26.8.11

Último recurso

Número 436
Rubem Penz
Per saecula saeculorum, promovemos esforços civilizatórios. Nada contra a natureza – tudo a favor da humanidade. Desde os primeiros dias de vida, busca-se domar o animal e impor o predomínio da razão, o controle sobre os instintos, a polidez. Do polegar opositor, passando pela possessão do fogo, pela invenção da roda, pelo uso transistor, até desembocar na capacidade do chip (para citar saltos gigantes), todo o ânimo tecnológico foi acompanhado, necessariamente, pela mediação da ética. Mas a fera segue ali, oculta. Quando tudo é em vão, ela é nosso o último recurso.
Das teses para a realidade, a notícia saiu em todos os jornais: médica equipa o muro de sua residência com seringas supostamente infectadas com o vírus HIV. Como pode? – pergunta a sociedade, perplexa. Quem esperaria essa atitude dos que pertencem à elite da civilização, com nível escolar superior, condição social elevada, carreira dedicada à ciência em uma de suas faces mais nobres? O que faria a pessoa com tais qualidades agir com tamanha abominação? Pois ela não age – reage. Ela teme. E nem é ela: é a fera.
Toda vítima, quando encurralada pelo predador, tem duas escolhas: morte, ou morte com luta. Na segunda opção, há um fio de esperança. O combate, mesmo desigual, segue os desígnios da incerteza, podendo reservar um desfecho surpreendente. Quem sabe disso não é a razão, especialista em avaliações de risco. É o instinto. É a fera. É o desespero, o descontrole. Ninguém pode simplesmente condenar a vítima quando, inferiorizada, revida de modo extremo. À vida, nos agarramos com unhas e dentes – e facas e revólveres e seringas.
Ao falharem os poderes instituídos pela civilização (governo, justiça, polícia), permitindo que vivamos encurralados por grades, acuados e dominados pelo medo, a fera desperta. A incapacidade de socializar uma minoria – covarde, violenta, brutal – nivela todos por baixo. O Sedex em nossa porta pode ser um assaltante; o funcionário da telefônica, da luz, da água, da farmácia, também. A ordem é: desconfie de quem passa por você na rua, de quem pede as horas, de quem está ao seu lado no banco, de quem conversa contigo na internet. Dá-lhe muros e cadeados! Viva na selva: ao menor ruído, corra que é um tigre! Não confie em mais ninguém.
Em pleno século 21 não deveria mais ser assim. Entre os homens, bastaria uma porta fechada indicando o limite, como ocorre quando nos resguardamos dos animais. Aos pares, educação, boas oportunidades, decência, irmandade. Aos poderosos, responsabilidade, limites, compensações (impostos), solidariedade. Aos doentes, tratamento. Aos miseráveis, caridade. Aos aflitos, consolo. Aos criminosos, sanções. Aos honestos, liberdade. Listando assim, parece até fácil. Como explicar, então, a paranóia de uma cidadã jogada às suas próprias feras, o último recurso? A ponta das agulhas é apenas a parte visível do iceberg.

--
Visite-me em:www.rubempenz.com.br
www.rufardostambores.blogspot.com



19.8.11

Fundo perdido

Número 435
Rubem Penz
Levou os meus planos, meus pobres enganos
Os meus vinte anos, o meu coração
                                                                                               Chico Buarque

"Entreguei-lhe os melhores anos de minha vida". Eis uma frase clássica, dita e repetida por mulheres ao longo da história de muitos relacionamentos, bem no momento em que eles chegam ao fim. Uma cobrança, sem dúvida. Porém, com um agravante: tal dívida jamais poderá ser saldada. Nem amortizada, nem perdoada, nem convertida. Estamos falando de tempo – aquilo que não retorna jamais. Daí sua trágica contundência.


Bom, uma das estratégias masculinas para escapar dessa cobrança é negar a dívida: "Foi uma troca – os meus pelos seus. E você entregou por iniciativa própria, por conta e no risco". Já adianto que nem sempre funciona, mesmo que obedeça a uma lógica irretocável. A questão é que elas sempre acham que valem mais, doam-se mais, abdicam mais. Taco a taco só existiria em uma relação homossexual – perdoem o chiste.


Outra maneira de sentir-se desonerado é a de (tentar) reverter o quadro: "Se ao meu lado aconteceram os melhores anos de sua vida, então sou credor". E agora? Quem recebeu de quem? Quem deu o quê? Estando tão bom, não há nada a ser cobrado. Ao contrário, a mulher deveria agradecer: "Obrigada pelos melhores anos de minha vida". Por nada, por nada – diria o ex – foi um prazer e uma honra ser o responsável por sua felicidade. Para, depois, esperar pelo vaso que viria voando na direção da cabeça.


