25.4.08

Número 261

MÍDIA CRUCIS II

Nas derradeiras estações, um exercício de imaginação considera como a Via Sacra repercutiria na imprensa atual:

A CARAVANA DE JERUSALÉM. Judéia. Quem julgava iminente a chegada de Jesus de Nazaré em seu Calvário foi surpreendido com um repentino movimento de resistência. O grupo feminino denominado As Mulheres de Jerusalém promoveu uma passeata em represália ao veredicto de Pilatos. Dispersadas pela ação policial, denunciaram, entre outros abusos de autoridade, a cruel perseguição aos Apóstolos, todos foragidos. Editorial: A flor vencendo a catapulta.

TERCEIRA QUEDA – TARDE DEMAIS. Judéia. O aparente esgotamento físico de Jesus Nazareno, responsável por sua terceira e última queda, aconteceu em um momento tardio: aos pés do Monte Scopus. O local, escolhido para acomodar atos de punição por sua excelente visibilidade, tem um cume amplo o suficiente para abrigar mais duas cruzes, hoje destinadas a ladrões. No Caderno de Viagens: Via Sacra – como nascem os roteiros da fé.

O REI ESTÁ NU! Escândalo na Judéia! Não bastassem as tantas humilhações, Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus, é despido de suas vestes ao pé da cruz. Contudo, a atitude gerou um efeito contrário ao esperado, pois o Profeta apresentou um porte considerado divino pela assistência. Maria Madalena, procurada por nossa reportagem, negou-se a dar qualquer depoimento. E mais: A dieta balanceada do pão e do vinho.

TEMPOS DE CRUELDADE! Judéia, urgente! Um espetáculo de violência e brutalidade, iniciado com açoites e seguido de toda ordem de atrocidades, culminou com uma covardia jamais vista: na frente de uma multidão cúmplice e apoiadora, Jesus de Nazaré foi cruelmente pregado na cruz. Calou-se até o pessoal dos direitos humanos, que acompanhava o crucificar dos ladrões. Em nosso editorial: “Que dirão de nós daqui a 2000 anos?”.

MORTE AO ABANDONO DE DEUS. Judéia. “Oh, Pai, perdoai-vos. Eles não sabem o que fazem”. Ditas as últimas palavras, morreu Jesus de Nazaré. Segundo as autoridades, ainda é cedo para afirmar se a causa do óbito foi o esgotamento físico imposto pelo percurso, o sangramento no crânio, as hemorragias nos pés e nas mãos, o quadro de insolação ou resfriado advindo da seminudez. Não descartam, também, o lancinar no coração. Aguardam-se mais informações com o resultado da perícia.

MARIA CHORA COM O FILHO NOS BRAÇOS. Judéia. Abalos sísmicos de 5,4 graus denunciaram a morte daquele que denominavam Rei dos Judeus. Enquanto autoridades públicas creditaram o fato a uma enorme coincidência, circulava um boato em instâncias religiosas de que um erro de avaliação pudesse ter sido cometido – versão negada em Roma. De concreto, apenas a dor de uma mãe que sofre com o jovem filho morto em seu colo. No caderno Lar & Família: Quando os filhos deixam de ser preocupação?

MORTO E SEPULTADO. Judéia. Ocorreu ontem o sepultamento de Jesus de Nazaré. Com a intercessão do poderoso José de Arimatéia, o corpo foi liberado e encaminhado ao sepulcro. Acompanharam a cerimônia apenas os parentes e amigos mais próximos. Alertado de uma pretensa ressurreição, Pilatos mandou montar guarda no local. Até o final desta edição (sábado), nenhuma novidade.

Conto contíguo 5

CONTO CONTÍGUO

DESCORTINADA

Houve um dia de grandes revelações. Um recorte na minha vida. Era uma manhã de dezembro, bem naquele espaço entre o final das aulas e o Natal. Senti medo – que papelão... Pudera: tinha dez anos e, mesmo já crescido, nunca havia imaginado nada nem parecido. Sim, escondem essas coisas da gente.

Eu jogava no gol, e a regra era clara: o goleiro, por não estar cansado de tanto correr, buscava a bola que ia para fora. Fui, que remédio. A bola rumara para o jardim dos fundos da casa do seu Jurandir. Muro baixo, sem cachorro. Fácil. Quer dizer, em termos. O homem era brabo – não gostava de ninguém pulando para dentro do pátio. Mas eu era ágil. Ladino. Goleiro!

