29.5.08

Número 266

MEU MENINO

... Se um dia você for embora
Vá lentamente como a noite
Que amanhece sem que a gente saiba exatamente
Como aconteceu...
Danilo Caymmi e Ana Terra

E aconteceu de o menino confessar para a mãe sua agonia sobre a razão de acordar mal humorado sem motivo aparente, de conhecer o tédio infinito dos pensamentos vazios, de sentir-se estranhamente angustiado (aqui, a consciência da angústia parece ser a exata novidade, e não o sentimento em si). E aconteceu de ele indagar a causa para isso – por que afinal? – se nada a sua volta mudou: permanece o quarto, a escola, os amigos. Que luzes são essas que se apagam (acendem?) causando um novo olhar? Que música é essa que agora lhe encanta? Ou, por outro lado, estará ficando surdo para o acalanto apaziguador de outrora?

E aconteceu de a mãe não oferecer uma outra explicação além do nada simples fato de ele estar crescendo, deixando de ser criança. O mesmo que se passa com todos de sua idade diante do correr das horas. Nada que não tenha afetado também a ela no passado, quando em igual fase da vida, com maior ou menor intensidade. E aconteceu de a mãe pedir para que não ficasse triste, assustado: deveria seguir contando com os pais da mesma forma, confiando em sua sensibilidade, domando o gênio em busca de harmonia possível.

E aconteceu de a mulher contar para o homem o que estava se passando, da impressão mesclada de beleza e dor diante do filho pré-adolescente zarpando para além da infância. De quanto deveriam estar alertas para o novo tempo; preparados para as atitudes impensadas e desconexas sob o comando das incertezas; firmes para suportar o vento que chegará em lufadas constantes, mas com sentidos imprevistos. E aconteceu a concordância de que em cada manhã despertará um novo filho de dentro do mesmo menino, com todas as dúvidas inerentes a quem acabou de renascer com o sol.

E aconteceu de o homem, que não chora, chorar. Reviver o momento em que sua própria inocência ganhou a forma de um tênis surrado e inapelavelmente menor do que os pés. Lembrar do prazer em jogar este calçado fora, para longe da vista de todos os que pudessem confundi-lo com uma criança. Mas o que sucedeu, na época, junto com o ímpeto de quem tinha urgência em adquirir o corpo e o status de homem, foi a surpresa de quanto se fica vulnerável quando descalço. E aconteceu de o pai desconfiar dessa reação mais intensa: as lágrimas seriam mesmo para seu filho ou para si próprio? Houvera, durante toda a vida, substituto à altura para aquele par de tênis relegado aos doze anos?

E aconteceu de o pai fazer um pedido sussurrado, em forma de oração, para Deus iluminar seu filho. Ao fundo, Milton Nascimento: “Se um dia você for embora, ria se seu coração pedir, chore se seu coração mandar. Mas não esconda nada que nada se esconde. Se por acaso um dia você for embora, leva o menino que você é”.

22.5.08

Número 265

CARTOLA NA CABEÇA
(Angenor de Oliveira – 1908-1980)

Quem veio antes: Angenor de Oliveira ou Cartola? Angenor, dirão, na pia batismal. Cartola só viria a ser assim conhecido por causa de seu chapéu-coco, que servia para proteger os cabelos do cimento nas lides da construção civil. Hoje, passados cem anos do nascimento, normas de Segurança no Trabalho ceifariam mais da metade da poesia do mestre, pois não há lirismo que resista ao apelido de “Capacete”. Ainda mais amarelo, que não é nem verde nem rosa.

Mas, afinal, quem veio antes? Essa questão ainda persiste. O menino Angenor logo aprendeu a tocar cavaquinho, instrumento de seu pai nos ranchos – grupos organizados para os folguedos da época. Depois, ainda de maneira autodidata, migrou para o violão. E, se aprendeu sozinho, ou com dicas aqui e ali dos músicos mais velhos, é possível dizer que sua música – a mesma que encantou Heitor Villa-Lobos – já estava na cabeça. E, na cabeça, não há outra coisa senão Cartola.

Ainda perseguindo a dúvida sobre a primazia entre Angenor e Cartola, é preciso dizer que Angenor estudou apenas até a quarta série. Em uma época repleta de analfabetos, o início do século XX no Brasil, não se pode dizer que fosse assim tão pouco. Mas, como já havia muitos “Doutores” no Rio de Janeiro, para intelectual o jovem não servia. Tanto que se tornou pedreiro, como já foi dito. Logo, se não veio da escola sua intimidade com as palavras – atributo primeiro dos poetas –, significa que, Cartola, um dos mais importantes talentos da Música Popular Brasileira, já veio pronto.

