27.8.10

Número 384

DE BAIXO PARA CIMA

Rubem Penz

Em termos de peças íntimas, a primeira lembrança que nos chega à mente é o par formado pela calcinha e sutiã. Não para menos: em shoppings, há muitas lojas especializadas em lingeries. E, naquelas de departamentos, um andar quase inteiro ostentando uma variedade fetichista e saborosa de modelos, cores e tamanhos. Falando pelos homens, por mais que nos agrade tamanha abundância e beleza (como abundância coube bem no contexto!), nós sempre olhamos este exagero das mulheres com desconfiança: seria para tanto?

Pois, por uma coincidência de calendário, poucos dias depois de eu comprar umas três ou quatro cuecas novas, ganhei outras seis. O resultado desta multiplicação fenomenal no closet foi o sumiço de qualquer vestígio de elástico frouxo ou cor desmaiada de minha intimidade. De um dia para o outro, vivo uma rotina carefree: estou sempre com a sensação de uma cueca recém tirada da gaveta... Da loja! Incomodado com isso ficava meu avô! Quase cogito a hipótese de depilar as axilas, só para abanar para as câmeras com aquele sorriso iluminado das moças nas propagandas de TV. Descontando o exagero retórico, se estiver em um hotel e disparar o alarme de incêndio no meio da madrugada, garanto que abandono o quarto cheio de estilo!

Parece mentira, mas andar pela rua com cuecas novas é quase como ter estudado o suficiente para uma prova: quem olha para ti, percebe uma carga extra de segurança em cada passo. O mirar é sereno; a fleuma, fácil. Pouco ou nada importa a realidade crua e fria de que, provavelmente, ninguém jamais saberá de onde nasce tanta confiança – não esqueçamos de que sou alguém comprometido. O que vale no momento é experimentar aquilo que os olhos não veem, mas as virilhas sentem. É como estar com a arma engatilhada, o jantar na mesa, o carro engatado, a resposta na ponta da língua. Totalmente em dia!

Falando em tese (a cada linha dou mais corda para o enforcamento...), estar despido das calças, mesmo nos momentos em que isso é planejado, esperado, desejado até, sempre é momento de reconhecida tensão. Seria muita ingenuidade masculina desprezar a evidente valorização das nossas roupas de baixo por parte das mulheres. Mesmo no lusco-fusco ou no vuco-vuco, sob a diáfana luz do abajur cor de carne (Ritchie vive!), no relance de um olhar furtivo para a janela do vizinho, as fêmeas da espécie são capazes de condenar um homem ao lixo erótico-afetivo no caso de ele estar descuidado. Vivemos dias de BBB: vacilou e a (má) fama se espalha. Um pouco mais de barriga ou menos de cabelo é contingência biológica. Já cueca furada, ah não!, um relaxamento imperdoável.

Restaria, ainda, a última confissão antes de concluir – como se já não estivesse fazendo uma exposição suficiente de minha intimidade... As seis cuecas foram presente de mamãe. Pior: antes de ela comprar, ligou-me advertindo que, segundo o balconista, peças íntimas não podem ser trocadas. Por isso, queria saber se eu tinha certeza total e absoluta de que usava tamanho P, como lhe dissera. Olhos de mãe são tão otimistas... Meu porte físico fica bastante claro para qualquer um, mesmo nas roupas de cima. Não seria razoável pretender desmenti-lo justo nas roupas de baixo. No fundo, estaria enganando a quem?


20.8.10

Número 383

RECALL
Rubem Penz

Do CEO, para todos:

Comunicado relevante,

1. Em virtude do enorme sucesso de nosso produto Vida Inteligente, hoje espalhado em cada um dos quatro cantos do planeta;

2. Na certeza de ele ser top de linha e motivo de júbilo para nosso departamento de Criação;

3. Em respeito aos muitos êxitos angariados graças à atuação de Vida Inteligente ao longo dos séculos e séculos amém;

4. Reconhecendo que não há planos para um substituto semelhante no curto e médio prazo, ou mesmo fabricante concorrente;

Noticiamos o início de um inadiável procedimento de recall, particularmente indicado aos modelos que saíram da fábrica até o final do Século XX.

Nossos laboratórios constataram um gravíssimo e recorrente problema na peça denominada Consciência, que vem apresentando muitos defeitos nas seguintes situações de uso:

1. Diante de lucro abusivo. Defeito: primeiro, desliga-se por critérios escusos. Depois, parece se apagar de vez – mesmo quando acionada pela coletividade, a Consciência jamais responde outra vez.

