiar dessa impressão.

Tudo bem: posso apenas estar sendo mais uma vítima da vertigem na escalada digital. Mas, que fazer se cada vez mais me agrada a idéia de materialidade... Quero objetos que pesem na mão, agradem ao tato, sejam frios ou quentes. Tenham, também, cheiro e marcas de história, e que necessitem de boa dose de zelo – além do habitual cuidado com a tecla delete. Como não interfiro em rumos que parecem já traçados – até prova em contrário – meu ato de resistência será acomodar o mp3 (4, 5?) e o e-book sobre sólidas mesas, esperando que o aço e a madeira confiram a estes transitórios objetos um mínimo de perenidade. Míseros bits de ilusão.

14.8.09

Número 330

OS MORCEGOS DO ANDAR DE CIMA

Temos em casa um telhado proeminente, planejado para ocupar os altos da residência com a biblioteca. Como moramos no Rio Grande do Sul, terra que acomoda temperaturas desde siberianas até caribenhas durante as mudanças de estação, deixamos um generoso espaço entre as telhas e o forro, com estratégicas entradas de ar. Isso atenua um pouco o elevado pé direito da sala (bom para o inverno) e promove uma refrigeração para tornar suportáveis os dias de sol escaldante. Porém, tal generosidade foi muito bem recebida pelos morcegos, animais capazes de penetrar por risíveis frestas entre as telhas. Em pouco tempo, habitavam as dezenas (centenas?) sobre nossos livros.

Enquanto somavam uns poucos, os morcegos eram até suportáveis – eles lá, nós aqui. O problema começou a se tornar grave com a proliferação: ruídos, odor, revoadas ao anoitecer, invasões. Como tenho a audição diminuída nas frequências agudas, considerava exageradas as queixas sobre seus grunhidos. Até o momento em que se somaram, multiplicaram e tornaram-se evidentes até para mim. O cheiro dos excrementos, também, começou a ultrapassar a barreira do tolerável. Sem falar no fato de vermos nossa sacada se transformar em intenso aeroporto ao por do sol, com partidas de aeronaves a cada dez segundos. Por duas vezes, também, tivemos morcegos dentro de casa. E não é tão fácil tirá-los, com a uma aranha, sapo ou lagartixa (para ficar nos tradicionais ingredientes das poções de bruxas). Providências já, pedia a esposa.

Fui para a internet e descobri aparelhos que, ligados às tomadas, emitiam ruídos inaudíveis aos humanos e desagradáveis para morcegos. Compramos logo dois, na esperança de sumirem os bichos. Pura ilusão... Ou fomos iludidos pelo fabricante, ou nossos morcegos se habituaram ao desconforto sonoro. Então, chamei um empreiteiro: seria possível lacrar o telhado? Talvez sim, mas sairia muito caro e com tênue a garantia de sucesso – os morcegos são especialistas em procurar novas fendas. Por fim, falei com um biólogo: posso colocar veneno no telhado? Não: os morcegos são importantíssimos na cadeia alimentar e, assim, estão protegidos pela legislação ambiental.

Quando tudo parecia perdido, uma oportuna reportagem de jornal jogou uma luz sobre o tema. Morcegos precisam se abrigar em ambientes sombrios durante o dia, para dormir. Indicava, então, intercalar algumas telhas transparentes com o objetivo de tornar iluminado o espaço acima do forro. Como em um passe de mágica, sem grandes investimentos, os morcegos nos deixaram em paz. A lógica, de tão simples, me fez estupefato: como não pensei nisso antes?

Livre dos morcegos reais, leio sobre a política nacional, sobre nossos poderes, nossas estatais. O Brasil é um enorme telhado crivado de fendas, algumas até protegidas por lei. Somos um criadouro de morcegos, alimentando-se de nosso sangue à noite e protegidos na escuridão durante o dia. Finda a ditadura, a imprensa passou a emitir sons que, ao menos na teoria, deveriam espantar os morcegos. Mas eles não dão bola. Muitos cidadãos perguntam se não é possível reconstruir o Brasil sem frestas, blindado contra tais morcegos. Impossível, é a resposta. Em nenhum lugar no mundo existe telhado assim. Os radicais adorariam envenenar-lhes a pizza, e só não o fazem por ser ilegal.

