29.4.11

Algemas de falópio

Número 419

Rubem Penz

As imagens de uma mãe que passa na rua e deixa seu bebê em um container de lixo, flagradas por câmeras de segurança, foi exaustivamente reprisada e varou fronteiras por esses dias. Também pautou reportagens recordando casos semelhantes: um bebê encontrado em saco de lixo, outro no valão do esgoto, outro atirado sobre o muro. E muitos mais pipocam no noticiário, sempre com a mesma questão: por que uma mãe abandona seu filho? Respondo: porque ela, antes, o acolheu.

Aqui está uma das diferenças básicas entre homens e mulheres, impossível de ser ignorada, mesmo em tempo de brados pela igualdade: mulheres são ventres, e a Natureza criou o ventre para acolher a vida. Por sua vez, homens ejaculam, isto é, lançam a vida para longe de si. Assim, entre tantos canais de TV, poucos se lembraram de fazer aquela pergunta primeira de quem compreende o nascimento como fruto da união de um casal: onde está o pai nessa história de abandono? Respondo outra vez: ele simplesmente não está, pois só pode abandonar quem um dia acolheu.

Abrigar os filhos é tarefa precípua das mães. Assim, quando um rapaz fecunda uma parceira e, com o perdão da alusão anatômica, simplesmente tira o corpo fora, pode fazê-lo sem lidar com igual parcela de culpa e sofrerá cobrança moral menos rigorosa do que aquela que será imputada à mulher. Isso é triste, injusto, errado e precisa mudar (está mudando), mas é a realidade – ou saiu a notícia de que o pai da menina jogada no lixo também poderá ser denunciado por abandono de incapaz? Ah, claro: ele não a abandonou, pois sequer a acolheu.

Eis a razão de o fardo da anticoncepção pesar tanto mais sobre os ombros das mulheres: ao nascerem, foram condenadas ao acolhimento. Por isso, nada libertou mais o sexo feminino do que os métodos anticoncepcionais. E, melhor: sem culpa, colocando as moças, finalmente, em pé de igualdade com os rapazes. Afinal, mesmo o aborto (a vida é ou não válida ainda na fase embrionária?) traz uma sombra de abandono, fazendo sofrer. A saída indolor para o impasse é entregar à mulher a chave das suas algemas de falópio.

Faz muito tempo que a elite cultural e econômica gera prioritariamente filhos planejados, usufruindo de plena liberdade de escolha. Estivessem tantas mulheres que sofrem pesadas restrições sociais atendidas por programas sérios e eficientes de conscientização em termos de fertilidade, não haveria tamanho abandono infantil. Evitando a acolhida inicial, quando involuntária ou irresponsável, preveniríamos o desamparo.

Nossas crianças não estão jogadas no lixo somente no sentido literal, aquele da notícia: também lá estão quando, miseráveis, sucumbem em rotinas degradantes. Conteiners metafóricos aguardam nossos anjos nas drogas, na prostituição, na exploração do trabalho infantil, nas mortes violentas, nas doenças que brotam da falta de saneamento básico, na mendicância. Todos podem ver isso sem a necessidade das câmeras de vigilância. Mas as autoridades escolhem não ver.


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20.4.11

Nova concorrência Pascal

Número 418

Rubem Penz

Em 2008 noticiei em única mão o término do contrato de concessão aos coelhos para serem os animais símbolos da Páscoa, além da consequente abertura de Edital para nova concorrência. Confira no Rufar dos Tambores número 256, de 19 de março (http://rufardostambores.blogspot.com/2008/03/nmero-256.html). À época, candidataram-se os ratos, as galinhas, as formigas e, muito a contra gosto, os bichos-preguiça. Como todos podem constatar nas campanhas publicitárias, para a felicidade dos coelhos, deu em nada. Parece que havia erros formais no documento, o que ocasionou sua denúncia e novo contrato emergencial com validade de cinco anos. Desconfio que entregaram a tarefa para brasileiros, que gostam mais de renovações emergenciais de contratos do que mulheres de chocolate.

