31.10.07

Número 239

RESGATE

 

Há trinta anos atrás, um jogo de futebol entrou para a história de Porto Alegre. Tornou-se notícia, também, no Brasil e no mundo. Não foi o Grenal do Século ou alguma final de Copa Libertadores da América. Foi uma disputa, aliás, que nem chegou a acontecer. Porém, o que estava em jogo, na tarde de 3 de novembro de 1977, alcançava um valor inestimável: a vida de seis meninos, seqüestrados através de um ardiloso encontro esportivo. Ali, de certa forma, foi alterada a vida de todos nós.

 

Para situar os mais jovens, até os anos setenta do século passado, crianças se reuniam para jogar bola na rua, fosse em bairros periféricos, centrais, ou mesmo diante das mansões da cidade. Filhos da classe média rumavam a pé para a escola, saíam de bicicleta para a casa dos amigos e para fazer compras. Bastava dizer aos pais onde estariam nas horas seguintes e partir. Às vezes, nem isso era cobrado. Livres da pressão – da opressão – de uma rotina violenta, qualquer um de nós, meninos na época, poderia ter embarcado na conversa que prometia um campeonato e entregou um crime.

 

As dramáticas notícias de seqüestros vinham por jornais e revistas. No eixo Rio – São Paulo, parecia ser o delito da moda. Na capital gaúcha, eventos esporádicos ainda não chegavam a afetar hábitos salutares de confiar nas pessoas, andar na rua sem medo, crer na sociedade organizada. Comerciantes nem sonhavam com segurança privada diante de suas vitrines; fruteiras deixavam a mercadoria exposta na rua; cinemas cuidavam apenas de quem tentava "furar" na roleta. Em 1977 – incrível! – as casas de Porto Alegre não tinham grades nos jardins, nem os edifícios em suas portarias.

 

Assim, o seqüestro do time de meninos terminou sendo um marco histórico. Vivi o drama de perto, pois eram meus colegas de colégio – alguns de aula. Consternados, muitos lares viram nascer o medo concreto de perder suas crianças em um ato de violência. Comovidos, comemoraram quando surgiram todos a salvo, como que formando um abraço solidário com as famílias das vítimas. Depois, e de maneira acelerada, Porto Alegre foi deixando para trás a ingenuidade que franqueou a prática de um crime hediondo e tão ousado, urdido por um delinqüente amador.

 

O temor que nascia naquele momento, rápido transformou a paisagem da cidade, em consonância com a alma dos habitantes. Riscos concretos somaram-se às lendas urbanas, como a da Kombi na qual se retiravam os órgãos das crianças. Na medida em que eu crescia, e comigo o discernimento, tanto mais alerta ficava ao caminhar na rua. Vi meu bairro se tornar um deserto ao cair da noite – adeus estudantes caminhando para o colégio – e sumiram os cinemas de calçada. Em três décadas, as moradias se transformaram em presídios de segurança máxima.

 

Claro que poderia ser pior. Fosse um desfecho trágico, no aniversário de trinta anos as famílias chorariam o assassinato das vítimas. Doeria como se não houvesse passado o tempo. Ao contrário, sou convidado para um jogo de futebol que celebra a vida, relembra o alívio sentido no retorno dos seqüestrados e comemora, a despeito do sofrimento, a felicidade remanescente. Em campo, aqueles meninos tornados homens.

 

Porém, festa maior existiria para o caso de outro importante regresso: o da liberdade de andar pelas ruas de Porto Alegre sem apreensão; sem o iminente risco de ser morto por um mísero relógio; sem ser vítima de um seqüestro relâmpago; sem temer pela vida de quem amamos. Na época, seqüestraram nossa paz e nunca mais a devolveram. E o pior: pagamos por seu resgate até hoje, todos os dias. Muito, muito caro.

 

***

 

Quer aprender um pouco sobre a escritura de crônicas? Ou, conhece alguém que queira? Durante o mês de novembro, ministro ao lado de Valesca de Assis a oficina O NATAL AO ESPELHO DA LITERATURA – A VOZ DO CRONISTA. Serão 4 encontros, em terças-feiras. Horário: 9h – 11h30min. Local: Centro Cultural Auxílio ao Tema (Pe. Reus, 919 – Tristeza). Matrículas e informações no 3268-1200, ou www.auxilioaotema.com.br . Olha a chance de um Natal diferente...

25.10.07

Número 238



Dividindo a felicidade com os leitores do Rufar:

 

O Y da questão, de Rubem Penz, está entre os finalistas para o 14° Prêmio Açorianos de Literatura, categoria crônica. A indicação, por si, já representa um grande prestígio ao autor: insere seu livro entre os três melhores no gênero, enquanto o habilita a concorrer, também, ao prêmio de Livro do Ano. O resultado final será conhecido em 13 de dezembro, na Noite do Livro. Parabéns, Rubem!

