27.1.10

Número 354

MUNDO PET

Eram amigas desde os tempos de escola. Não poderiam ser mais diferentes entre si: uma era alta, outra risonha, outra médica, outra comia as unhas... Porém, laços invisíveis de afeto e confiança faziam com que estivessem, uma vez por mês, diante de taças e mais taças de espumante. Chamavam o encontro de nossa pequena extravagância. Com o avanço das horas, o papo tendia às confissões. Naquela noite, Adelaide (os nomes estão todos alterados para evitar processos) estava muito queixosa.

– Meu marido é um cachorro! Vocês têm um em casa, por isso sabem do que estou falando...

Fez-se um silêncio prolongado. Cada uma retornou ao lar por instantes, em pensamento, para tentar acompanhar a linha de raciocínio. Ophelia, com sorriso fugidio, lembrou-se de que o seu atual não poderia ser mais meigo. Nos últimos anos fora o responsável pelos mais encantadores momentos de sua vida. Bastava uma troca de olhares para que ela recebesse um carinho. Logo tratava de retribuir e, em frenesi, já se viam rolando pelo chão.

Emília admirava muito o seu pela retidão de caráter e objetividade. Nunca traíra sua confiança, fosse no dia-a-dia, fosse em momentos de exceção. Algo que perpassava o conceito de subserviência: mesmo quando ela viajava para os inevitáveis congressos, chegando a se ausentar por mais de uma semana, era certo que nada em casa aconteceria fora do esperado. Ao contrário: havia um zelo incorruptível por tudo o que se estabelecera na partida.

Ursula quase deixou escapar uma gargalhada. Nenhum outro poderia ser mais divertido do que o seu. Meio palhaço, meio malabarista, comportava-se como se todos em sua volta fossem uma platéia. Especialmente crianças e visitas. Muito especialmente se fossem crianças, as visitas! Acontecia de passar um pouco dos limites de vez em quando, a ponto de perder a graça... Mas era só uma questão de pedir para que parasse quando já estava perturbando.

Olga sentiu muita saudade do seu... Falecera há menos de um ano, o luto sequer estava completo. Estiveram juntos por tantos anos que se conheciam pela respiração. Quando ela chegava em casa depois de um dia estressante, bastava sentar ao seu lado por minutos para abandonar os problemas. Mesmo quando ele adormecia enquanto olhavam TV, um absurdo, diriam tantas, era repousando docemente a cabeça em seu colo que o fazia.

Ernesta nutria, secretamente, um pouco de medo do seu. O que não era, exatamente, segredo para ninguém, pois todas as suas amigas tremiam diante dele. Ele era agressivo, temperamental e grande. Muito grande. O lado bom é que ninguém, nunca, meteu-se com ela ou com os filhos. A figura impunha respeito! E sua agressividade jamais foi dirigida à família. Ao contrário, a fúria era sua maneira de ser atencioso.

O silêncio foi interrompido pela própria Adelaide, retomando o pensamento que interrompera para servir-se de mais espumante:

– ... um verdadeiro cachorro, o Adamastor! Acreditam que teve o desplante de chegar em casa fedendo a perfume e cigarro, e me dizer que tinha ido à missa depois do trabalho?

Todas se entreolharam. Ah, ela estava falando do marido!? Talvez fosse o caso de suspender a próxima garrafa...

20.1.10

Número 353

MÚSICAS QUE EMBALAM SONHOS


Pobre, quando pensa, é sonho.
Dalva Damiana de Freitas


Sou praticante do zapping seletivo: diferente do simples subir e descer pelos canais de TV por assinatura, espio as emissoras mais ligadas à cultura em busca de boas surpresas ‒ e as encontro com frequência. Foi o caso de quando selecionei o Canal Brasil e o rosto de Naná Vasconcelos encheu a tela. Passava (lamentavelmente, já da metade para o final) o documentário Diário de Naná, dirigido por Paschoal Samora. Uma viagem do percussionista pelo Recôncavo Baiano em busca da sonoridade de raiz de nossa música popular e, nela, do Samba de Roda. A parada foi obrigatória, pois, além de ele ser um dos mais destacados e sublimes músicos brasileiros da atualidade, desde a juventude aprecio os múltiplos sons de Naná.

Naquele instante, era entrevistada Dona Dalva do Samba, uma compositora descendente de escravos, nascida na cidade de Cachoeira, interior da Bahia. Idosa, porém muito lúcida, ela explicava seu processo de criação: escutava uma palavra aqui, outra acolá ‒ tudo anotava. E dormia com lápis e caderno debaixo do travesseiro, para não perder as ideias que vinham. Dando (e provocando) risadas, Dona Dalva disse: “Naná, sabe como é: pobre, quando pensa, é sonho!”. Corri para meu próprio bloco de notas e registrei a frase na hora, pois, a exemplo dos compositores, cronistas também vivem de palavras escutadas aqui e acolá.

