24.2.10

Número 358

FORÇA VERSUS JEITO

De todas as virtudes de um humano masculino, a mais festejada continua sendo a força. Não importa quantas ferramentas criamos para substituir, com ampla vantagem, nossos músculos: um bíceps bem formado, rijo, saliente, segue campeão de audiência. Antes que os defensores incondicionais da inteligência considerem tal premissa um absurdo, antecipo-me respondendo que nada é mais inteligente do que cuidar minimamente do corpo. E, na hora certa, mesmo com moderação ou sutileza, quase como quem pede falsas desculpas, dar uma cabal demonstração de força. É uma delícia para a auto-estima. É sexy. Dependendo, é tão útil quanto necessário.

Ser forte, porém, não deve justificar a brutalidade. Ao contrário: junto com a rigidez muscular, deve vir o controle de cada gesto. Conheço grandes homens (literalmente) cujos movimentos e, principalmente, intenções são de uma delicadeza ímpar. Outros, mirrados – intelectuais! –, são rudes e desastrados. O grande equívoco é pensar que a força física, atributo tão caro na evolução da espécie, deva ser abandonada para tornar alguém civilizado. Ou, pior, seja motivo de estereótipo. A rápida ascensão das mulheres no mercado de trabalho pode indicar, falsamente, que o homem de sucesso deva se render a um modelo de fragilidade física. Por trás dessa ideia, a falácia de que não é possível conciliar força e jeito.

Sim, existe uma rede de intrigas sendo urdida – uma hipótese – naqueles encontros no banheiro das damas: opor a força e o jeito de modo a torná-los excludentes. Elas, sabendo que na média não conseguem ser tão fortes quanto os homens, tomam para si a hegemonia da delicadeza. No fundo, almejam nossa renúncia à potência muscular para, só então, avançarmos nas tarefas sutis. Uma verdadeira castração, falsa como cinco ases. Eis um pequeno exemplo de harmonização tipicamente masculina: alguém já reparou que o homem jamais bate a porta do carro? Diferentemente das mulheres, que oscilam entre muita e pouca força, nós sempre sabemos impor a medida correta. Meninas, agora o horror: quando o automóvel não é nosso, intuímos a força ideal. Isso mesmo: existe intuição masculina!

Quando o homem, além de forte, é seguro, a estratégia muda: elas nos reduzem à condição de músculo ambulante. Como prova, as frases ditas em tom de piada, do tipo “se não conseguir destampar esse vidro de conservas, pode ir embora – foi-se a derradeira utilidade”, ou “a porta emperrou: abre ou eu chamo um homem de verdade”. Experimente dar um ultimato na esposa: pregue esse botão aqui, ou vou procurar uma mulher de verdade! Cai a casa! Logo, ou a tática de redução vale para os dois, ou não vale para ninguém. Além do mais, aposto todas as minhas fichas no marido pregando seu botão sozinho muito antes de a esposa desemperrar a porta sem auxílio (ok, peguei pesado).

Fisiologicamente, o último bastião da masculinidade é a força. Perderemos a flexibilidade, a agilidade, a resistência e até a precisão antes de nos despedirmos da força. Por isso minha revolta ao perceber que existem homens que aceitam abrir mão dela para competir com as mulheres. Que vergonha! Sejam delicados, suaves, minuciosos e, também, fortes. Curtam, até o fim da vida, o brilho que nasce no olhar das fêmeas quando vêem nossa musculatura retesar-se. Elas, lamentavelmente, não costumam creditar a nós a acuidade para reparar em algo tão sutil!

17.2.10

Número 357

RÉQUIEM PARTICULAR

Dentre os cronistas que não canso de visitar há os que me surpreendem, os que me encorajam e os que me deliciam, quando não tudo ao mesmo tempo. Destes, Paulo Mendes Campos. Dono de uma prosa contaminada até a última gota de sangue pela poesia, ele é doador universal para todos os que almejam a verdadeira literatura pelo caminho da crônica. Seus textos sempre conseguem nos fazer pensar na vida, mesmo quando se referem a um tempo e espaço que não coincidem com o nosso.

Foi o que aconteceu enquanto eu lia Réquiem para os bares mortos. Em suas orações, Mendes Campos cita casas cariocas que faleceram muitos anos antes de eu nascer, na distante Porto Alegre: Vermelhinho, Alvear, Bar Nacional e do Hotel Central, entre outras. Há ali, porém, uma saudade tão germinal que faz brotar no peito do leitor uma melancolia que se transfere para as próprias lembranças. Afinal, quem já cruzou a casa dos quarenta anos, como eu, e não viu fecharem cortinas de amados bares para sempre, não pode dizer que tenha verdadeiramente vivido.

Meu primeiro bar, por exemplo, findou incendiado depois de permanecer morto e insepulto por, talvez, uma década. Não era um bar de cidade, mas de praia, contíguo ao salão de festas do Hotel Vendaval. Ambiente em que, durante o dia, coabitavam crianças comprando picolés e adultos abrindo os serviços etílicos com horas de antecipação. À noite, na medida em que a meninada se recolhia, ele testemunhava jovens em seus preliminares jogos de sedução, incursões musicais e, claro, nos primeiros tropeços alcoólicos. Em retrospectiva, fico surpreso – até comovido – com o pessoal que nos atendia: há que se ter paciência e carinho com os calouros da vida noturna.