Editora Literalis

 

 

CONTO COM PATROCÍNIOS II

Literatura de resultados – Outdoor

 

A porta está encostada. Mal entra, Eduardo ouve Rita, do quarto, pedir um minuto só, que já estaria pronta. Conhecendo os minutos femininos, ele dá um ok e fecha a porta atrás de si. Atravessa a sala de estar com destino à sacada – busca uma brisa de verão. Apóia-se no parapeito metálico, cruza as pernas, fita o horizonte. Escuta, displicente, o atrito da cidade. Carrega consigo uma resolução.

 

Seu olhar é atraído por um enorme frontlight, daqueles de três tempos, no exato instante do piscar na troca de tela. Brilhante, um Mazzar preto de modelo esportivo se mostra inteiro, provocante, desafiador. Potência, velocidade, perícia, Carla... Sim, é Carla quem Eduardo vê por detrás do automóvel. Ela, sempre vestida de preto, disposta às mais loucas aventuras. Sua voz suave, suas curvas audaciosas, seu controle mesclando precisão e risco. Aquilo não era uma mulher, lembra, era uma máquina!

 

Mal se materializam as sensações, gira o painel. Agora, ele se depara com as panelas em inox Bacci & Lambi, fundo triplo. Aperta os lábios, estala a língua, saliva: surge Patrícia. Se existiu alguém para levar ao pé da letra a estratégia de sedução pelo estômago, foi ela. Mulher de mil sabores, de nuances, temperos exóticos e aroma convidativo. Com ela, não havia café da manhã sem uma surpresa – que dirá o jantar à luz de velas. Agridoce aqui, salgadinha ali, cremosa. Ah, Patrícia, a quente Patrícia...

 

Novo hiato de luz. Tênis Bluesport Action. Ângela. Conhecera em uma meia-maratona, de passagem. Ela estava de passagem, diga-se com justiça, ferindo de morte sua auto-estima. Por sorte, ainda dava um tempo na dispersão quando ele completou o percurso. Começaram a correr juntos, equilibrando o preparo físico. Não demorou nada até que colocassem seus corpos em outras provas de tirar o fôlego. O combinado sempre era: quem chegasse primeiro, fazia de tudo para o outro chegar também, sem jamais descansar. Bom mesmo era quando chegavam juntos. Muito bom.

 

Outra vez Carla, para acelerar. Muda para Patrícia, para saborear. Agora Ângela, para persistir. Absorto neste moinho de recordações, Eduardo demora até se perceber observado. Vira-se e lá está Rita: toda de vermelho, tomara-que-caia, braços erguidos e apoiados na porta de correr envidraçada. Pose de estrela de cinema. Ela sorri como a dizer – que tal? Eduardo fecha os olhos, conta até dois e os abre novamente. Ainda é Rita, na mesma posição, o sorriso um pouco apagado como quem pergunta – que foi?

 

Eduardo fecha e abre os olhos outra vez, com o mesmo vagar. Rita já não sorri. Suas mãos agora estão na cintura, punhos fechados, cenho franzido. Mesmo irritada, está linda. No bolso esquerdo da calça, ele carrega um par de alianças. Mas está paralisado. Mudo. Buzinadas soam ao longe, na grande avenida, denunciando pressa. Teme piscar outra vez – há o risco de não mais encontrar na frente sua exigente Rita. A vida não é um outdoor.

18.10.07

Número 237

HÁ QUE SE ENTERNECER, SEM JAMAIS PERDER A GROSSURA

 

Ora concordando, ora com o pé atrás, leio artigos neo-feministas com uma freqüência cada vez maior. Sem dúvida, as mulheres, que já devem ser maioria nos bancos universitários, avançam firmes para o domínio das redações. Diga-se de passagem, para o domínio de tudo... Mas esse já é outro assunto.

 

Felizmente, boa parte dos textos são produzidos por mulheres que há muito abandonaram a ira contra os homens. Neles, as autoras tendem a relativizar o papel de vilão imputado ao macho no atacado para identificar, no varejo, apenas os comportamentos condenáveis. Em outras palavras, rumam para o pacifismo sexual. Porém, renitente, a antiga raiva que espumava nas palavras das ativistas de outrora foi substituída por um sentimento muito mais danoso: o desprezo.