Olhei bem antes de saltar: a bola estava encolhida debaixo da grande roseira, com o risco de sair furada por algum espinho. O canteiro ficava bem no meio de dois ares-condicionados – um para cada quarto. As janelas estavam abertas e as cortinas se agitavam para fora com o vento, como se me abanassem para longe dali. Devia ter desconfiado de algo. Crianças não ligam para prenúncios.

Os gritos que vinham do campinho me apressavam. Olhei para um lado e para outro. Atirei-me. Passei pelo trilho de cascalho que levava para a garagem, pela casinha do gás, pela verde mangueira de jardim – espalhada no chão – e cheguei na primeira janela. A bola estava a três passos de distância, bastava me esgueirar e apanhá-la. Então, o inesperado.

Aconteceu de a cortina esbarrar no meu rosto, chamando o olho para dentro do quarto. Lá, deparei com dona Jurema só de toalha. Segurei a cortina ligeiro, tentando me esconder e, ao mesmo tempo, continuar olhando. A mulher era enorme: faltava toalha para todos os lados. Estava de costas para a janela – sorte a minha. Abriu a porta do roupeiro e, pasme!, atirou a toalha na cama.

Quando eu cheguei de volta ao campo, segurando a bola, me perguntaram o que havia acontecido. Disseram que eu estava com a aparência de quem tinha visto fantasma. Menti que o velho Jurandir quase me pegara dentro do pátio. Acreditaram. O jogo recomeçou e eu tomei três gols fáceis de defender. Pedi para sair. Fui para casa.

No caminho, cruzei com a dona Jurema, que puxava o carrinho de feira. Olhou para mim e piscou. Petrifiquei. Virei para trás e acompanhei aquelas enormes ancas sacudindo o vestido estampado. Naquele momento, só eu sabia. E o seu Jurandir, na certa. Dona Jurema, incrível, tinha quatro bundas.

18.4.08

Número 260

MÍDIA CRUCIS I

A julgar pela insistente – e muitas vezes apelativa – cobertura da imprensa em casos como o da morte da pequena Isabella, especulo sobre as maneiras de repercutir os acontecimentos da Via Sacra, recém lembrada na Quaresma.

CULPADO! Judéia. Em concorrido julgamento – com lotação esgotada no Pretório –, Pôncio Pilatos, o homem forte de Roma, lavou suas mãos. Com este gesto, condenou Jesus de Nazaré à pena capital, a ser cumprida na cruz. Acompanhe a inconsistência da acusação, o dilema de Pilatos, a repercussão popular, os desdobramentos políticos e um artigo exclusivo: Jesus X Pilatos – a quem a História absolverá?

TERÁ JESUS COSTAS LARGAS? Judéia. Imagens exclusivas flagraram o momento exato em que os Centuriões Romanos depositaram a cruz nas costas de Jesus Nazareno, já ornado por uma coroa de espinhos. Parte da população esperava a intervenção de Deus em favor do filho, hipótese negada pelo próprio condenado. Fatos como esse abalaram a credibilidade do Profeta, em declínio nas pesquisas. Veja, também, nessa edição: Onda de crimes – haverá madeira para tanta cruz?


PRIMEIRA QUEDA – UM PERCALÇO ANTECIPADO. Judéia. Conforme havia sido previsto por especialistas, um erro de projeto deixou a cruz destinada à execução de Jesus de Nazaré pesada demais. Tal equívoco fez surgir uma banca de apostas na terceira estação, na qual se especula a chegada de Cristo ao Calvário. No caderno Vida & Saúde, artigo inédito: Força da fé – uma análise teólogo-cinesiológica.

MARIA SE DESESPERA: “AI MEU JESUS!” Judéia, urgente. Sobe a tensão na Via Crucis: contrariando a expectativa das autoridades, Maria, mãe de Jesus, rompeu o cordão de isolamento e alcançou o filho em meio ao suplício. Depois de passar mal e ser amparada por populares, Maria se recusou a falar com a imprensa: “Saiam daqui! Vocês estão a serviço de Roma!”. Em nosso editorial: Ser mãe e padecer no paraíso.


