27.1.12

A noite em que choveu sapos

Número 457

Rubem Penz

Nos anos 1960, as praias em geral (e a Praia do Barco em particular) apresentavam-se às crianças como um lugar num só tempo perigoso e seguro, monótono e desafiador, familiar e estranho. Explico. Perigoso por causa dos escorpiões, cobras, aranhas, siris, corujas, gaviões, jacarés – um Animal Planet fora da tela. Seguro dos ladrões e de boa parte da violência dos homens. Monótono na medida em que não havia sequer luz elétrica, o que dirá movimento, videogame, lojas, TV a cabo... Desafiador pelo referido caráter Animal Planet. Familiar porque passávamos dois meses convivendo com as mesmas pessoas, em grande parte, parentes. Estranho pelo caráter... Você já sabe.

Ávidos por emoções fortes, desde muito pequenos estávamos instigados a explorar o ambiente. Andar sozinhos pelas dunas a procura de roedores e ninhos de quero-queros (péssimo negócio); pescar e tomar banho em pequenas lagoas; voar para telhados ou mergulhar nas fundações dos chalés; desafiar o repuxo do mar bravio e andar na escuridão da noite armados apenas de uma lanterna. Enfim, eu e minha turma (principalmente os meninos) vivíamos a procura de encrenca, frequentando justamente o habitat dos animais perigosos. Nada parecia nos assustar o suficiente, nem mesmo a história da mordida de cobra que quase matou a Verinha, filha do seu Antônio.

Nessas todas, pegar sapos com as mãos já nem poderia ser considerado um grande feito. E como tinha sapos na Praia do Barco! Ainda mais durante os verões chuvosos. Forçados pela dura concorrência de dentro dos charcos, ou atraídos pela facilidade de encontrar insetos onde havia luz, muitos deles se ofereciam para nós, dispensando a necessidade de caça. Pouca coisa era mais divertida do que mostrar um sapão para as meninas morrerem de medo e nojo. Sim, ensaiávamos a arte da sedução pelas lições mais básicas: mil e uma maneiras de irritar as mulheres!

Certa noite, um sábado de baile, eu circulava sozinho pelas voltas do Hotel Vendaval quando um sapo enorme cruzou meu caminho, obra da invisível mão do destino. Chateado por ter sido expulso das casas, onde adultos se aprontavam, e do salão do hotel, que recebia as últimas providências para a festa, aquele sapo descomunal representava uma promessa de cruel vingança. Com ele, eu sabia exatamente para onde ir: à casa da tia Lila. Lá, nada menos do que uma dezena de mulheres se aprontavam para o baile, concentradas em auxílio mútuo (não havia salões de beleza na praia).

Esgueirados pela porta dos fundos, vislumbramos, eu e o sapo, aquele mulherio alegre, tagarelando, umas mais vestidas, outras menos penteadas, ou vice e versa. Então, atirei o sapo para o centro da sala como quem faz uma cesta de chuá, lá de trás da linha dos três pontos. Atordoado pelo tombo, ou por causa do alarido, o sapo não coaxou nem saltou. Em compensação, nunca vi tanta mulher pulando ao mesmo tempo – umas para cima de cadeiras, outras sobre as mesas ou decolando para as camas dos quartos. Gritavam desesperadas pelo tio Pepino, que saiu do banho segurando a toalha na cintura, pronto para enfrentar o Armagedom. Foi o que vi, antes de sumir na escuridão, anonimato a dentro.

Domingo, tanto quanto a música ou o cardápio da festa, o sapo foi assunto obrigatório. Desejavam saber quem teria sido o pestinha que atirara aquele animal no meio da mulherada. Muitos eram os suspeitos, todos alçados a este patamar por merecimento. Mas eu não era citado – imagina só, um filho da Isolde. Desejando o justo reconhecimento, tratei de confessar o crime. Contudo, estranhei a complacência. Desde antes dos dez anos de idade, o bom mocismo me condenava (ou, no caso, absolvia). Eu e o bicho, porém, sabíamos: choveu sapo por pura maldade. Independentemente do fato de eu ser um verdadeiro anjo. Até hoje.

