MEU MENINO
... Se um dia você for embora
Vá lentamente como a noite
Que amanhece sem que a gente saiba exatamente
Como aconteceu...
Danilo Caymmi e Ana Terra
E aconteceu de o menino confessar para a mãe sua agonia sobre a razão de acordar mal humorado sem motivo aparente, de conhecer o tédio infinito dos pensamentos vazios, de sentir-se estranhamente angustiado (aqui, a consciência da angústia parece ser a exata novidade, e não o sentimento em si). E aconteceu de ele indagar a causa para isso – por que afinal? – se nada a sua volta mudou: permanece o quarto, a escola, os amigos. Que luzes são essas que se apagam (acendem?) causando um novo olhar? Que música é essa que agora lhe encanta? Ou, por outro lado, estará ficando surdo para o acalanto apaziguador de outrora?
E aconteceu de a mãe não oferecer uma outra explicação além do nada simples fato de ele estar crescendo, deixando de ser criança. O mesmo que se passa com todos de sua idade diante do correr das horas. Nada que não tenha afetado também a ela no passado, quando em igual fase da vida, com maior ou menor intensidade. E aconteceu de a mãe pedir para que não ficasse triste, assustado: deveria seguir contando com os pais da mesma forma, confiando em sua sensibilidade, domando o gênio em busca de harmonia possível.
E aconteceu de a mulher contar para o homem o que estava se passando, da impressão mesclada de beleza e dor diante do filho pré-adolescente zarpando para além da infância. De quanto deveriam estar alertas para o novo tempo; preparados para as atitudes impensadas e desconexas sob o comando das incertezas; firmes para suportar o vento que chegará em lufadas constantes, mas com sentidos imprevistos. E aconteceu a concordância de que em cada manhã despertará um novo filho de dentro do mesmo menino, com todas as dúvidas inerentes a quem acabou de renascer com o sol.
E aconteceu de o homem, que não chora, chorar. Reviver o momento em que sua própria inocência ganhou a forma de um tênis surrado e inapelavelmente menor do que os pés. Lembrar do prazer em jogar este calçado fora, para longe da vista de todos os que pudessem confundi-lo com uma criança. Mas o que sucedeu, na época, junto com o ímpeto de quem tinha urgência em adquirir o corpo e o status de homem, foi a surpresa de quanto se fica vulnerável quando descalço. E aconteceu de o pai desconfiar dessa reação mais intensa: as lágrimas seriam mesmo para seu filho ou para si próprio? Houvera, durante toda a vida, substituto à altura para aquele par de tênis relegado aos doze anos?
E aconteceu de o pai fazer um pedido sussurrado, em forma de oração, para Deus iluminar seu filho. Ao fundo, Milton Nascimento: “Se um dia você for embora, ria se seu coração pedir, chore se seu coração mandar. Mas não esconda nada que nada se esconde. Se por acaso um dia você for embora, leva o menino que você é”.