Volto ao tema porque soube do lançamento de novo Edital com vistas para a Páscoa do ano que vem. Todavia, o desgaste do cancelamento anterior provoca baixo interesse na bicharada. Poucos se dispõem a enfrentar o lobby dos coelhos, que se reproduz em todos os níveis da administração pascal. Contrariando essa corrente, lá estão os leões, que prometem ser concorrentes de peso. A seguir, a justificativa dos Reis das Selvas:

Leões de Páscoa

Nós, leões, apresentamos nossa candidatura a Animal Símbolo da Páscoa para destronar de uma vez por todas os coelhos. Afinal, trono é prerrogativa de monarcas, o que somos de fato e de direito. Também porque, de alguma forma, mesmo sem ser a ideal (e quem liga para preciosismos?), nos relacionamos tanto com a comunidade cristã, quanto com a tradição alimentar – comíamos cristãos nas arenas romanas.

Outra vantagem é a de concorrer em pé de igualdade com o Papai Noel: é sabido que o bom velhinho carrega uma contradição implícita, um misto de fascínio e medo, impossível de ser explorada por adoráveis coelhinhos. Agora, no nosso caso, papai e mamãe podem recorrer às pequenas chantagens: se não comer tudo, vou contar para o Leão da Páscoa! Nada melhor do que um carnívoro que habita o ápice da pirâmide alimentar para impor respeito.

Porém, no cerne de nossa defesa, está a coincidência de a Páscoa acontecer no momento em que as pessoas se preparam para prestarem contas com o Imposto de Renda, onde já estamos presentes. E a ação governamental combina com os ritos pascais em diversos pontos:

O contribuinte é convidado à ceia que precede o sacrifício e, nela, o governo já avisa que há traidores entre eles. Mesmo assim, segue com o jantar até o final, pois o problema de amanhã se resolve no dia seguinte.

O traidor é corrompido, levando o contribuinte à Via Crucis da saúde, da segurança, da educação, da infraestrutura etc. Em sua jornada, é submetido aos piores tratamentos e às maiores humilhações.

Por fim, imolado em praça pública, morre com o dinheiro devido aos cofres da viúva, na esperança de ressuscitar no momento da devolução dos eventuais valores de restituição.

Por tudo o que foi exposto, é pleito legítimo dos leões serem o novo Animal Símbolo da Páscoa.


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15.4.11

Um placebo chamado desarmamento

Número 417

Rubem Penz

 "Proibir arma legal é combater as drogas na farmácia."

O magnífico José Sarney, surfando na onda da comoção nacional pela tragédia do Realengo, requentou o tema do desarmamento e arma nova consulta popular. Agora, preparo-me para ler e escutar pessoas que admiro profundamente aderindo à tese de que a proibição do comércio de armas legais resolverá o problema da violência no Brasil. Gente que, assim como eu, não tem arma em casa, não pretende comprar uma arma, não frequenta estandes de tiro. Pessoas de bem, respeitáveis, inteligentes. As mesmas que estarão espantadas ao constatar que sou contra o desarmamento, ao menos nos moldes como estarão propondo. Clemência, por favor – minha posição é defensável.

Imputar às armas legalmente adquiridas no país o status de fonte que abastece o crime é igual a dizer que os remédios de tarja preta são os responsáveis pelo problema nacional das drogas. Desconsideram a maconha, a cocaína e o crack que entram em toneladas no Brasil ilegalmente: isso é outro caso, muito difícil de resolver. Olha o tamanho da nossa fronteira! A substância que, para ser adquirida, demanda receita médica especial, alvo de severo controle, também é droga pesada. Proíbe-se sua comercialização e, na hora, importante modo de drogatização é resolvido. Será?

Ao montar o argumento, não esqueci daqueles para os quais os remédios controlados são indispensáveis à saúde. Ao contrário. Evoco sua lembrança para falar dos que dependem de armas de fogo para manter sua segurança. Pasme: eles existem! Por exemplo, o estancieiro que está quilômetros distante da ajuda mais próxima, isolado e indefeso. Hoje, um delinquente pensa duas vezes antes de entrar na propriedade para suprimir seus bens (na melhor das hipóteses) apenas pelo fato de que poderá sofrer uma resistência letal. Isso é uma exceção? Claro! Assim como é exceção nosso doente que não vê seu problema resolvido com aspirina. Ambos cumprem severa legislação e estão obedientes à lei. A eles a proibição atingiria. Somente a eles.