Agora que a quantidade, os excrementos, os danos provocados pelos morcegos já alcançam o nível do insuportável; sabedores que somos da natureza dessa espécie – que precisa necessariamente habitar a escuridão –; livres para pensar e fazer nossas escolhas, fica a pergunta: o que falta para se fazer o óbvio? Contra todos os morcegos, para que eles não existam ao nosso redor, como bem apregoa Cláudio Weber Abramo, basta transparência e luz.

6.8.09

Número 329

PRECE

Aos meus amigos pais,
dedicados e amorosos,
com grande admiração.


Pai nosso que estás trabalhando – muitas vezes distante, mas com o pensamento na família –; que estás aposentado depois de uma vida inteira de dedicação incansável; que estás convalescente... Pai nosso que já te encontras no céu: relembrado, respeitado, reconhecido seja o teu nome.

Pai: venha a nós o teu legado, teu exemplo, tua história. De preferência em jantares com a família, festejando a vitória do clube, no carinhoso beijo de boa noite. Que não nos falte tempo para falar da tua infância, para recebermos teus conselhos, para que tenhamos a tua vida como bom exemplo a seguir. Que alcances a idade de ver os netos e, sendo pai duas vezes, possas rolar no chão arrancando risadas das crianças – soberana graça.

Pai: seja feita a tua vontade, tanto em casa quanto em qualquer lugar do mundo. Afinal, grande parcela de nossa crise moral tem nascido dentro do lar, justamente com o enfraquecimento da autoridade paterna. Não temas o fardo do comando, pai: prepara teus filhos para que enfrentem as frustrações como sendo inerentes ao processo de crescimento, e os insucessos com energia suficiente para darem a volta por cima. Dota os herdeiros com a consciência de que todos pagamos por nossos erros, cedo ou tarde. Faze-nos verdadeiros cidadãos.

Pai: o pão nosso de cada dia, fruto do teu suor, dá-nos hoje e sempre. Ele será nosso alimento para o corpo e para o espírito. Dará suporte para que cresçamos saudáveis e fortes, prontos para enfrentar os desafios do futuro. Pão este que terá mais valor tanto maior for o sacrifício em obtê-lo – momentos em que os pais passam privações em prol da família. Porém, jamais será por isso que ofertaremos menor reconhecimento àqueles que conquistaram a fartura, vigilantes para que os filhos não incorram em desperdício e soberba.

Pai: perdoa-nos de nossas ofensas. Elas são muitas vezes resultado do grande ímpeto juvenil, de teimosias infantis, de falta de amadurecimento. Quando souberes que estás com a razão, tem paciência e, diante de nossa ira, tem compaixão. Lembra-te do dia em que estavas com a nossa idade e nossa aparente segurança. Tem a grandeza de nos desculpar, na esperança de que tenhamos igual postura para, um dia, reconhecer nossas falhas.

Pai: proteje-nos das tentações. Proteje-nos das drogas fortalecendo nossa auto-estima e discernimento. Proteje-nos da criminalidade e seu sedutor, falso e danoso poder. Proteje-nos da violência ensinando o respeito ao próximo. Proteje-nos da ignorância valorizando a educação. Proteje-nos da cobiça e do individualismo mostrando o caminho da solidariedade. E, melhor, pai: faze tudo isso através do bom exemplo.

Pai: livra-nos do mal nos desejando o bem; nos ofertando o bem; nos indicando o caminho do bem. Que sejamos sempre bem-vindos em tua casa. Bem-quistos por teu coração. Bem interpretados em nossas intenções. Bem-aventurados ao seguir teus passos.

Filho: se você foi abençoado com um bom e justo pai, lembre-se dele todos os dias. Sua luz poderá ser o mais importante farol que o Pai lhe deu.

Amém.

Convite!

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