28.5.10

Número 371

O MELHOR INIMIGO

Neste momento, tudo é Copa do Mundo. Passamos pelas vitrines do shopping e o verde-amarelo predomina, bolas de futebol abundam, cartazes trazem o logotipo da Copa Sul-africana – a primeira naquele continente. Criam-se produtos temáticos de cama, mesa e banho; também álbuns, canetas, cadernos, porta-retratos etc. TVs são oferecidas e vendidas a rodo. E, por falar em vendas, os comerciais de qualquer produto nos remetem ao futebol, seja para ofertar canos hidráulicos, computadores, alimentos... Mas, principalmente, cerveja.

E foi assistindo as propagandas de cerveja que algo chamou minha atenção: os publicitários deixaram as mulheres gostosas um pouquinho no banco de reservas e escalaram um novo centro-avante. Seu nome, Argentina. Mais especificamente, a Seleção Argentina. Ou, quem sabe, a passional torcida do país vizinho. Em cima do lance me dou conta: ao escolhermos essa esquadra como nossa maior vítima (sim, os comerciais ridicularizam los hermanos), prestamos uma homenagem às avessas. Mais um dos tantos exemplos de uma relação de amor e ódio com a nação platina que, ainda agora – dia 25 de maio –, completou os duzentos anos de independência da Espanha.

A Argentina é, historicamente, o melhor inimigo do Brasil. Nascido e criado no extremo sul, vivo tal realidade de forma mais próxima. As fronteiras rio-grandenses com os demais países do Prata estavam conflagradas até quase ontem. Lutas fratricidas deixavam em campos opostos os gaúchos e os gauchos, cada um zelando pelos interesses econômicos de sua nação. Diz que o Terceiro Exército, na hora de simular uma guerra, avança na grande área Argentina pedalando feito Robinho. Teorias conspiratórias associam a construção de Itaipu com sua localização militarmente estratégica na tríplice fronteira. Sei lá...

Certo mesmo é que, durante muitos anos, os brasileiros se ressentiram de um inegável predomínio argentino na América do Sul: economia forte, cultura, educação e qualidade de vida superior ao gigantesco vizinho lusófono. Quando um europeu se referia a Buenos Aires como sendo nossa capital, morríamos por dentro. Porém, os últimos cinquenta anos foram cruéis com a Argentina. Governos populistas, para não dizer outras coisas, foram concomitantes com o avanço verde e amarelo. O Brasil está muito longe de ser uma nação equilibrada em termos de distribuição de riquezas, mas, ainda que tarde, assumiu de vez a dianteira na política e na economia latino-americana. Hoje, o estado de São Paulo, sozinho, já é mais do que a maioria dos países com os quais o Brasil faz fronteira. Isto já é goleada.

Voltando para o futebol, nada é mais saboroso para um brasileiro do que curtir uma vitória sobre a Argentina e, desconfio, vice-versa. E secar, então? Que delícia! Assim, uma criança já nasce com dois uniformes para idolatrar: um por amor, outro por aversão. Muito por aí, associar este prazer à cerveja nem chega a ser uma ideia brilhante. Mesmo assim, é como uma piada que não perde jamais a graça – seguimos tocando flauta e as cervejarias faturando. Parece Grenal, Flaflu, Bavi, Atletiba e os tantos embates clubísticos que inflamam nossos estádios.

O que ninguém fala é da ironia do destino: a forma aguerrida e passional que o técnico Dunga dita aos canarinhos nada mais é do que uma leitura gaúcha de como jogar bola – sistema consagrado nos gramados uruguaios e argentinos. E, ao elevarem para um patamar de deus o craque Maradona, ao apostarem as fichas na genialidade do Messi, nossos irmãos curvam-se diante do futebol arte, tradição na pátria do Rei Pelé. De tanto andarem juntos (mesmo que aos empurrões), veja só, Brasil e Argentina, esses melhores inimigos, confundiram as próprias pernas. Será pênalti?

20.5.10

Número 370

HOMENS DE A a Z

Por mais que se diga ou escreva, parece que o homem não consegue compreender a mulher em sua abrangência, nem ela a cândida simplicidade masculina. Desconfio que exista um firme e grandioso propósito para que seja mesmo assim. Assim mesmo, prossigo com empenho no encalço do entendimento mínimo, reconhecidamente tarefa de Sísifo. Quem sabe um dia chego lá? Um primeiro passo é tentar que elas, mais inteligentes, nos conheçam. Segue umas pistas:

A ‒ Amigos: temos e cultivamos, gerando despeito em algumas esposas. Amigas, também temos, mas aí é um pouco mais complexo.