É óbvio que o problema da violência no Brasil não está na arma legal, assim como o das drogas não está nas substâncias legais. Arrisco dizer, inclusive, que a proporção é a mesma, ao menos na população civil. As consequências de uma consulta popular proibindo armas lícitas, alimentada por uma tragédia nascida de uma arma ilegalmente adquirida, tem a mesma eficácia de o combate ao crack começar pela proibição dos remédios da farmácia. Isto é, prometem-nos a cura do mal ministrando placebo, e seguirão placidamente contando os mortos, livres de dor de consciência. A não ser que o alvo desse tiro seja outro. Mas aí também é outro artigo.

 

 


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8.4.11

Nas coxas

Número 416


Rubem Penz


Aseem Mishra tem 17 anos e já ganhou dois prêmios em feiras de ciências. O mais recente é muito conceituado: The Big Bang Science Fair, concurso nacional para estudantes ingleses. O que chamou a atenção de quem mandou a notícia para mim (grato, Paulo Henrique!) foi a natureza do invento do rapaz: uma calça jeans bateria. Mas não battery (pilha), e sim drums (instrumento musical).


Em resumo, a adaptação de sensores no tecido da calça transformou o jeans em uma bateria eletrônica que se pode vestir. No filme que acompanha a reportagem, Aseem faz um solo totalmente nas coxas. Ali, encontra peles, pratos de condução e ataque, hi-hat e tudo o que compõe o conjunto de sons do instrumento musical. Não bastasse o prêmio de £ 1000, abre-se a possibilidade de costurar sua criação com empresas do ramo – ainda mais que deverá vestir o invento em uma feira norte-americana.


Acha que fui lembrado porque sou baterista? Nada disso. Foi porque sou meio chato, mesmo: tenho a mania quase incontrolável de batucar. Batuco na mesa, no volante do automóvel, no sofá. E, na falta de superfícies externas, batuco no corpo. Quando sentado, os pés não param e as mãos percutem nas pernas – só faltam os sensores. O fato é que sempre – sempre! – tem música tocando onde eu estiver, senão em aparelhos de som, na memória. E costumo acompanhá-la. Não respeito sequer as refeições. Mas, educado, atendo sem demora os pedidos para silenciar.


Para ter bolado o invento, parece óbvio que Aseem padece do mesmo tique, algo que a desenvoltura no filme atesta. Bela resposta aos que insistem para que ele fique quieto: fazer da mania um mérito! Mas parece que não foi isso que moveu o estudante. Segundo a entrevista, o menino se diz cansado de carregar a bateria para suas gigs. Cansado aos 17? Realmente, a preguiça é uma das principais molas do progresso. Três décadas nos separam e eu não abro mão do set acústico, pesado e espaçoso. Sou um dinossauro, mas mantenho a forma física!


Agora, já pensou se a moda pega?


Saias plissadas podem virar piano. Gravatas, saxofones. Haverá quem pense em aproveitar as casas dos botões para entoar uma melodia em flauta doce. Equipando um macacão da gola à bainha da perna, o músico poderia ser um verdadeiro homem banda. O esperto daria para a namorada uma calça com bongô estratégico, e teria a desculpa perfeita para percutir a bunda. O pai mais ciumento faria a menina usar um sutiã com apito, ficando atento, só na escuta. As magrinhas colocariam uma blusa justa para abrigar a harpa das costelas. No cinto, flauta transversa. Castanholas nas luvas e maracas nos punhos.


Entre adolescentes, não faltaria mãe espantada: meu Deus, esse menino está duas oitavas acima do blusão que ganhou no ano passado! E a filha brigaria com o pai: tom menor! Ele: nada disso, tom maior! A avó reclamaria que, no seu tempo, as mãos serviam apenas para bater palmas e os dedos para assobiar, e olhe lá! Mas todos desconfiariam de tanta inocência: certamente rolava concertos à capela...