2. Diante do poder. Defeito: trabalha de modo variante e em grandeza inversamente proporcional: quanto mais poder, menos Consciência; quanto menos poder, mais Consciência. E de nada adianta toda Consciência do mundo sem nenhum poder.

3. Diante da miséria. Duplo defeito: se a miséria é do outro, a Consciência não dispara a esperada solidariedade. No máximo tem alcançado níveis mínimos – insuficientes – de compaixão. Quando é o portador de Vida Inteligente que se encontra em situação de miséria, a Consciência quebra em forma de ponta, ferindo quem estiver por perto.

4. Diante da Natureza. Defeito: a Consciência não lê as prioridades de longo prazo do meio ambiente, comandando ações contrárias à preservação da espécie, todas elas no âmbito do conforto e menor esforço.

Além disso, testes nas bancadas dos direitos e dos deveres estão apresentando leituras antagônicas, claro sinal de desequilíbrio: em direitos, a Consciência gera reclamatórias e protestos com e sem fundamento. Na plataforma dos deveres, liga-se e se desliga seguindo o comando da conveniência, o qual não foi projetado para melhor cumprir essa tarefa.

Por tudo acima exposto, caso você tenha nascido no Século XX, perca uns minutos do seu valioso dia encaminhando sua Consciência para um profundo exame e, quem sabe, substituição gratuita. Não precisa, necessariamente, dirigir-se até a oficina autorizada – item optativo no certificado de garantia. Basta fechar os olhos e ficar em silêncio por alguns instantes, pensando na vida.

Contando com a adesão de todos, muito obrigado.

PS: quem nasceu no Século XXI pode muito bem estar com os mesmos defeitos de Consciência, só que ainda escondidos pela imaturidade. Em poucos anos avaliaremos a necessidade de outro recall.

 



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13.8.10

Número 382

DEUS E O DIABO NA SALA DE ESTAR

Ela jamais pensara em contratar um profissional desse tipo, mas temia ficar mal falada entre as amigas – em breve seria a única a não recorrer aos serviços de um deles. Cercou-se de mil recomendações sobre Gustavo: colocar alguém para dentro de casa, nos dias de hoje, não deveria ser algo feito sem muitas precauções.

Nervosa, porém decidida, esperava sua chegada para as dez da manhã. Enquanto isso, pipocou de peça em peça da casa – consultou e-mails no escritório, fez uma nota na lista de supermercado grudada na geladeira, correu até o banheiro para ver se a toalha do júnior estava estendida, foi ao quarto para ligar ao marceneiro e lembrá-lo que havia desmarcado a visita de hoje (Deus nos livre!). Por fim, acabou voltando para o computador... Minutos eternos!

Gustavo chegou britânico. Alto, forte e, mais do que tudo, sorridente como homem em comercial de carro esportivo. Disse que conhecia o prédio, pois atendera alguém durante o verão passado inteiro. Desde os meados de outubro, na verdade. Ela não queria detalhes. Bateu palminhas como quem diz e daí, o que fazemos primeiro, mas foi contida em seu ímpeto por um olhar mais sério: combinações prévias antecederiam qualquer movimento da parte deles dois – partindo do pressuposto que seriam apenas eles, senão o preço mudaria, é claro.

— Primeiro: onde a senhora quer?

— Senhora não. Por favor, use você!

— Sim, melhor: onde você quer?

— Como assim, onde? – parecia morrer de tão nervosa.

O rapaz respondeu que era polivalente. Valia mais o conforto e ela sentir-se bem. Uma cliente, por exemplo, escolhera a cozinha. Outras, menos inibidas, pediam que fossem para a varanda. Por ele, tudo bem.

— Aqui na sala, pode ser? – ela perguntou meio sem graça.

— Ótimo! Será com música?

A dona da casa pensou por um segundo, mas correu em responder que não, ou sim se ficar estranho do outro jeito. O mais importante, pensava, era ficar livre dos detalhes das outras, que ele soltava sem o menor pudor. No futuro, falaria dela, também? Ao menos não citava nomes... Enquanto ele tirava a jaqueta e as calças, ela tomou coragem:

— Desculpe a ansiedade: podemos começar agora, não é? Eu estou pronta desde as oito e meia!

— Ainda falta o mais importante: vamos fazer falando ou em silêncio?

— Qual a diferença? — perguntou desculpando-se, era sua primeira vez.

— Bom, falando eu digo qual a posição, o que faremos, como faremos, proponho variações, dito o ritmo, encorajo... Tudo aquilo, sabe?