 

O calor que tem feito na cidade não está escrito? Aproveite essa oportunidade:

Soa Assim, o verão de Porto Alegre em crônicas, 2º turma da oficina literária intensiva em local e horário de Happy Hour.

Cinco encontros, dias 31 de março, 07, 09, 14 e 16 de fevereiro (terças e quintas-feiras), 19h, no Boteco Apolinário. Ventile suas idéias!

Informações e inscrições em rubempenz@gmail.com Excreva djá


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20.1.12

Depois dela, não apareceu mais ninguém?

Número 456

Rubem Penz

Nossos ídolos ainda são os mesmos

Belchior

As proféticas palavras de Belchior, amplificadas pela interpretação inigualável de Elis Regina, ecoam forte trinta anos depois da mais triste manchete: aos 36 anos, morre a maior cantora do Brasil. De lá para cá, inverti a condição de filho (17 anos de idade) para assumir a de pai com filhos de 15 e 11. E meus ídolos ainda são os mesmos. E as aparências não enganam.

Posso afirmar sem exagero que, à época, já sabia tudo de Elis, em plena adolescência. Acompanhava sua fase mais madura de perto, decorando músicas de Nascimento & Brant, Bosco & Blanc, Jobim e tantos outros mestres. Também curtia a reverberação vinda dos anos 1960 – época dos Festivais – e a fase setentista, estudando as divisões rítmicas de um dos mais elevados períodos da música popular brasileira (MPB). Mas não quero falar das coisas que aprendi nos discos. Quero contar como vivemos, e o que aconteceu conosco durante essas décadas de ausência.

Antes, é preciso dizer que Elis Regina sempre foi uma artista de vanguarda, mesmo quando, para avançar, era preciso gravar Nelson Sargento, Adoniran, Cartola. Precoce, cantou standards internacionais na infância. Ao completar 20 anos, foi a anfitriã dos maiores expoentes da música nacional (n'O Fino da Bossa, TV Record, ao lado de Jair Rodrigues). Com parcos 28, gravou Elis & Tom, um dos mais importantes álbuns da música em todos os tempos. Midas vocal, por ela passaram nossos principais compositores, transformando obras de autores iniciantes em clássicos de modo instantâneo.

Nos anos que seguiram sua morte, a crítica batia em uma só tecla: quem seria a nova Elis Regina? Mas, a cada nova cantora, parecia que Elis cantava melhor, como bem disse Nelson Motta. Lentamente a MPB perdia espaço nos auditórios, no rádio e na TV. Também deixava de encantar os jovens, atentos ao ascendente rock nacional. A música brasileira de qualidade passou a ser um produto de exportação, assim como os melhores grãos de café. Por fim, o deslocamento de nossos sentidos da cintura escapular para a cintura pélvica terminou com as ilusões: sem apresentar uma coreografia sensual, a MPB deixou de ser atraente.

Hoje, está claro: o fenômeno Elis não se repete, ou já teria acontecido. Mas as lágrimas que vertem sempre que escuto Saudade dos aviões da Panair, para ficar numa só música, não lamentam o fim de uma Era. Lastimam a demora em mais artistas assumirem posições de vanguarda, resgatarem a MPB da bunda, devolvendo aos holofotes a arte feita com e para o cérebro. Ou mesmo para o coração. O novo sempre vem, diz Belchior. Instrumentistas magníficos com 20, 30 anos estão por aí para quem quiser ouvir. Letristas e compositores, também.

Com o advento da internet, e o enfraquecimento das grandes corporações, talvez o sinal esteja aberto para os jovens. Apresentem-se! Vejo vir vindo no vento o cheiro de nova estação. Elis não voltará. Mas seu exemplo não há de nos abandonar.


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13.1.12

O politicamente correto é...

Número 455

Rubem Penz

O politicamente correto é um sutiã cuja presilha não abre, exigindo desculpas por tamanha inabilidade ao invés de arrancá-lo logo e de uma vez. Politicamente correta é a comida de hospital – saúde divorciada do prazer. Politicamente correto é mãe que não deixa o filho sujar os pés, mãos ou cabelo, pois, onde já se viu? Pode ficar doente... E os outros, o que vão pensar?!