Foi por Cartola que dona Deolinda largou seu casamento. Mulher mais velha, sustentou o inconstante pedreiro para que ele se tornasse um compositor requisitado. Cartola também fez nascer a Estação Primeira de Mangueira, para a qual destinou as cores verde e rosa do rancho de sua infância. Mas a nem a dedicação exclusiva de compositor à Mangueira, no momento em que deixou de fornecer sambas para os grandes cantores do rádio, o salvou de uma decepção. A diretoria boicotou seu samba e, avesso à politicagem, afastou-se da escola. Depois, mal recuperado de uma meningite, viu falecer sua Deolinda. Mudou-se para o distante Caju, onde morou com Donária por muitos anos. Tamanho foi o sumiço que Cartola foi dado como morto. Era então Angenor quem vivia, dirão!

Quando dona Sérgio Porto encontrou Angenor, ele subsistia de biscates, estava desfigurado e acabado pela bebida. O jornalista resgatou o artista que, então, foi encantado por Zica. Este novo amor levou o Cartola de volta ao Morro da Mangueira e para perto da cachaça certa: seu amigo Carlos Cachaça. Novos sambas e empregos fixos ressuscitaram o artista. O curto período do Zicartola, restaurante que misturava samba e boa comida, inaugurou este formato de casa tipicamente carioca. De tão bem freqüentado – lá estavam jornalistas, poetas, intelectuais e músicos –, foi o grande responsável pela união entre o morro e o asfalto. Na época, nascia a Bossa Nova.

Enfim, Angenor de Oliveira ou Cartola, quem veio antes? Acho que Cartola chegou primeiro, escolhido por Deus para ser, nas palavras de Drummond, um sambista de “delicadeza visceral”. Ou, como disse Nelson Sargento, alguém que nem existiu, pois “foi um sonho que a gente teve”. Um Angenor qualquer, não o eterno Cartola, teria nascido, quem sabe, nos dias de hoje: em um mundo transformado pela aridez de ritmos e melodias que se parecem com bate-estacas; em um Brasil habitado por artistas pré-moldados; em um cenário musical cuja tinta brilhante mal esconde o interior oco; na pele de um pedreiro destinado a ter o apelido de “Capacete”. E que veria sua namorada dançando o Créu.

15.5.08

Número 264

IGUAIS DIFERENTES

Em três ou quatro oportunidades iniciei crônicas sobre a criação de Cotas Raciais nas universidades brasileiras. Em um mesmo número de vezes abandonei os textos. Isso, de desistir, não aconteceu porque o tema não vale a pena. Tampouco por não ter opinião formada sobre ele. Muito menos por entender meu ponto de vista como irrelevante – prefiro acreditar nele como útil para quem busca as mais variadas informações para formular seus próprios conceitos. Pensando bem, talvez eu evitasse falar sobre as tais Ações Afirmativas pela razão de ser, eu, eternamente vítima de preconceito. Afinal, sou incontestavelmente alemão. Ou, preferindo o termo politicamente correto, teuto-brasileiro. Mas agora chegou o momento.

O nazismo, depois de ter patrocinado um monstruoso genocídio no século passado, conseguiu a façanha de tatuar uma ameaçadora suástica na pele de todo descendente germânico – mesmo naquele, como eu, nascido no pós-guerra e em solo brasileiro. Ainda mais quando o fenótipo característico dos povos do Norte, o mesmo exaltado na tal “raça ariana”, é mais do que evidente. Sim, eu não me pareço com um legítimo alemão apenas entre os sul-americanos: calado, qualquer europeu diz que sou da turma da cerveja e do chucrute (não é exagero, já aconteceu). Por isso, basta eu me pronunciar sobre algo que envolva etnia, cor da pele ou ascendência para a tal suástica manchar a minha testa. Daí até agora ter calado sobre o tema das Cotas Raciais: o receio de virar um arauto de Hitler.

Compreendido que também sinto na pele a marca indelével do preconceito, e que sou impotente contra isso – nada do que eu faça apagará a história –, afirmo a minha solidariedade com o cidadão afro-brasileiro. Considero uma injustiça o fato de que, mesmo tendo passado cento e vinte anos da abolição da escravatura, sua tez negra relembre o passado de diferenciação social. É a suástica a assombrar um lado, e as correntes, o tronco e a senzala o outro. Logo, nem a derrota de um grupo de racistas confessos ao final de Segunda Guerra Mundial, nem a vitória das teses abolicionistas no entardecer do Império parecem ser suficientemente fortes para fazer desses tristes episódios páginas viradas.