B ‒ Bigode: real ou metafórico, todo homem tem o seu para honrar. Ou desonrar.

C ‒ Calvície: tema que, ironicamente, jamais abandona nossa cabeça.

D ‒ Dólares: nosso botox, nosso silicone, nosso esmalte, chapinha ou tintura. Beleza e juventude no melhor papel (moeda).

E ‒ Esporte: no Brasil, principalmente futebol. Nossa batalha civilizada. Nosso descarrego, assunto, válvula de escape. Tudo de bom!

F ‒ Força: o último baluarte da masculinidade. O cume e, ao mesmo tempo, a raiz da árvore. Medindo, usando ou abdicando, sejamos sempre fortes.

G ‒ Gol! Assim, só isso. E precisa algo mais?

H ‒ Herói: não importa a natureza da batalha, perseguimos tal epíteto.

I ‒ Infância: de onde jamais saímos. Também, ou por isso, para onde nunca conseguimos retornar.

J ‒ Janete: minha primeira professora. Outros homens podem ter a sua em outra letra, mas na mesma intenção.

K ‒ Kilt: precisa ser muito homem para vestir esse (ul) traje!

L ‒ Navalha, faca, espada, canivete: homem que é homem domina uma lâmina.

M ‒ Mulher: razão primeira de nossa existência. Nem por isso consensual.

N ‒ Nunca! Prerrogativa que nos cabe. Podem espernear.

O ‒ Óbvios: é quase sempre o que somos, raros momentos de exceção. Nem bom nem mau ‒ simples assim.

P ‒ Pênis: morram de inveja! (Obrigado, Freud!)

Q ‒ Queda: o melhor momento para se conhecer um homem.

R ‒ Riso: solto, livre, contagiante. De si, do outro, da vida. Rir é o que o bom homem faz até mesmo quando falta alternativa.

S ‒ Silêncio...

T ‒ Trabalho: como diz o poeta Gonzaga Jr., sem ele, se morre, se mata.

U ‒ Último (chope): a maior mentira já dita, ouvida e repetida em uma mesa de bar.

V ‒ Volkswagen, Ford, Chevrolet, Fiat, BMW, Mercedes Benz, Toyota, Renault, Honda etc.

X ‒ XX ou XY: uma das poucas coisas que definimos no momento mais importante da vida ‒ o da renovação.

Z ‒ Zangão: macho da abelha, grande e inútil. Nosso destino, caso não haja uma nova consciência diante do avanço das mulheres.

13.5.10

Número 369

BULLYING E OMISSÃO

Quando pensamos em bullying no ambiente escolar, lembramos daquele valentão, quase sempre traiçoeiro, que oprime seus pares na base da humilhação e do terror. Também surge na memória a figura do jovem diferente, seja ele meio esquisito ou fora de medida, vítima primordial das chamadas brincadeiras de mau gosto. Porém, para que exista e viceje essa prática sociopática, um terceiro personagem estará necessariamente implicado: o grupo. Afinal, desde a primeira piada até a metódica perseguição, a turma estará diante de uma escolha, ou seja, qual partido tomará.

A grande covardia do praticante de bullying é resultado de uma inteligência estratégica: atormentar aquele que menos se parece com a média para, com isso, auferir prestígio. Ou, como segunda opção, afligir quem se apresenta naturalmente retraído. Tímidos e exóticos tendem à baixa capacidade de articulação e, desta forma, podem permanecer isolados e frágeis diante das agressões recebidas. São losers, na acepção norte-americana do caso. A aposta do cruel, quase sempre de sucesso, é de que ninguém tomará o partido do perdedor, sob o risco de fazer parte da turma “errada”.

Basta entrar em uma sala de aula ‒ de qualquer faixa etária ou social ‒ para identificar a presença de liderança, positiva e negativa, entre os colegas. Via de duas mãos, ela nasce na postura de quem a exerce e, simultaneamente, na dos que a reconhecem (aceitam). Por isso, a imposição física e psicológica de um líder negativo jamais deve ser desprezada: ela existe e é resultado de uma eleição silenciosa. O quadro obedece à perversa lógica do favorecimento, na qual alguém se alia ao opressor para, em um primeiro momento, escapar incólume de sua ação predatória. Depois, parecer igualmente forte.