— Sei, sim, claro. Parece ótimo. Mas, e em silêncio?

— Ah, gosto mais! Mas precisa de olho no olho, confiança, sensibilidade, toque. Eu começo e a se... Digo, você me segue. Eu troco você troca. Eu acelero...

— ... e eu quero assim, e quero agora! – puxando o homem pelo braço.

Normélia tinha razão: Gustavo não era um personal. O diabo era deus!

 



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5.8.10

Número 381

O CRAVO E A ROSA

Diz a cantiga popular que o cravo brigou com a rosa debaixo de uma sacada. E, como acontece quando dois amantes digladiam, o cravo saiu ferido e a pobre rosa despedaçada. No segundo verso, o cravo ficou doente e, condoída, rosa foi visitar. O cravo teve um desmaio e a rosa se pôs a chorar. Pura tragédia shakespeareana! Flores significando juventude, doenças aludindo a impossibilidade do “felizes para sempre”, temperada por tardio arrependimento pela desavença. Perfeição! Mas há detalhes sórdidos que permeiam essa história.

Fontes bem adubadas me confidenciaram que o pivô da briga entre o cravo e a rosa foi o sedutor gerânio. Begônia, amiga invejosa dos namorados ‒ e que não via um cravo fazia horas ‒, dissipou pelas patas de uma abelha o boato de que gerânio convidara rosa para entrelaçarem raízes atrás do xaxim das orquídeas. Cravo ficou pistilo da vida e foi tomar satisfações com sua querida. Quanto mais ele a acusava, mais murcha ficava a pobre flor. Teria morrido seca se não fosse socorrida por petúnia, a petulante. Esta, que não era exatamente flor que se cheirasse, ao menos tinha uma qualidade: defendia as mulheres de modo incondicional. Ainda mais uma corola como a rosa.

Foi quando o jogo começou a virar: petúnia resgatou uma desconfiança antiga, a qual implicava cravo em um suspeitíssimo brinquedo de bem-me-quer e mal-me-quer com a margarida, lá atrás da sirigaita samambaia. Cravo ficou branco. Porém, como todo homem com culpa no cartório, defendeu-se acusando: essa história teria sido criada pela maria-sem-vergonha, depois de eles terem rompido seu conturbado relacionamento. Cravo queria saber como flores de buquê tão refinado poderiam dar ouvidos àquela florzinha desqualificada e rampeira? A resposta de petúnia não deixou seixo sobre seixo: só poderia falar mal da maria-sem-vergonha quem jamais tivesse namorado com ela. Isto é, não sobrou ninguém... Até os inços se entreolharam.

O caule engrossou de vez no momento em que o girassol confirmou ter visto cravo rumando para trás da samambaia. Mas nada falara antes porque, ao girar, ficou de costas, e não soube o que teria acontecido lá. Temia, enfim, levantar falso testemunho. Logo, cravo saiu ferido em sua dignidade. E rosa, vermelha de vergonha, ficou despedaçada de decepção... Begônia, a falsa, enquanto consolava a amiga rosa, olhava com excitação para aquelas folhas em formato de coração do safado do gerânio. Petúnia e girassol prometeram tirar tudo em pétalas limpas com a samambaia, já que margarida fora colhida faz tempo, deixando, à época, cravo bastante aliviado. Lágrimas de chuva encharcaram toda terra por muitos dias ‒ murchava um amor perfeito.

Mas o tempo e as minhocas sempre movem a terra do pátio... E, nas voltas do destino, o entristecido cravo se viu à beira do canteiro, tomando orvalho ao lado do desafeto gerânio. Brotou um certo companheirismo masculino e gerânio disse que sabia como cravo teria rosa de volta: bastaria beber uma dose alta de herbicida, ficando doente. Rosa viria correndo para seu caule. Assim aconteceu: rosa, aos prantos e com cravo desmaiado em seus braços, jurou amor eterno. Quando seu escolhido acordasse, proporia reconciliação.

Todo jardim olhava enternecido para a cena de romance. Por isso, ninguém reparou que o beagle da vizinha pulou a cerca para enterrar seu osso bem debaixo da sacada. A coisa foi violeta! Lado a lado, morreram o cravo e a rosa. Muito, muito triste. Porém, muito, muito belo...

PS: Para não dizer que só falei de flores, um grande abraço aos meus amigos papais pela passagem de seu dia. Façam de seus exemplos de vida a maior semeadura; colham no olhar dos filhos o valioso presente!