Enquanto estamos apenas no terreno das hipóteses, não custa imaginar possibilidades:


– Berimbau! Viu só aquela zabumba?
– Se vi... Mas é muita orquestra para a minha batutinha.

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1.4.11

Gol a gol

Número 415

Rubem Penz

Ao pátio ladrilhado da minha casa de infância faltava envergadura para ser uma cancha, mas foi o primeiro campo poli-esportivo que conheci. No sentido cozinha/anexo, aproveitando a corda do varal, jogávamos newcomb e vôlei de duplas: meninos versus meninas (meu primo Dudu e eu contra minhas irmãs); no sentido muro/tanque, o famoso futebol gol a gol, versão mais reduzida possível do gênero criado pelos ingleses – basta um arremedo de campo, duas metas e um adversário. Tinha sempre o mesmo oponente (o primo), pois havia muita distância de idade com meu irmão, e gurias, na época, não jogavam bola. Vantagem: todo dia era dia de clássico, aguerridos Grenais.

Para qualquer professor de educação física, aquele era o mundo ideal: crianças na idade pré escolar e de ensino fundamental com atividades físicas em casa, trabalhando igualmente o trem superior e inferior, praticando jogos competitivos, individuais e de equipe. Propositalmente, deixo em segundo plano as bicicletas, bobinho, caçador, pega-pega, corda, elástico, peteca, tamborete, esconde-esconde, cinco marias entre outras brincadeiras formadoras do bom manancial psicomotor. O foco de minha lembrança é o bom e velho gol a gol.

Nascido da precariedade (jogadores em número insuficiente e espaço reduzido), o gol a gol, por ser mínimo, exigia o máximo de fundamentos. Praticava-se precisão no arremate, defesas, domínio de bola (para defender com os pés), drible (podíamos conduzir a bola caso houvéssemos defendido com os pés), desarme e imposição física (meu calvário). Quando a bola cruzava o muro, nosso caso particular, ainda apresentava vantagens extras: desenvolvimento de força, equilíbrio e velocidade. Isto é, subir no muro, andar sobre ele, descer do outro lado e fugir do cachorro da Dona Vilma.

Como jogávamos praticamente todos os dias, não posso culpar o destino por não ter me tornado um Manga, Falcão ou Zico. É óbvio que não nasci para a coisa. Mas este jogo rudimentar proporcionou o contato com duas das maiores alegrias do futebol: marcar golos e defender chutes fortes e precisos. E, por mais que um bom arremate seja motivo de orgulho, devo dizer que poucas experiências se assemelham a uma ponte bem executada, chegando naquela bola que mirava o ângulo e acomodando-a nos braços sem dar rebote. Se jogadores de linha são bailarinos, goleiros são acrobatas!

Esta semana, uma marca esportiva estupenda foi notícia no mundo inteiro: Rogério Ceni, "guarda-metas" brasileiro do São Paulo Futebol Clube, alcançou o patamar de 100 golos marcados. Ok, ainda faltariam mais de 900 para bater o Rei Pelé, Atleta do Século XX e ícone mundial. Porém, o detalhe é que Ceni, um acrobata, costuma estar afastado estimados 100 metros das redes adversárias, objetivo maior do esporte bretão. Enfim, tamanha é a raridade de seu feito, que o goleiro mais próximo é o aposentado Chilavert, com respeitáveis 62 tentos no currículo.

Posso me considerar um privilegiado, pois testemunhei jogar esses dois grandes recordistas do futebol, Pelé e Ceni. Homens que viram seus esforços reconhecidos em cada gomo do planeta bola. Iguais a mim, devem ter ocupado bom tempo da infância em pátios transformados em campos imaginários. Diferentes de mim, ambos nasceram, e muito bem, para a coisa. Hoje, uma necessidade se impõe: se o Jorge Benjor nominou o Fio Maravilha o "Homem Gol", nada mais justo do que compor um tema para o Rogério Ceni, imortalizando melodicamente o "Homem Gol a Gol".


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