No momento em que há um líder positivo no grupo, tendo ele capacidade de competir em igualdade de condições com o valentão, a chance de bullying diminui, mas não some. O apelo da transgressão ao redor do período da adolescência, seu charme e culto, é muito poderoso. Quando somado à garantia de impunidade que predomina em nosso tempo, torna-se ainda maior. Então, os virtuosos assumem a postura de autopreservação, fazendo surgir o individualismo ‒ outra marca da atualidade. Sob o manto do resultado pessoal em primeiro lugar, do cada um por si e Deus por todos, o azar será de quem ficou para trás.

Tal quadro pessimista com relação ao bullying na escola tem uma única chance de ser superado, e ela repousa justamente nos ombros do invisível e disforme grupo. Se existir um conjunto de valores elevados na maior parte da turma, tais como solidariedade, respeito, amizade, bom caráter ‒ aquilo que trazemos de casa ‒, bastará a primeira voz insurgente para neutralizar os maus tratos, antes de eles se tornarem sistemáticos. Assim, até mesmo o bullying ao contrário (segregação do agressor contumaz) será prevenido. Para tanto, pais e professores devem passar às crianças e aos jovens uma lição fundamental: quem não deseja ser vítima, jamais se omita. Neste e em todos os casos, a omissão dos justos é a vitória do crime.

7.5.10

Número 368

AS QUATRO ESTAÇÕES

Mãe é primavera. Antes mesmo de ter filhos, ainda em botão, já é maternal. Perceba uma menina brincando, veja ali o quanto há de promessa. Melhor: persiga as ações cotidianas no mundo do faz de conta. Desde que nasceu minha filha, passei a compreender melhor tudo o que envolve o zelo por outra vida, iniciado quase em bebê, na fantasia. Mais tarde, jovens, mulheres reconhecem e exercitam o cio; planejam, acalentam, escolhem. Florescem e frutificam no tempo exato. Colorem e perfumam a família. Prometem e entregam a nós, homens, eternidade possível. Terá morrido incompleto aquele que não conviveu com a primavera de uma mulher.

Mãe também é verão. É calor, brincadeira, banho de água fresca. Mãe é melancia gelada, araçá colhido do pé, sumo e grão. Brisa do mar, orvalho da madrugada. Um sol enorme e cálido fornecendo luz, alimento e segurança; mãos dadas no final da tarde. Para um filho pequeno, o sorriso da mãe ofusca toda a concorrência – nada mais importa, nada falta, tudo é alegria. Deslizamos pelo corpo da mãe como quem desce em uma duna, rolando de contentamento, vibrando de prazer. Adormecemos em seus braços gozando conforto de rede. Amanhecemos com seu olhar.

Necessariamente, mãe é outono: educação, limites, cobranças. Ela deseja filhos fortes e compenetrados para enfrentar o rigor das estações mais severas. Mostra, então, seu lado árido. Toma para si a tarefa de ensinar que nesta vida nem tudo serão flores, nem sempre haverá cor, fartura e conforto. Desnuda a copa das árvores e, com isso, oferece novos horizontes. Entretanto, diligente, recolhe as folhas secas espalhadas pelo chão, restos de rusgas e repreensões. Livra-se (livra-nos?) das mágoas. Captura outras formas de beleza e guarda-se para uma longa espera.

Mãe, cedo ou tarde, torna-se inverno. Então será xale sobre os ombros, cobertas pesadas, neve nos cabelos. Mãe invernal é distância ditada por visitas espaçadas. Chá preto com limão e bolo de chocolate aos domingos. Foto com o branco do vestido esmaecido, emoldurado na parede. Mãe, em uma certa altura da vida, é mais recordação do que presença; mais conselho do que colo; mais lágrimas e nenhum consolo. É solidão. Porém, nem mesmo o silêncio mal disfarçado pelo vento e pela chuva transforma a mãe em desesperança. Sábia, intui o final do inverno. Ele que é apenas uma entre suas vastas estações. Há de cumprir seu ciclo.

Mãe almeja ser avó. Avó, outra vez será primavera: promessa e regozijo. Verde novo, flor e fruto colhido em pé de moleque. Chá de fraldas, sapatinhos de tricot. Avó também será verão, correria solta de netos para ser acompanhada apenas com o olhar – sustos ao tombarem. Calor em cada sorriso, beijo e abraço. A avó será outono quando houver a suspeita de menor negligência para com seus netos, suas caprichosas flores na maturidade. E o inverno de sua velhice será tão mais ameno, quanto mais pequenos sóis orbitarem ao redor de si. Avó é mãe em quatro simultâneas estações. É tudo, mas nunca o bastante. Mas, em se tratando de maternidade, quando e quanto bastante será?