 

A pergunta é: por que o homem nascido depois (ou no curso) da revolução feminista mereceria tal desprezo? Uma explicação recai nas possíveis escolhas de tais raivosas na hora de eleger namorados. Radicais, descartam todos os machões do espectro de possibilidades – e macheza não é, nem nunca foi, defeito. Então, acabam com uma amostra, digamos, um pouco viciada. Elas: fortes, decididas, empreendedoras. Eles: frágeis, inseguros, dependentes. Em termos de complementaridade, o casamento é perfeito. Porém, poucos homens se tornam vencedores com os atributos listados. No lugar da paz, o que obtém a feminista com quem não se preza é o controle. E o prêmio? Um banana em casa. Neste momento, ela se recorda de como era imponente o seu pai, de quanta segurança ele inspirava, e vaticina: o homem da atualidade não presta mais para nada.

 

Por outro lado, a reação masculina nestes cerca de cinqüenta anos de propaganda difamatória oscila entre o silêncio e o pastiche – este último destinado a debochar dos artigos feministas. Agindo assim, os homens ajudam a transformar o feminismo em algo totalmente do bem – a luta das oprimidas por direitos igualitários – e o machismo como 100% do mal. E, caro homem, se antes lhe cabia o carimbo de cafajeste, agora seu destino é o lixo reciclável (o lugar onde depositamos tudo o que ficou obsoleto).

 

E aí a novidade: tendem a estar realizadas as mulheres que, ao invés de comprar bonecos novinhos nas prateleiras, estão reciclando os machos jogados no lixo da história. Nossa! – dizem – como esse camarada desprezado é mais forte. Ele fala grosso, mas é capaz de tanta gentileza, não? Humm, tão seguro de si... E, incrível: outros homens o respeitam! Aposto que, com um pouquinho de tarefas domésticas compartilhadas, carinho com os filhos e reconhecimento do meu valor profissional, dará um bom marido.

 

Ah, pois é... Está na hora de inverter o dito de Che Guevara, cabra macho – ainda comentado quarenta anos depois da morte –, e reciclar com inteligência o papel masculino. Para merecer a companhia das melhores damas, hay que enternecerse, pero sin perder la grossura jamás.

 

Convite: Aproveitando o tema, convido a todos para assistirem, na 53° Feira do Livro de Porto Alegre, o evento (Re) Fazendo Gênero – novos rumos para o masculino e o feminino. Mesa comigo, Corina Breton (escritora e tradutora) e Priscila Carvalho (editora do caderno Kzuka/ZH). É dia 02/nov – sexta-feira e feriado –, 16 horas na sala oeste do Santander Cultural. No mesmo dia, 18:30h, no pavilhão de autógrafos, estarei (re) lançando O Y da questão e outras crônicas.

 


10.10.07

Número 236

CONTO COM PATROCÍNIOS

Literatura de resultados – Merchandising

 

João Carlos gira a maçaneta Clavet Veneza IIexclusivo acabamento em estanho – com todo o cuidado: na alta madrugada, o menor ruído fará despertar Maria Lídia, tanto o silêncio do Residencial Flor de Outono – no coração da Boa Vista. Nem respira. Evita até mesmo os pensamentos, que evocam o último sucesso de Máximo Jr., Serei seu, do álbum Poderes – Fonnar Music. Sapatos Pegoraro na mão, calça Digolan e camisa Voar sobre os braços. Menos de seis passos o separam da cama – vestida com lençóis Suavision, tamanho king size. Precisa deitar-se sem que a esposa perceba: já ouviu essa técnica em piadas. O triunfo está próximo.

 

Na metade do percurso, atenta para o rádio-relógio Clicktec Plus: cinco horas e cinqüenta e nove minutos. Às seis, a rádio Caporitã, programa Ontem do Amanhã, com Lourival Loureiro, invadirá o quarto com estridente noticiário. Muito azar! Abandona o plano original e parte como uma flecha para o banheiro, com o cuidado de deixar a roupa no espaldar da cadeira Ricolletto – móveis feitos para durar –, como quem despertara antes da hora.

 

No mesmo instante em que o rádio dispara, João Carlos abre a ducha Amsterdam Monocomando. Entra no box com portas de vidro temperado Vidrex mesmo antes de o aquecedor de passagem Callidys System deixar a água com a deliciosa temperatura do bem-estar. O frio dota sua voz de um vibrato peculiar, ideal para interpretar a música Serei seu, de Máximo Jr., ainda firme na memória.

 

Maria Lídia vira-se num espreguiçar longo e vê a aparência imaculada do travesseiro Plummar Plus ao seu lado. Sente o indisfarçável odor de whisky Johnny Black – fogo amigo! – vindo da camisa do esposo. De um lado, Lourival Loureiro desfila as condições do tempo, um oferecimento Paragripe Xarope. Do outro, João Carlos uiva "vem cá, meu bem / ser minha também...".