SIMÃO SOLTA A CRUZ (E O VERBO). Judéia. Acompanhe a entrevista exclusiva no exato momento em que Simão Cirineu soltou a cruz. Veja o que pensa o homem que, por instantes, sentiu a responsabilidade de ser um Profeta. Destaques: “O povo está sendo manipulado pelos sacerdotes”, “A cruz pesa que é um demônio!”, “Isso aqui é importante, claro, mas não podemos nos esquecer dos escravos do Egito”. Na coluna Empresas & Negócios, Os Vendilhões do Templo.


TODOS OS ÂNGULOS DE VERÔNICA. Judéia Cultural. Depois de se tornar uma celebridade instantânea, Verônica – a mulher que limpou o rosto de Jesus – posa para uma série de retratos. A moça, recém tornada sócia de uma manufatura de utilidades de cama, mesa e banho, mostra o pano ensangüentado e garante que também é de sua lavra a toalha da Santa Ceia. Mais: dicas para uma prática receita de Kafta na bandeja.

JESUS VOLTA A CAIR. Judéia. Em nova queda de Jesus, sobem as especulações de que a Via Sacra não ultrapassará a sétima estação. Analistas consideraram insuficiente o aporte fornecido por Simão Cirineu, quadro agravado pelo forte calor no Oriente Médio. Porém, fontes próximas ao Profeta garantem que as reservas do Jesus são milagrosas. Na coluna de Recursos Humanos & Gestão: Persistência – eis o segredo de sucesso.

Continua na próxima semana...

Achado não é roubado 4

ACHADO NÃO É ROUBADO

AMA DOR:


Diz-se de que parou de praticar esportes, passou dos quarenta e não resiste ao ser convidado para uma peladinha.

10.4.08

Número 259

XADREZ, PRETO NO BRANCO

Peões.
São, de longe, os mais numerosos. Estão na linha de frente e isso não é reconfortante. Ao contrário, o estrategista não pensa duas vezes antes de lançá-los adiante, mesmo que em poucos movimentos encontrem a morte inglória. Vivos, servem de escudo. Ou moeda de troca. A parca mobilidade e a posição vulnerável são superadas em uma única e improvável alternativa: trilhar todo o tabuleiro incólume e, suprema glória!, tornar-se uma peça mais nobre, quem sabe até uma rainha. No movimento seguinte esquecerá que um dia foi peão.

Cavalos.
Nasceram para fazer o que deles se espera: passar por cima de tudo e de todos – movimento físico capaz de abrigar em si a galopante metáfora. São úteis na defesa e no ataque. Mas há quem não consiga dominá-los. Montar boas estratégias em cima de cavalos é considerado jogo elevado, superior. Basta reparar que as crianças (e os principiantes em geral) mais se divertem com o deslocamento em “L” do que tiram proveito dele. Quando descobrem sua força, vêem-se fascinados. Perder os cavalos é ficar a pé no tabuleiro.

Bispos.
Movimentam-se segundo os princípios divinos: reto, apenas por vias tortas. Encontram saída mesmo quando alguma peça está postada bem à sua frente, ou cerceando o movimento lateral. A força dos bispos nasce do poder deste estranho viés. Se pregam a palavra de um deus, nem assim deixam de servir ao seu rei, negro ou branco. E, por ele, matam ou entregam suas vidas em sacrifício. Não à toa estão ao lado da nobreza quando o jogo principia: a fé e a política parecem andar sempre juntas.

Torres.
Obras concretas da engenharia: sabem tudo de ângulo reto. Nada tira uma torre de seu trilho, não importa o tamanho do deslocamento. Estão nas extremidades do tabuleiro não por acaso: dão a ele ares de fortificação. Nem no mais moderno e inusitado movimento do xadrez, o roque, elas abandonam sua bitolada razão de ser, impondo ao monarca um corrupio à sua volta. Não costumam cair no princípio do combate, servindo de linha de defesa e, sobre um adversário debilitado, uma espécie de avanço imobiliário especulativo.

