23.9.08

Número 284



VÔO DE TAXI

Foram muitas as implicações da entrada em vigor da nova lei brasileira versando sobre a combinação de álcool e direção que, leio agora, aumentará o valor das multas. Por ela ser draconiana, penalizando com severidade o motorista que apresentar o menor traço de alcoolemia, reflexos negativos foram sentidos nas casas noturnas – especialmente em bares e restaurantes. Outros setores, com destaque para os serviços de táxi, desta vez saíram ganhando. Os pronto-atendimentos agradeceram a maior tranqüilidade na madrugada, e isso merece ser comemorado: as vidas poupadas. Porém, na mesma proporção em que os cidadãos ao volante decidiram não beber, quem resolveu deixar o carro em casa se viu autorizado a enfiar o pé na jaca. E isso sempre traz conseqüências.

Táxis costumam andar ao rés-do-chão, se considerarmos assim também os viadutos e elevadas. Entretanto, na medida em que a noite avança, o trânsito se desobstrui e a fiscalização some, alguns voam, mesmo sendo isso apenas uma metáfora autorizada a cruzar sinais vermelhos. Porém, voando ou andando devagar, o certo é que os motoristas têm colhido passageiros cada vez mais altos. Obrigado a deixar o automóvel na garagem, um ou outro apela para o sistema da compensação: uma vez que já estou de castigo, o negócio é transgredir. E tome trago! Beber migra de possibilidade para obrigação. Beber muito, um ato de protesto. Se o whisky era para Vinícius de Moraes “o cão engarrafado”, agora ele passa a ser “o cara-pintada on the rocks”.

A coleta de passageiros que exageraram na bebida está exigindo adaptações aos motoristas de táxi. A primeira, e talvez mais importante, é uma acuidade auditiva que beira a decodificação de mensagens cifradas. Compreender o endereço indicado por alguém que enrola a língua é complicado e exige talento. Piora com nomes bem difíceis de pronunciar até mesmo em estado natural, justamente por não serem em português: Rua Comendador Rheingantz, Rua Zamenhoff, Praça Gustavo Langsch. Isso quando o pobre sabe para onde deseja ir. Exagero? Não, pois eu vivi uma situação dessas dando uma carona certa madrugada – história que prometi jamais transformar em crônica, apesar da extrema tentação.

Outra adaptação é desenvolver uma espécie de talento para a consultoria sentimental. Afinal, não faltarão alcoolizados dispostos a dividir com o motorista as dores do mundo. Taxistas insensíveis e maus conselheiros podem fazer subir as estatísticas de suicídios na cidade. Ou separações de casais, fugas de casa, crimes passionais, parricídios. Não convém atirar gasolina em quem já está de fogo, com o perdão do trocadilho. Por alguns instantes, o tempo exato que durar a corrida, quem está no volante será alçado ao patamar de melhor amigo, confidente, irmão mais velho. Doses equilibradas de paciência, ponderação e distanciamento (para não se tornar cúmplice de uma tragédia) farão parte dos serviços prestados.

Porém, a mais importante adequação que o táxi precisará sofrer com os tempos pós-lei de tolerância zero de álcool e direção, o aproximará definitivamente dos serviços de transporte aéreo. E não terá nada com as metáforas de vôos ou altura como sendo o estado etílico. Sob o risco de perder corridas sucedâneas na noite, saquinhos para vômito precisarão estar em local bem sinalizado e de fácil acesso ao passageiro, a exemplo do que acontece nos aviões. Isso, ou o motorista não terá a resposta correta para quando o passageiro perguntar: “Moço, onde eu coloco a pizza de calabresa?”

17.9.08

Número 283


O AMANTE DE LULI

O mal silencioso chamado ciúme nasce na cabeça, tal e qual o par de aspas (quanta ironia). Porém, há quem julgue que ele brota no coração. Consenso mesmo é o de que, para prosperar, ele se alimentará do adubo produzido pelas entranhas do ser. Assim, tanto faz se a pessoa amada dá ou não motivos para que o outro tenha ciúme: dependendo da profundidade de suas raízes, muito mais porcaria o sustentará. Este parecia ser o caso de Amadeu. Certo de ter sua bela mulher assediada, e desconfiado de que ela correspondia a tais apelos, decidiu agir.