(Já sei: estou me afundando. Tentarei o resgate.)


Pena que, na vida, a coisa não seja assim tão simples. Quando elas nos dizem que entregaram os melhores anos da vida delas, estão dizendo que foram os melhores anos de nossas vidas. E foram. Nada supera o tempo passado ao lado de quem está apaixonado por você, acarinhando, mimando, estimulando. Na paixão, alcançamos o ápice do amor próprio: desejamos quem também nos deseja. Ser querido é o aditivo mais poderoso do universo. Supera o álcool, as drogas, a adrenalina. Supera tudo. É tão bom que vale o sacrifício.


Mas, supondo que houve paixão dos dois lados, o que transformaria ambos em credores, por qual motivo as mulheres tanto se queixam dos tais "melhores anos" que lhes parecem sonegados? A resposta está na palavra juventude. A lisura da pele e a firmeza das carnes são ativos de grande prestígio entre as fêmeas. Isso desde a época dos contos de fadas, ou das cavernas, até hoje (o cirurgião plástico agradece). Basta lembrar o pesadelo da Rainha Má diante da fresca Branca de Neve – é o espelho quem acusa o declínio de sua jovialidade, não o rei, que até morrera.


Por isso, a masculina tábua de salvação é apelar ao Chico, unanimidade entre as mulheres, para encontrar a resposta final ao dilema. Na música A Rita, ele reproduz a mesmíssima queixa: o rapaz lamenta a perda dos vinte anos, dos planos, dos pobres enganos e do coração. Os durões não admitem, mas sofremos lupicínios ao ter o coração partido. Assim, caro homem, quando ela o acusar de ter investido mal a juventude em sua carteira de ações, revide na mesma moeda: diga que suas aplicações também se depreciaram no fundo (perdido) do poço. E que, pior, bem pior, lhe restou mudo o violão. Ou alguém duvida que sejam elas a nos inspirar?

--
Visite-me em:www.rubempenz.com.br
www.rufardostambores.blogspot.com



12.8.11

Pai: que negócio é esse?

Número 434
Rubem Penz
Pelo menos até aprovarem a clonagem humana, está prejudicada a ideia de firma individual – a forma legal que dispensa sócio para o empreendimento de uma companhia limitada. E onde se lê sócio, compreenda-se pai. Mesmo que muitas mulheres torçam o nariz, a boa norma só admite uma criança humana a partir de dois gametas com personalidade biológica próprias. Então, entre os homens disponíveis no mercado, é preciso escolher o mais adequado para tal fim.
Filho é, sim, um empreendimento. Aliás, uma iniciativa de longo, longuíssimo prazo. Contempla um enorme risco, pois nem todo o capital anímico do mundo garante seu sucesso ou do filho. Se bem que há avaliações muito variadas para o termo sucesso: ele pode ser medido em felicidade, em saúde, bondade, em riqueza, inteligência, honestidade, paz... Ser pai é um negócio para lá de complicado. E fica cada vez mais estranho na medida em que a sociedade contempla novas estruturas, diferentes daquelas do tipo empresa familiar.
Há os pais no estilo sócio minoritário. O rapaz entra com 1% e olhe lá. No fim das contas, está ali apenas para a fecundação e para constar no registro em cartório. Se o filho tiver competência para ser milionário, pode apostar que, cedo ou tarde, o papai cobrará algum dividendo. Para o caso de a criança dar prejuízos na praça, o pai minoritário alegará que jamais gerenciou a coisa e, assim, não tem qualquer culpa. Porém, o que mais ocorre é a vida simples, cotidiana. Desta, o sócio minoritário auferirá em carinho a contrapartida na ínfima participação.
Vivemos uma época de pais no estilo associado. Neste caso, o filho não é biológico, origina-se de capital externo. Mesmo quando o enteado lhe chama de papai, sabe que é fruto de um ex-sócio. Pode ter sido um sócio minoritário ou, bem ao contrário, ter entrado com valores elevados de expectativa no momento da fundação, quero dizer, fecundação. Mas, por motivos variados, acabou em outro ramo. Quando vai tudo bem, a criança sai ganhando: dois pais ao invés de um. Em outros casos, pode surgir uma certa concorrência, por vezes desleal.
Há pais majoritários. Ora por viuvez, ora por terem ganhado a guarda na separação, ora por pura vocação em ocupar todos os espaços dentro de casa, os majoritários são por vezes confundidos com mães. Isso não quer dizer que sejam afeminados. Na verdade, são masculinamente maternais. No fundo, no fundo, gostariam mesmo é de uma sociedade equânime com a parceira. Ou com o parceiro, uma vez que cresce a participação homossexual na composição societária. Agora de papel passado!
Existem bancos de esperma para as mulheres optarem pela sociedade anônima. Ali, investidores a fundo perdido colocam seu capital disponível, julgando ter riqueza capaz de fomentar novos empreendimentos com muita competência. Interessante perceber que doar esperma é ao mesmo tempo uma ação e uma omissão. É ser, em cada negócio, menos do que o sócio minoritário. E, ao mesmo tempo, nutrir o desejo de diversificar seu patrimônio enormemente.
E o lucro? Bom, em termos de dinheiro, ser pai não dá lucro algum. Ao contrário, filhos são verdadeiros canais por onde escoa a riqueza da família – segundo o último Senso, a mãe está participando como nunca na água deste rateio. Ao mesmo tempo, o abraço, o beijo, o sorriso, o amor de um filho tem valor que nenhum dinheiro no mundo compra. E quanto mais o homem se enfronha nos balanços, mais vê que esse negócio de ser pai vale muito a pena.
.