Rainha.
La donna è móbile qual piuma al vento. No jogo em que a capacidade de deslocamento dá a idéia do poder de cada peça, a rainha é mais do que tudo uma soberana. Exceção feita ao salto do cavalo, nada limita a articulação da esposa do rei. Luta pela integridade de seus domínios e se revela uma guerreira talentosa e fria. Quando declina, expõe ainda mais a debilidade do rei, que estará disposto a se casar com o primeiro peão (peã?) que conseguir atravessar o tabuleiro.

Rei.
Ah, o rei... Uns dirão que é uma peça de movimentação limitada pelas cruéis amarras do bom senso, da diplomacia e da moderação. Outros que não passa de um egocêntrico mimado e insensível, capaz de sacrificar a tudo e a todos para manter ou ampliar os seus domínios. Até há quem o julgue um covarde, preocupado apenas em não morrer. Porém, ruim com ele, pior sem ele. Afinal, quem disse que do outro lado da disputa existe um presidente ou um primeiro-ministro? Existe? Ah, pois é...

(Mini) Conto Contíguo 4 - combinando

(MINI) CONTO CONTÍGUO

CHEQUE


Os peões invadiram a casa do rei. Aplausos do bispo. Caíram as torres. Soltaram os cavalos. À rainha só interessava a pensão.

4.4.08

Número 258

AS CERTEZAS EM DÚVIDA

– Com certeza!

É pouco provável que alguém tenha feito uma estatística sobre isso, mas sinto bastante elevada a quantidade de entrevistados que hoje em dia iniciam suas respostas com o bordão acima. Determina este grau desmedido o excesso de jogadores de futebol diante de microfones (eles adoram bordões) e o vício da imprensa em perguntar afirmando – Galvão Bueno fez escola. Este número inflacionado de certezas, no entanto, deveria criar no espectador (ou no ouvinte) algumas dúvidas. Explico.

De onde tiram tantas certezas? Essa questão se impõe na medida em que, com o passar do tempo, menos delas eu tenho comigo. Seja na política, seja na ciência, na profissão, nas relações afetivas etc, novos fatos e criativos pontos de vista demolem todos os dias qualquer antiga e sólida certeza. Até mesmo no futebol, ou principalmente nele, as certezas têm me parecido mais raras do que nunca. E, justo agora, o entrevistado se adianta em estar convencido. Quem entende isso?

Outra dúvida: onde foi parar a genuína convicção? Sim, na medida em que escuto com uma freqüência avassaladora o com certeza ser sucedido de um mas. E, depois dele, uma opinião diametralmente oposta à certeza dita no começo da argumentação. Ou os entrevistados andam muito gentis com os argüidores, envergonhados em desmenti-los, ou o com certeza está saindo no piloto automático, sem necessariamente fazer algum sentido. Portanto, mais inútil do que geladeira para esquimó.

Também não compreendo o fato de a riqueza da língua pátria estar assim desperdiçada. Se a certeza existe – vamos creditar ao entrevistado o benefício da dúvida –, por que não começar a resposta com um sucinto sim? Ou com um breve de fato? Ou um coloquial isso mesmo; um elaborado partindo desta tese; um conclusivo lógico; um lacônico parece; um descomprometido você é quem afirma? Com tantas maneiras interessantes de começar uma resposta, qual seria o motivo de permanecerem todas elas guardadas na memória enquanto o com certeza já anda puído de tão gasto?

Há um grande movimento nacional no combate à praga do gerundismo. Até onde sei (olha aí outro bom começo...), ninguém quer, com ele, extinguir o gerúndio, e sim deixá-lo com a proporção equilibrada no ecossistema do nosso idioma. Lanço agora, caso ainda não tenha sido feito, o combate profilático ao com certeza nas entrevistas. Ora, dirão: quem seria eu para indicar a alguém como deve ou não iniciar uma resposta ao microfone. Mas, e se não estiver sozinho? Se não sou o único incomodado com a expressão?

Bom, já me serve o semear de uma dúvida nos leitores deste texto: será que este bordão, quando dito, não estará me desfavorecendo, nivelando por baixo, rebaixando minha opinião? Se você concorda comigo, fique atento na hora de responder entrevistas e passe a crônica adiante. Estaremos prestando um bom serviço para a sociedade. Com cert... Digo, imagino que sim!

É TERÇA-FEIRA: APEREÇA LÁ!