Em segredo, Amadeu montou uma página em um site de relacionamento como sendo ele próprio a sua esposa. Luiza virou Luli, apelido íntimo dos tempos de namoro. Alimentou o perfil com fotos verdadeiras e fez questão de ser o mais fiel possível em todas as informações, exceção feita ao campo do estado civil, deixado em branco de propósito. Caprichou na descrição da mulher. Criou um e-mail específico para contatos, com o qual passou a trocar mensagens em nome dela. Luli fez amizades instantâneas e, de modo incriminatório, logo atraiu um suposto ex-colega de escola no grupo. Rogério, o seu nome. Ele a chamou de Lu, demonstrando ter bastante intimidade. Luli, digitou Amadeu: agora sou Luli.

O homem tratou de colher informações sobre a relação de Rogério e Luiza com a própria, enquanto aproveitavam o domingo de sol para caminhar no parque. Ele era um menino muito doce, segundo lembrava, mas um pouco tímido. A amizade entre os dois ficara prejudicada com a partida da família do rapaz para Pernambuco. Uma pena.

– Mas de onde você conhece o Rogério, afinal? – quis saber Luiza.

– Ah, sabe como são essas coisas... – disse Amadeu de modo evasivo – quando menos se espera aparece alguém conhecido.

De volta para a sala de bate-papos virtual, Luli perguntou se a família de Rogério continuava em Recife. Retornaram, é? Veja só: moravam na mesma cidade outra vez. Ah, desde os tempos da faculdade? Nos encontramos na época? Nossa, é mesmo, que cabeça! E no fim, você é? Urologista... Meu Deus, tem gosto para tudo! E por que ainda solteiro? Gay, confessa! Por que não? Imagina, a julgar pela foto, e por ser tão bem sucedido, duvido que faltassem interessadas. Eu? Eu não quero falar sobre isso, não agora. Gosto de ser secretária executiva: menos glamouroso do que parece, mas o salário compensa. Trilingüe – não leu meu perfil? Adorou a foto, é... Bobo! Vou trocá-la, então!

Aos poucos as suspeitas de Amadeu se confirmavam: Luiza fazia amizades muito facilmente para jamais ter um caso extraconjugal. Vivia cercada de homens, também. E agora esse tal de Rogério, aparecido por encanto dos tempos de escola. Precisava saber até onde isso poderia chegar. Permitiu que a troca de mensagens entre Luli e Rogério rumasse para o lado afetivo, deu linha ao Casanova do ginásio e puxou o anzol: marcaram o encontro em um motel.

No dia e hora certa armou campana defronte ao local escolhido. Desastre! O tal Rogério apareceu de verdade, dando materialidade ao ciúme que todos diziam infundado. Ele parecia bem mais forte do que sugeria a foto que mandara pela internet. Seu carro, também, era um espetáculo. Quisera Amadeu ter dinheiro para dirigir um desses... Ainda por cima era paciente, pois entrara pontualmente e aguardava por Luli há mais de meia hora. Quanto mais o tempo passava, mais nojo sentia da mulher: o que ele estaria esperando fazer com ela? Aposto em coisas que Luiza se nega a fazer em casa, delirava num misto de raiva e excitação. E, acariciando o cano de sua arma, planejava em voz alta:

– Mas uma hora o calhorda vai sair por aquela porta. Aí quero ver o quanto ele é homem com meu trinta e oito enfiado na boca!

16.9.08

CONVITE

CONVITE

“Rubem Penz tem aquele talento especial para transfigurar os pequenos acontecimentos do cotidiano em boa, muito boa literatura. Os textos trazem humor, delicadeza, compaixão, contundência: uma espécie de vida em voz alta, como diria outro Rubem, o Braga.”

Valesca de Assis – escritora.