Sendo assim, habito a trincheira dos que preconizam o vestibular (ou qualquer outro concurso público) livre da informação de tom da pele. E torço para que as ações diretas de inconstitucionalidade no que envolve o PROUNI e as Cotas Raciais em vestibular saiam vencedoras na justiça. Ao mesmo tempo, sou solidário com os que lutam por uma educação pública de melhor qualidade nas séries iniciais e em nível médio, a única saída para oferecer condições equilibradas de acesso ao nível superior. Um direito historicamente negado aos menos favorecidos, tenham eles a pele de qualquer tom.

Um grande alívio é não estar sozinho nesse lado da batalha: os baianos Caetano Veloso e João Ubaldo Ribeiro e o maranhense Ferreira Gullar, entre outros nomes ilustres, são desfavoráveis ao critério de Cotas Raciais. A eles ninguém acusará de nascerem tão próximo de Novo Hamburgo como eu. Enfim, fico honrado e mais tranqüilo de termos brasileiros com crenças iguais, mesmo de origens tão diferentes. Ao mesmo tempo em que sigo com igual respeito a quem pensa diferente, diga-se de passagem.

Convite: vou unir baquetas e canetas!


Palestra: Centenário de
Cartola – “As rosas não
falam”
Quarta-feira, 21 de maio, 19h30 na Livraria Cultura

Em 11 de outubro de 1908 nascia no Rio de Janeiro Angenor de Oliveira, vulgo Cartola, compositor chamado por musicólogos “mestre e divino do morro”. Um dos ícones da Música Popular Brasileira (MPB) e fundador da Estação Primeira de Mangueira, Cartola uniu o morro e a cidade através do samba. Refletir sobre sua vida e obra, seu legado poético e relevância no cenário cultural brasileiro é a proposta dos professores Maria Regina Barcelos Bettiol, Doutora em Letras pela Université Sorbonne Nouvelle Paris III, e Marlon de Almeida, Doutorando em Literatura Brasileira pela UFRGS, poeta e escritor. A eles, soma-se Rubem Penz, cronista, músico e compositor. Em participação especial, David Sosa, saxofonista, clarinetista e cantor, e Cristiano Fischer, violonista.

Palestra : Centenário de Cartola – “As rosas não falam”
Local: Auditório da Livraria Cultura - Shopping Bourbon Country
Av. Túlio Rose n100 /2 pavimento
Data: Dia 21 de maio de 2008,
Horário: 19h30min
Ingresso: Entrada franca

8.5.08

Número 263

COLOCONFORTOL DE MÃEZONA

Formas de apresentação: essa medicação é usualmente encontrada em embalagem de carne e osso. Porém, nos casos em que expira a validade, ela pode ser usada sempre que for evocada sua lembrança, com efeitos semelhantes. Administração intravenosa, para fetos; via oral, para bebês até meados de 1 ano, e tópica para uso pediátrico e adulto.

Composição: cada grama de Coloconfortol de Mãezona contém a dose certa de carinho para um dia inteiro de paz. Costuma apresentar medidas balanceadas de compreensão e cobrança, tornando-se ser excelente para fins de conselhos. Tem amor incondicional.

Ação esperada do medicamento: atenua sintomas variados, desde a dor física – do tipo ferida no joelho, fraturas, hematomas e arranhões –, até mau desempenho escolar, decepção afetiva (namoro ou amizade), dor-de-cotovelo, dor-de-corno etc. Age de modo protetor e provedor, aplacando a fome do corpo e da alma.

Cuidados com o armazenamento: esse medicamento, ao contrário dos demais, deve ser mantido bem ao alcance da mão das crianças. E, na medida em que se alcança a autonomia, deve ser acondicionado cada vez mais distante, evitando dependência. Conserve alguma rotina de telefonemas e carinhos espaçados (medida complicada, sem excesso, sem falta).

Prazo de validade: há controvérsias. Coloconfortol de Mãezona, em sua apresentação natural (carne e osso), tem um prazo variável regido pela fatalidade. Mas é eterno em forma de lembranças. Ainda é possível de ser encontrado de modo simbólico – função materna. Assim, sempre é possível recorrer ao Coloconfortol de Mãezona, basta querer.

Cuidado na administração: siga a orientação de sua consciência, respeitando o bom senso, a individualidade, a privacidade, a independência e a tolerância (essas orientações não valem para fetos, bebês até 1 ano de idade e qualquer caso de enfermidade grave).

Interrupção do tratamento: dispensar o Coloconfortol de Mãezona abruptamente, caso haja sintomas de dor persistente, pode causar danos emocionais graves.

Hipermedicação: o uso ininterrupto de Coloconfortol de Mãezona causa dependência. Há relatos de insegurança crônica, bichice aguda (figurada, não necessariamente de caráter sexual) e intolerância a novos amores relacionados com o uso constante desse remédio.