O aforismo de Dona Dalva, gracioso e espontâneo, permaneceu dançando em minha mente, girando ao som do samba que ela entoava com o luxuoso acompanhamento de Naná Vasconcelos. A frase explicitou com arguta ironia o preconceito de grande parte da sociedade com relação ao conhecimento e à arte de autêntica raiz popular, especialmente indígena e africana. Concluí que, em muitas oportunidades durante a vida da artista, teria causado surpresa a qualidade de sua obra, dada a humildade de sua origem. Fenômeno que ela reconhece não ser, nem de perto, uma exclusividade sua ‒ generaliza como normal aos “pobres”. E nessas todas, eu pensando: para criar com tamanha limpidez, eu teria que nascer de novo...

Segui assistindo o documentário até o final, embevecido com a cantoria do Samba de Roda e com as composições daquela senhora que, reunindo outras mulheres, utilizava as taquinhas do trabalho na antiga charuteira Suerdieck (pequenos tocos de madeira) para acompanhamento da música. Depois, quando quis conhecer mais sobre ela, soube do recente reconhecimento do Samba de Roda do Recôncavo Baiano como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e Obra Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas pra Educação, Ciência e Cultura. Tive até vergonha de não ter sabido, muito antes, quem era Dalva Damiana de Freitas.

Felizmente, instituições como a Associação de Pesquisa em Cultura Popular e Música Tradicional do Recôncavo, e Associação Cultural do Samba de Roda "Dalva Damiana de Freitas" trabalham de modo incansável na preservação e divulgação da música típica desta região brasileira. Cada vez mais, também, atraem a atenção de pesquisadores do Brasil inteiro e mesmo de outros países. Combatendo todas as dificuldades orçamentárias da área da cultura em nossa nação, essas pessoas provam que os pobres, quando pensam e realizam, também fazem isso parecer um verdadeiro sonho.

14.1.10

Número 352

O MELHOR DOS MUNDOS

Muito já foi dito sobre a superprodução cinematográfica Avatar. Há quem comente apenas o fantástico senso de oportunidade de James Cameron, abordando o tema ecológico bem no momento em que o assunto esquenta de vez no planeta (com o perdão do trocadilho). Outros destacam a revolução tecnológica desta obra em 3D, promessa de ser divisor de águas para o cinema. Como a história não é nem de longe a primeira a ser ecologicamente correta, além de nascer fadada a ter seus avanços técnicos suplantados em poucos meses, decidi me concentrar naquilo que deu o nome ao filme: os tais avatares.

A palavra avatar vem do sânscrito (avatara) e significa, originalmente, encarnação. Ou, para ser mais específico, o espírito que ocupa um corpo carnal. Por um deslocamento muito curioso, o termo foi adotado na internet para dar o nome à representação pictórica de alguém no ambiente virtual. Isto é, uma desencarnação! Bom, se no induísmo o avatar é deus que vira gente, quando invertemos o sentido, é muito justo que o homem almeje nada além da divindade. Na virtualidade, tímidos ficam extrovertidos, sacanas se transformam em anjos, avaros esbanjam e pobres enriquecem. Ao nosso pequeno deus virtual, tudo é possível.

No caso do filme, os avatares são clones da espécie Na’vi, nome dos nativos da Lua Pandora, criados pelos humanos para encarnarem e, a exemplo da web, despirem-se dos pecados humanos. Afinal, os seres azuis são de uma pureza de dar inveja aos índios românticos! Vivem em perfeita harmonia com o exuberante meio ambiente e não matam uma pulga sem uma finalidade nobre ‒ e, mesmo assim, ainda oram pelo animal falecido. Organizam-se de modo a respeitar hierarquias políticas e religiosas (com um viés monárquico) e curam seus males usando a força da natureza. Também já superaram as picuinhas internas entre as diversas tribos. Lucro, essa coisa tão Hollywoodiana, os Na’vi parecem desconhecer.

Ainda que fosse apenas a redenção de todos os males do espírito, o que não é pouco, quando um ser humano encarna seu avatar no filme de Cameron, torna-se também um coquetel de nossas melhores virtudes físicas. Porque os Na’vi são todos esbeltos como uma top model, altos como um jogador de basquete, ágeis como nossos melhores ginastas, rápidos como um corredor de 100m e resistentes como um maratonista. Também são hábeis como um jóquei, fortes como um alpinista, precisos como um soldado... São, enfim, tudo de bom. Nem precisa ser paraplégico para desejar a troca de corpo e viver no avatar de uma vez por todas!