--
Visite-me em:www.rubempenz.com.br
www.rufardostambores.blogspot.com



5.8.11

O pecado mora ao lado

Número 433

Rubem Penz

Fez-se a luz, Adão, costela, Eva, paraíso etc. Todo mundo conhece o percurso do Homem, ou o tanto de água que rolou debaixo da parreira até dar no que deu. Mas sempre há nuances a serem exploradas por quem se dedica a investigar o insuspeitado. E não custa nada remontar a cena que alterou o rumo das coisas para, com isso, tirar lições. Do princípio:

Antes de tudo, era o caos. Algo como sexta-feira, dezenove horas, chovendo cântaros, dois acidentes envolvendo caminhões, véspera de feriadão. Saldo bancário no vermelho, ponteiro da temperatura do carro no vermelho, semáforo piscando no vermelho, um descontrolado atolando o dedo na buzina. Num momento parecido com esse, o Criador, em sua elevada benevolência, ao som de um coral de anjos e inspirado pelo mais puro sentimento, resolveu pôr ordem no galinheiro. E fez-se a luz; também surgiu a Natureza com seus vales e montanhas; oceanos, lagos, nuvens e areia brancas. Tudo pronto para o eleito: o Homem.

Logo após o sopro de vida na argila inerte, nasceu Adão, aquele que era feliz e não sabia. Vivia no que mais tarde seria convencionado chamar de CNTP (condições normais de temperatura e pressão). Clima goiano: amanhecia numa temperatura amena, esquentava um pouco no bom sol, chovia confortavelmente e, à noite, era sempre recomendável se cobrir. Sem umidade ou rinite, sem ácaros, sem roupa que nunca seca no varal ou um gole da maldita para enfrentar o vento Minuano.

Impossível ficar melhor? Eis que de sua costela nasce Eva. Ah, a mulher! Evolução da espécie, arte final para seu rascunho, companheira criada por Deus para estar sempre ao seu lado, mas que, por excelência de projeto, estaria sempre à sua frente. Movimentos de uma felina, charme de uma felina, unhas de uma felina, humor de uma felina... E memória de elefante. Adão já não mais precisava se preocupar em fazer agrados ao Criador – bastava atender Eva e seu dia estaria tomado, suas noites garantidas, o mundo em completo sentido. Deus poderia tirar suas férias em paz, afinal.

Pois, Adão e Eva, insatisfeitos com aquilo que parecia perfeito, entediados com tanta harmonia e fartos de beleza, ambicionaram o fruto proibido. E logo ali, adiante da cerca, estava a macieira do vizinho. Nela, auspiciosa, a suculenta maçã. A mulher disse vá até lá e apanhe uma para mim. O homem ponderou que poderia dar galho. Ela fez beicinho, mas ele parecia irredutível. Então, cochichando ao ouvido, Eva prometeu alguma coisa que Deus não deveria ouvir. E Adão saltou por sobre a cerca feito cão que ouviu a sineta de Pavlov. Só que o vizinho viu. E sua mulher, uma verdadeira cobra, indignada, fez queixa para o síndico do Condomínio Horizontal Paradiso.

Barraco! De um lado, Adão defendia-se com a tese de que seria um grande pecado apodrecerem as maçãs no pé sem que ninguém apanhasse. De outro, a cobra rebatendo que o casal não merecia habitar o Paradiso – deveriam ser expulsos. Eva subiu nas tamancas e disse que vizinhos intolerantes do tipo que prega regras apenas para os outros transformaram o Paradiso em um inferno. Blasfêmia: tudo o que o síndico esperava para tomar o partido da cobra. E assim, em breve resumo, fica explicado porque deu no que deu.

 


--
Visite-me em:
www.rubempenz.com.br
www.rufardostambores.blogspot.com