Contra-indicações e precauções: não há contra-indicações para Coloconfortol de Mãezona. As únicas precauções são para evitar-se a hipermedicação que, além dos riscos citados no item específico, torra o saco de todos.

Posologia: todo mundo costuma saber o momento em que é preciso recorrer ao Coloconfortol de Mãezona. Porém, graças à intuição feminina, em combinação com o amor incondicional contido na fórmula, esse remédio é o único com capacidade de se auto-indicar.



Perceberam que o Ronaldão, depois de sua fenomenal mancada, foi curar as mágoas com o uso de Coloconfortol de Mãezona? Só mesmo a mamãe para compreender e perdoar o astro futebolístico. Por isso, e na esperança de que o tratamento tenha surtido algum efeito no rapaz, dona Sônia Nazário é meu símbolo do Dia das Mães 2008!

Convite!


Repasso a todos um convite de Valesca de Assis, uma escritora muito especial!
Passem lá!

1.5.08

Número 262

PROCURAM-SE VAGAS

Por mais dinâmica que seja a prefeitura – adjetivo raramente cabível –, vejo que a cidade não cresce no mesmo ritmo do número de novos automóveis em suas ruas e avenidas. Os resultados disso são os engarrafamentos nas horas de pico e o drama para encontrar vagas de estacionamento. Problemas opostos: quando se quer andar, pára-se; querendo parar, não se consegue. E, em se tratando de estacionamento, verifiquei que o comportamento das pessoas diante desta carência tem uma estranha variedade, que descreverei.

Há quem sempre procure estacionar o mais perto possível do seu destino. Defronte, de preferência. São pessoas movidas por um otimismo que pouco encontra eco na realidade. Quando passam por vagas razoáveis no caminho, próximas até, as desprezam: já que estão de carro, não querem caminhar. O raciocínio, simples e lógico, é o de que, tendo vagas perto, também existirão outras ainda mais perto. Quando acertam, ótimo! Mas quando erram, passam a dar voltas e mais voltas, correndo o risco de perder mais tempo do que um deslocamento de meia quadra. E se queixam de azar...

Outros, nos quais me incluo, travam uma batalha interior contra o desejo de ocupar a primeira vaga que se ofereça. No meu caso, ela pode estar dois ou três quarteirões distante do local para onde vou. Não importa: a hipótese de ficar rodando feito um pateta é sempre pior do que a de uma caminhada. O problema é a falta de segurança nas nossas ruas – um regulador que freia o ímpeto de largar o carro em qualquer lugar. Aí se fica naquela paranóia de encontrar um local iluminado, movimentado, defronte a um prédio com guarita de segurança... Um triste desgaste típico dos nossos tempos.

Mas o comportamento destes dois grupos seria diferente em estacionamentos de supermercados e shoppings? A questão se impõe na medida em que, neles, as distâncias a serem percorridas nem são tão grandes, nem estamos sujeitos às intempéries ou riscos de assalto iminente. Pois é: noto que a maneira de se relacionar com as vagas para automóveis não muda um milímetro. Os otimistas querem estacionar ao lado do portão de acesso e praguejam quando isso não ocorre. Os ansiosos ocupam uma posição qualquer, tudo para se livrar da chatice de procurar muito.

Claro que há também outros comportamentos ao volante a serem relacionados: os cavalheiros – que deixam a acompanhante ou família na porta e, só então, saem em busca de uma vaga; os desonestos – que estacionam em vagas para deficientes, em fila dupla, em local proibido e onde mais seja possível, desde que com vantagem; os esquecidos – freqüentemente vistos caminhando a esmo e disparando o alarme do carro perdido para que ele se acuse, e o motorista estressado – aquele que volta para casa com o bilhete do teatro no bolso ou que desiste das compras porque não encontrou uma vaga de estacionamento no prazo razoável (quem não teve, no mínimo uma vez, o desejo de fazer isso?).

Todo esse tralalá é para externar uma preocupação: no ritmo em que as coisas avançam, com o número de carros suplantando a cada dia o número de vagas de estacionamento, em breve virá o caos. Então, ou a cidade colhe os frutos de administrações dinâmicas e que investiram em segurança e bom transporte coletivo (metrô, ônibus e táxi-lotação), ou corremos o risco de ninguém mais sair de casa – o que causará enormes prejuízos para a cadeia de serviços. Sem esquecer do vaticínio do Luis Fernando Verissimo, feito na década de setenta: a ocorrência do Grande Engarrafamento, com as pessoas invadindo, morando e alugando automóveis abandonados e que nunca mais deixarão o leito da rua.

Vim de verso 3

VIM DE VERSO

RAVE


a covardia que te prende nada ensina
e nada é sina pra quem tudo arriscaria
à revelia do que cumpre e desatina
anfetamina move o passo em agonia

agora gira gira gira gira gira...