E é justamente aí que o Na’vi torce o rabo: a mensagem final, de um outro mundo possível, só se concretiza com a expulsão dos homens do paraíso, digo, de Pandora, e o herói, desencarnado, abdicando definitivamente de sua humanidade. Em outras palavras, nós (humanos) perdemos o minério, a guerra, o direito de habitar essa formosa lua e o líder que, por seu exemplo, poderia ser o agente de mudança de nossa consciência. O único que ganhou o direito de viver como um deus foi aquele homem que deus se tornou: belo, puro, sábio, ágil e, também, morto.

Está tudo muito bem na bilheteria, está tudo muito bom nos efeitos especiais... Mas, em se tratando de um libelo ecológico, bem que merecíamos um desfecho um pouco menos maniqueísta. Daqui a pouco vai parecer que vale mais a pena nos mudarmos para avatares virtuais, todos tão lindos e bacanas, e onde não há risco de frustrações ou efeito estufa. Ou morrer de uma vez, pois, no céu de São James, vamos casar com a filha do cacique.

6.1.10

Número 351

ANO AUSPICIOSO

Quem se arvora na arte (ciência?) de fazer previsões, antes de arriscar palpites, detém-se na leitura de sinais. Isso vale para todas as atividades que sobrevivem da necessária antecipação, tais como investidores da Bolsa de Valores, meteorologistas, cartomantes, consultores e professoras de pré-escola. No caso, entenda-se como sinais tudo aquilo que pode ser indicativo de consequências futuras, para o bem e para o mal: um silêncio, um movimento súbito, uma coincidência, uma novidade etc.

Fora do âmbito profissional, é bastante comum que façamos igual em nosso dia-a-dia, com ênfase em dezembro. Afinal, é sempre útil conseguirmos vislumbrar um ou dois movimentos adiante do destino. Isso, claro, quando ele não nos prega peças, blefando escancaradamente... Na fé em que o destino tenha mais o que fazer do que me sacanear, passei uns dias de olho ao redor, garimpando sinais capazes de me preparar para o ano de 2010.

Como exemplo, vejam o que ocorreu na janela da biblioteca – pela qual vejo o mundo enquanto escrevo. Falhas de acabamento no entorno da esquadria (pelo lado de fora), constatadas pela esposa, explicaram a entrada de água quando a chuva se fazia acompanhada de ventos sul e sudeste. Por conta disso, neste inverno e primavera, muitos temporais nos tiraram a paz. E choveu muito em 2009! Sempre que eu julgava que a parede estava suficientemente seca para aplicar silicone, chovia antes de eu realizar o trabalho. Foram uns três meses nesse chove-e-molha. Com a chegada do verão, e a nova posição do sol, enfim apareceu a oportunidade.

Terminei o serviço moído e com as mãos doendo: o trabalho precisou ser feito por dentro, uma vez que a biblioteca fica nos altos de um sobrado, e com uma posição arriscada e desfavorável. Parece ter ficado bom! Digo parece porque, incrível, nunca mais choveu. Aliás, desde a mudança de estação, chove pela primeira vez agora, mas com vento sudoeste – nenhuma gotícula no vidro da dita janela. Isso é um sinal evidente de que todas as minhas necessárias providências no ano que findou demorarão um pouco para comprovarem sua eficácia. E, mesmo assim, para que isso de fato ocorra, precisará continuar chovendo em minha horta!

Outro exemplo está intimamente ligado ao Natal. Enquanto todos esperam a chegada do Papai Noel, eu espero a maravilhosa Salada Waldorf da minha amada. Mulher ardilosa (já sei, são sinônimos), ela me cozinha o ano inteiro com a promessa da iguaria de dezembro. E, enquanto eu reviro os olhos, ela diz, suavemente: “Se tu gostas tanto, nem sei porque não faço a salada durante o ano”. Doce mentira. Como prova de fidelidade e aprendizado de um dos segredos do amor – a paciência –, nunca peço Waldorf em restaurantes nem faço por minha conta. Quem disse que é fácil manter os encantamentos do matrimônio?

Pois, para a minha surpresa e deleite, além do jantar natalino, tivemos Salada Waldorf na ceia de Ano Novo. Tilintem os cristais, desfraldem-se os guardanapos, estourem as rolhas: para mim, isso é o mais claro sinal de um 2010 bastante auspicioso. Um ano de fartura, um ano de encontros, um ano de prazer. Mesmo que tragédias sigam acontecendo (horríveis), políticos nos decepcionando, economia em tênue equilíbrio, duas saladas Waldorf em questão de uma semana é promessa de boas novas. Isso, ou o destino está me ofertando a mais cruel das armadilhas...

PS: 23/12, fim de tarde, supermercado entupido. Na enorme fila do caixa, uma senhora me pergunta por que enfrento isso com um único molho de aipo nas mãos. Porque já não havia aipo (ingrediente chave na Waldorf) em outras duas lojas, explico. Ela recua um passo. Olha-me de cima a baixo. Não sei se teme ou respeita. Na dúvida, muda de assunto.