O que:
Autógrafos de O Y da questão e outras crônicas, de Rubem Penz, Literalis
Onde:
Livraria Cultura Market Place Shopping Center, Av. Dr. Chucri Zaidan, 902, SP
Quando:
29/09/2008, segunda-feira, 19h

10.9.08

Número 282

QUARTO 208

É a quarta vez que chego ao mesmo hotel. Também a última, ao menos por um tempo indeterminado: finda o compromisso que tenho na cidade. Quando da primeira vez, me indicaram na recepção o quarto 208. Na semana seguinte, seria o 109. Perguntei se o 208 estava vago e, após a confirmação, pedi para ocupá-lo. Depois, quiseram me acomodar no 209 por duas vezes, mas preferi repousar no mesmo quarto do primeiro dia. Aliás, já vinha pensando nisso no caminho: estando livre, quero ficar no 208. Numerologia? Superstição? Pior... Acho que aprecio uma certa dose de rotina.

Sobre o 208: ao abrir a porta, entramos em um pequeno hall com a porta do banheiro na frente e o quarto à esquerda. Sua simplicidade é acolhedora, o banho bem quente e as toalhas macias. A cama de casal tem a cabeceira almofadada em tecido sintético marrom que imita couro, criados mudos com duas gavetas e lâmpadas de cabeceira que não funcionam. Defronte, o roupeiro de duas portas é contíguo com uma estante contendo prateleiras, gavetas e a prancheta embutida que me serve de apoio para escrever. Completam as acomodações uma TV de 20 polegadas com controle remoto, um ar condicionado que nunca liguei, um frigobar que desligo para poder dormir e uma ampla janela para o jardim interno. O que vi neste quarto para querer voltar? A chance de, na segunda vez, conhecê-lo a ponto de circular até no escuro (especialmente porque as lâmpadas de cabeceira...).

Há quem durma bem em qualquer lugar ou circunstância. Eu, não. Estranho os ruídos, as sombras, a orientação da cama, a altura do travesseiro e por aí vai. Sem frescura, não me deixo abater – apenas acordo cinco vezes durante a noite. Ou 42 vezes, se não desligo o frigobar – esse eletrodoméstico costuma disparar (e me despertar) a cada dez minutos. Mas eventuais desconfortos reduzem muito quando consigo repetir o aposento do hotel. Qualquer quarto, se volto duas ou mais vezes, passa a ser um pouco meu. Pois é...

Essa necessidade de apropriar-se de um local e de uma rotina pode até estar me prejudicando para além do sono. Por exemplo, nesse mesmo hotel, quem sabe o quarto 109 não é equipado com uma TV de 29 polegadas? Ou o 209, que tem uma varandinha, não é maior? Vai ver que, de todas as lâmpadas de cabeceira, só essas duas estão estragadas... (Incrível: em quatro semanas, nem eu, nem ninguém reclamou disso!) De fato, nenhum quarto supostamente melhor me daria conforto igual ao 208 que pude repetir. Metade pela descrença em acomodações muito superiores no hotel, metade pelo bem-estar do espaço conhecido.

Tal assunto sobre pernoites em hotéis, quartos iguais ou diferentes, lâmpadas e sono inconstante deve abrigar alguma boa metáfora escondida sob as cobertas. Ou, à luz da psicanálise, dizer algo definitivo a meu respeito e das pessoas que sentem o mesmo. Na velha e boa filosofia de botequim, poderia indicar que sou um camarada fiel, ou inseguro, maniático, ficando velho. Ou meio maricas, até. Eu mesmo fiquei cismado a ponto de dedicar uma crônica ao fato. E, graças ao texto – o qual escrevo aqui, agora, dentro do 208 –, decidi mudar de atitude! Vou deixar de ser assim conformado. Termino esse parágrafo, fecho o bloco, oculto a prancheta embutida e tomo uma iniciativa mais ousada. Sim: enquanto é tempo, pois nem abri a bagagem. Vou pedir para que me troquem as malditas luminárias de cabeceira!