O politicamente correto é máscara de louça para o preconceito.

Politicamente correto é a censura prévia disfarçada de escudo. No fundo, bem no fundo, a pessoa fica tolhida, desconfiada, com medo de ferir os outros e, com isso, acabar ferida de volta. Politicamente correto é camisinha de força para a língua, pois só pode ser loucura chamar um negro de negro, alemão de alemão, gordo de gordo e manco de manco.

Politicamente correto é focinheira em todos os cães.

O politicamente correto é descrito nas letras em miniatura do contrato, aquelas feitas para condenar quando for vantagem para outros, desvantagem para você. Politicamente correto é sepultamento dos vivos. É a morte da malandragem, é o suicídio dos humorados, é a redenção dos covardes, é a vingança dos recalcados. O politicamente correto é uma faca cega, pois não merecemos o manejo de palavras afiadas.

O politicamente correto rebatiza os filhos para ver se ficam mais bonitos.

Politicamente correto é existir grades no paraíso. É passear em ordem unida, é contrição sem arrependimento. Politicamente correto é garantia de úlceras para o futuro, pois ninguém consegue rodar com os freios de mão puxados sem consequências.

Politicamente correto é toque de recolher.

Politicamente correto é aquele modorrento 0 X 0 que espanta o público, é coito interrompido, é manha, fita, choro sem lágrima. Politicamente correto é não poder tomar chuva, nem mesmo no verão. É aquário, gaiola e canil. É esconder o rosto achando que, assim, desaparecemos.

Politicamente correto é fumei, mas não traguei.

O politicamente correto é, dizem, uma tendência que veio para ficar. É mais civilizado. Mais cordato. Amistoso, suave, palatável. É algo que está tomando conta de tudo e formando uma geração que, agindo e reagindo assim, acreditará estar mais protegida das maldades do mundo. Eu discordo do politicamente correto e o combato enquanto nadar contra a corrente não for crime. Mais do que garantir o direito de eu mesmo ser irônico, mordaz, chulo ou ferino, defendo que meus filhos e netos sejam capazes de suportar contrariedades, provocações, desgostos, frustrações – agressões! – e se defenderem.

Politicamente correto é ministrar tranquilizante para quem deveria estar alerta.


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5.1.12

Reciclagem

Número 454
Rubem Penz
Ainda há quem se surpreenda com a alegria, com a esperança e com a generosidade dos despossuídos, em especial nessa época do ano. E considere um mistério maior do que o destino de nossas almas aquele sorriso desdentado que teima em se mostrar no rosto do morador de rua; a paz de espírito de quem habita uma encosta sujeita a deslizar, exposto à guilhotina de lama; a confiança em dias melhores daqueles que passam fome para mal alimentar seus muitos filhos, vítimas do trágico nascimento. Sem almejar a pretensão de conhecer a chave desse enigma, uma hipótese: em grande parte, quase sem querer, desperdiçamos os votos de Ano Novo. Mas eles não se perdem.
Desde meados de dezembro, ou mesmo antes, veículos de comunicação e mensagens entre amigos em redes sociais nos ofertam boas aspirações para o próximo período. Em proporção de exagero – exagero do bem, é claro –, nos é servida uma verdadeira ceia de palavras. São versos de grandes poetas, mensagens de filósofos e pensadores, conselhos de teólogos e humanistas, tiradas de humor e muitas lições de vida. Nos cálices, valiosas bênçãos. Tudo muito, muito além de nosso apetite, desejo ou capacidade de apreciar e absorver, criando um inevitável excedente.
Por outro lado, o comportamento reiteradamente hostil e egoísta de algumas pessoas deixa evidente que os votos de Ano Novo a elas dirigidos são colocados na beira da calçada mesmo antes de saírem dos pacotes. Gente sem disponibilidade ou paciência para isso – coisa de vagabundo. Tempo é dinheiro, e nada que Drummond tenha nos deixado pagará a conta do cartão de crédito. Para quem não tem o hábito de compartilhar, desejos de felicidade são bajulações, agrados medidos e interesseiros. Para os que não aprenderam a servir, o conforto alheio é tarefa a ser terceirizada. Bem-estar, paz? Estão no plano de saúde e nos muros do condomínio.
Assim, seja do que restou da fartura de nossa mesa, seja pelo descarte dos que sequer abrem mensagens de Natal, toneladas de bons fluidos se tornam disponíveis para reciclagem. A energia positiva que não fomos capazes de absorver jamais se esvai – alimenta os que, por hábito, já lambem o sorriso das celebridades nas fotos de revistas para sentir o tênue sabor do sucesso e da fama.
Votos sem dono escorrem pelo contra fluxo dos esgotos a céu aberto, subindo pelo chão de terra batida até encontrar bom destino no coração de quem valoriza cada migalha de esperança. Na medida em que embalagens de presentes de Natal serão trocadas por centavos no quilo de papelão, os desejos de Ano Novo chegarão para outros destinos, diferentes dos originais. E amenizarão aflições.
Eis a importância de espalharmos sinceros votos de saúde, felicidade e paz: para cada um que os desperdiça, existem muitos que reciclam.