 

A mulher ergue-se com enfado. Arrasta as sandálias Leblon até o banheiro do casal. Sentada no vaso sanitário em Cerâmica Cismar, ela acompanha o vulto embaçado enxaguando a cabeça, agora sem música. Cada qual espera o oponente sacar a primeira palavra. Toalha Corpus Casal. Papel Higiênico Alvo Folha Dupla. Os olhares já estão secos. O silêncio paira sobre as gotículas de vapor. Se não houvesse nas paredes a tinta Lacca Ultra – especial para cozinhas e banheiros –, pontos de mofo seriam testemunhas daquela lenta expectativa.

 

– Se fôssemos personagens de Nelson Rodrigues – diz João Carlos, ostentando um esboço de ereção – você terminaria de baixar suas calcinhas, levantava daí e me abraçava.

 

Maria Lídia entra no jogo. Despe, enfim, a lingerie Bellinha Lycra – carícia plena – e, movimento contínuo, abre a porta do armário Movelbagno, ao seu lado.

 

– Querido, – sua voz é doce e displicente – prefiro ser personagem de Agatha Christie...

 

O último pensamento de João Carlos é lamentar a escolha do armário de banheiro para ser o esconderijo de sua pistola Schaffer Titan – possante recurso, suave recuo.

4.10.07

Número 235

SUA MAJESTADE, O PLURAL

 

Na crônica, temos a tentação de julgar que o leitor sempre concorda conosco. Peço paciência, mas vou escrever a frase outra vez: Na crônica, tem-se a tentação de julgar que o leitor sempre concorda com autor. E, desculpe – é importante –, ainda de uma terceira forma: Na crônica, tenho a tentação de julgar que o leitor sempre concorda comigo. Nas três orações, a mesma mensagem. Nelas, mensagens muito diferentes.

 

Analisando as três frases gêmeas do primeiro parágrafo, leitor atento verificará que o grau de exposição do cronista é crescente. Na primeira oração, com o uso do plural majestático (temos), o autor se esconde na multidão, chamando todo mundo para as fileiras do seu argumento. E, como é comum em uma horda, tudo o que é feito – ou dito – será diluído, para o bem e para o mal. Esta é a forma mais segura de construir um ponto de vista e, por isso, a tentação primeira do escritor. Só tem um problema: é uma pequena mentira. Ninguém passou ao cronista, a priori, uma procuração de plenas opiniões.

 

Na segunda maneira de escrever, o artifício utilizado é o da impessoalidade (tem-se). A opinião é de alguém, talvez do autor, ou de um terceiro que falou para ele, ou mesmo do leitor disposto a pegar o bonde andando. Digerida a premissa – falsa ou verdadeira, não importa –, fica permitida a elaboração de um argumento qualquer, libertando o autor para a construção de sua retórica. A engenhosidade desta configuração faz o leitor se encantar com o cronista. "Nossa, ninguém falou isso antes!" – pensará. E aí está o problema: este "ninguém" que falou antes é o escudo do autor.

 

A última forma de oração lá de cima evidencia a primeira exigência do gênero literário crônica: o discurso na primeira pessoa do singular (tenho). Ali está o autor, aquele que assina o texto, em busca de sua particular argumentação. Também, quem sabe, mirando a concordância do leitor (se bem que muitos cronistas tornam seus leitores fiéis pelo estranho caminho da discórdia). Exposto, sincero e aberto ao contraditório, o verdadeiro cronista contabiliza o proveito e o prejuízo de quem se arrisca em muitas opiniões. Às vezes, soa arrogante. Mas, raramente, covarde.

 

De todos os cronistas que acompanho, admiro especialmente aqueles que constroem seus textos com base na opinião singular. Mesmo antes de me dedicar à escritura do gênero – e a seu conseqüente estudo –, já o fazia de modo intuitivo. Estaria mentindo se dissesse que nunca me vali da impessoalidade ou do confortável plural majestático. Pior: tenho uma obra publicada para me denunciar. Há, sim, momentos em que estas formas são adequadas. O problema está em usar demais, ou mesmo tão somente, estas estruturas espertas.

 

Todavia, não posso deixar de terminar o texto sem falar naquele que, na minha opinião, é o pior tipo de cronista. O que coloca as mazelas do mundo no reino de sua majestade, o plural: não deveríamos fazer isso, agimos mal desta ou daquela forma, erramos ao pensar assim ou assado. Depois, com todos nós sob o manto do tal monarca, o autor tira seu corpo fora e oferece o bom caminho na primeira pessoa, transformando-se em Robin Hood, o arqueiro das flechas de auto-ajuda.

 

Leitor, cuidado com o cronista que usa e abusa do plural majestático. Ele pode ser o mesmo que, no estádio de futebol, atira o rádio de pilhas no bandeirinha, olha para o lado e diz: estamos muito alterados hoje, não é?