Pos-scriptum: retornei no ônibus da madrugada, deixando o hotel ainda de dia. No fim, tomei uma ducha e esqueci de pedir novas luminárias. Na próxima viagem, caso dêem para você as chaves de um quarto 208, verifique as lâmpadas antes de mais nada.

3.9.08

Número 281

A“SE” / D“SE”

As teorias científicas são formuladas a partir de uma ou mais hipóteses. Depois, uma série de experimentos terá curso em busca das conclusões – as tais que podem tanto comprovar quanto desmentir as hipóteses (perdoem a simplificação). O problema é que muitos delírios também seguem o mesmo caminho, com uma sutil diferença: partem de uma hipótese impossível de ser comprovada – ou desmentida – e oferecem uma conclusão. Os casos mais corriqueiros deste fenômeno acontecem quando alguém nos diz: “mas se eu não tivesse feito tal coisa...” e, a seguir, apresenta uma conclusão. Pergunto: como podemos comprovar que alguma coisa aconteceria baseado em algo que não aconteceu? Ou mesmo desmentir? Aí que mora o problema.

Desconfio que as pessoas bem sucedidas na vida – aqui no sentido amplo, não restrito ao fator monetário – habitam o universo que chamarei de Antes do Se (A“SE”). Este lugar, que na verdade está mais para um tempo, antecede as hipóteses. Quando chegam a formular um “se”, ele está ligado a uma ação futura: “mas, e se eu der um beijo nela?”. Depois do beijo, caso venha o tapa, a conclusão será de que não foi uma boa idéia. Porém, na hipótese de ser correspondido, o beijo mostrará que ele não era o único interessado. Quem costuma projetar suas hipóteses para o futuro pode até dar com os burros n’água, mas sempre terá uma vida de certezas.

No segundo grupo, localizado em Depois do Se (D“SE”), estão os que tendem a ter a vida empacada. Como se colocam adiante das hipóteses, passam o tempo todo especulando sobre o que poderia ter sido, ao invés de sobre o que será. Para ficar no mesmo exemplo do parágrafo anterior, são as pessoas que passam meses (anos) imaginando o que teria acontecido “se eu tivesse dado um beijo nela” – isso depois de a moça ter deixado o recinto sem nem desconfiar que houvera tal plano. Na realidade, pouco importará a projeção de um casamento feliz ou a morte em um crime passional imposto pelo ex-namorado: sobre o que não aconteceu, todo raciocínio é delirante. Quem vive D“SE”, só tem as dúvidas para se agarrar.

Este tema me ocorreu ao assistir um debate esportivo na TV. Nele, a afirmação delirante de que “se o Bernardinho tivesse convocado o Ricardinho (levantador), o vôlei brasileiro não teria perdido a medalha de ouro na final olímpica de Pequim”. Muito antes de isso ser um enorme desrespeito com os atletas que lutaram muito para conquistar uma medalha de prata, é, no mínimo, uma falácia. Este “se”, referindo-se ao que não aconteceu, pode servir de base para todas as conclusões (inclusive a de que o Brasil seria eliminado na primeira fase, devido aos problemas de relacionamento no vestiário). Os treinadores, assim como os cientistas, formulam suas hipóteses antes dos das partidas e as põem em prática. Se não alcançarem os resultados, partem para novas possibilidades. Mas nem mesmo essas últimas serão garantia de nada – no máximo trarão uma maior probabilidade de acerto.

Imaginar que tudo poderia ser melhor caso outras decisões tivessem sido tomadas, ou outra seqüência de fatos ocorressem, pode até parecer reconfortante, mas, no caso, não passa de especulação mal intencionada. Pior: paralisa o sujeito no passado e transforma o presente em uma eterna frustração. Em tempo, lanço uma hipótese no estilo A“SE”: se nosso país continuar escutando comentaristas dando opiniões sobre o que poderia ter sido – mas não foi – o esporte nacional corre o risco de não ver fechada nem mesmo a ferida aberta na Copa do Mundo de 1950.