Lembrete:
Soa Assim - o verão de Porto Alegre em crônicas: oficina intensiva de verão começa dia 12. Cinco encontros.  Inscreva-se ou peça detalhes em rubempenz@gmail.com É bacana!
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2.1.12

Oficinas intensivas de verão



Oficina com inscrições abertas: Soa Assim – o verão de Porto Alegre em crônicas

Oficina literária intensiva em horário e ambiente de Happy Hour aborda a influência da estação mais quente na rotina da cidade. Duas oportunidades: uma em janeiro, outra em fevereiro.

Sinopse:
Afinal, o que muda em Porto Alegre durante a temporada de férias escolares? Fica melhor? Fica pior? Essas e outras questões fazem parte da oficina literária Soa Assim – o verão de Porto Alegre em crônicas, ministrada pelo escritor, músico e publicitário Rubem Penz. Para os que ficam na cidade, o convite é irresistível: 5 encontros para conhecer, aprender e praticar o gênero crônica através de exercícios criativos, tendo como tema o verão porto-alegrense. A exemplo da consagrada oficina Santa Sede, a turma se reunirá num botequim, no horário de Happy Hour, com plena permissão para o serviço de bar durante a aula.

Turmas: A oficina é viável com o número mínimo de 5 participantes, com limite de 12 componentes. Maior procura abrirá a possibilidade de turma extra, nos mesmos dias, porém no horário das 21h.
Dias e horários:
Janeiro: dias 12 (quinta), 17 (terça), 19 (quinta), 24 (terça) e 26 (quinta), 19h, num total de 10h/a.
Fevereiro: dias 31/01 (terça), 07 (terça), 09 (quinta), 14 (terça) e 16 (quinta), 19h, num total de 10h/a.
Local: Apolinário, Rua José do Patrocínio, 527, Cidade Baixa – estacionamento próprio (cobrado).
Investimento: R$ 180,00 à vista ou em duas parcelas.
Contato: rubempenz@gmail.comou (51) 9123.5540
Cronograma simplificado:
1ª Aula – 12.01 / 31.01
Apresentação do orientador, da turma e da dinâmica de trabalho. Conceituação do gênero crônica. Crônica/artigo – o espaço da opinião. Características e exemplos do estilo. Exercício de escrita. Leitura prévia.
2ª Aula – 17.01 / 07.02
Leitura dos trabalhos produzidos na aula anterior. Exercício de desbloqueio e preparação para a próxima tarefa.
3ª Aula – 19.01 / 09.02
Crônica em prosa poética. Características e exemplos do estilo. Exercício de escrita. Leitura prévia.
4ª Aula – 24.01 / 14.02
Leitura dos trabalhos produzidos na aula anterior. Crônica/conto. Características e exemplos do estilo. Exercício de escrita.
5ª Aula 26.01 / 16.02
Leitura dos trabalhos produzidos na aula anterior. Considerações sobre as diversas possibilidades a serem exploradas na crônica. Balanço das atividades. Brinde de encerramento.