Em Porto Alegre, são raras as casas que frequentei na juventude ainda vivas. Uma das que mais deixa saudade é o Espaço IAB, bar do Instituto dos Arquitetos do Brasil. Ponto de convergência da intelectualidade gaúcha nos anos oitenta, seus drinques tinham o sabor do momento brasileiro. Diante do mesmo cardápio, escorados no mesmo balcão, estudantes que espremiam os bolsos para pagar a noite ao lado de profissionais bem sucedidos da arquitetura, psicologia, jornalismo e artes. No IAB, minha nascente banda de jazz consolidou algo muito maior do que uma carreira musical: forjou a cumplicidade que resiste por incontáveis compassos.

Outro falecido, do qual nem a linda casa ficou para a história, é o bar e restaurante Lugar Comum. Tempo de se ir aos shows no Teatro Leopoldina, na Av. Independência e, depois, descer a pé à Rua Santo Antônio – todos para o mesmo Lugar, degustando a culinária brasileira ao som de música instrumental. Mais tarde, quando o Leopoldina se tornou o Teatro da OSPA, abriu nos altos da mesma casa a lendária Sala Jazz Tom Jobim, palco de músicos inesquecíveis. Hoje, parece que era sempre inverno quando cruzávamos a porta de vidro daquele sobrado – uma atmosfera mais européia do que tropical. Só não há mais piano ou franguinho à mineira para aquecer a alma.

Claro que falta espaço na crônica para descrever com detalhes minhas lápides. Contar das fotos que as ornamentam, falar dos nomes que ali se encontram. Não existe outro cemitério, porém, no qual se possa depositar flores em homenagem aos bares mortos: só a lembrança. E toda oração, para cada um de nós, será muito particular, fale de Porto Alegre, do Rio, Belo Horizonte ou Paris. Assim mesmo, sirvo-me de Campari com água tônica, limão e gelo. Depois, em pensamento, brindo com Paulo Mendes Campos e contigo, por todos os bares e cronistas que viveram e morreram por nós.

11.2.10

Número 356

O ÚLTIMO BREQUE

Há quem associe Carnaval com folia, alegria, fantasia. Hoje, caso voltasse a fazer versos carnavalescos, rimaria Carnaval com nostalgia. Sim, das festas de Momo, só me restaram saudade e lembranças. Também algumas boas surpresas, como descobrir que ainda sei inteiro o “Vai passar” do Chico Buarque, entre outros temas que sempre cantávamos na juventude. Pular quatro noites faz parte daquelas rotinas de outrora as quais pergunto a razão de ter, há longo tempo, abandonado. Não sendo a resposta muito fácil, ou indolor, me faço de surdo diante da questão – perdoe-me o trocadilho.

Porém (ah, porém), sempre chega fevereiro. Com ele, a onipresença do Carnaval nos veículos de comunicação. É o que basta para eu voltar 25, trinta anos e recordar alguns instantes em que o tempo deixava de fazer muito sentido – períodos de caráter imortal. Incrível era eu, com tão pouca idade, já ter a consciência de que fazia algo simples, porém sublime: gravava de modo perene na memória a sensação de transcendência da música e da dança. Sorvia com prazer indescritível a energia de um baile, de uma avenida, de centenas de almas transformando fantasias individuais em coletivas.

Neste quesito, posso me considerar um privilegiado. No bloco que construímos desde pequenos até taludos (nós em idade, o bloco em número de componentes), tínhamos um fac-símile de escola de samba: porta-bandeira, destaques, passistas, samba-enredo, bateria... Éramos bem recebidos na avenida e nos salões de clubes. E, momentos antes de qualquer apresentação, toda atenção convergia para mim, mão direita erguida empunhando a baqueta. Um lapso de silêncio e concentração, quase imperceptível para quem assistia à distância, antecedia o disparo de sons. Alertas, bloco e bateria aguardavam o rufar do meu repinique. Creia: é a mesma sensação de pressentir e segurar o inevitável orgasmo, que explodirá logo a seguir, com a potente marcação do primeiro surdo.

Pode parecer exagero de cronista dar tanta importância para um simples breque de repinique. Creditar uma elevação desproporcional à chamada de uma bateria e um protagonismo tolo para quem quer que o faça. Mas todos os que já praticaram algum esporte, seja vôlei, futebol ou tênis, sabem que o destino da bola é decidido nos momentos que antecedem o contato, quando do enquadramento corporal. Pois, igualmente, quem puxa o samba tem um único compasso para enquadrar música e músicos. Não pode falhar. Como se diz, pura adrenalina! E, ainda por cima, é preciso impor para todos aquilo que se costuma chamar de intenção: o ânimo que guiará ritmistas, passistas e público. Experimentar essa responsabilidade, chamando-a para si com o braço erguido, é uma das emoções que deixaram saudade. Sem dúvida, foi uma honra.

Talvez seja um pouco melancólico ficar recordando as passagens que, pela força e representatividade, tornaram-se eternas na vida da gente e nunca mais serão reprisadas. Mas nem tanto. Triste seria nada ter de bom para lembrar. Sim: quando o assunto é Carnaval, há quem só fale do pisão no pé sofrido em uma noite, da moreninha que lhe escapou no girar do salão, do amor que saiu abraçado em outro alguém, da ressaca depois de passar da medida na cerveja. Isso é circunstancial, acontece para todo mundo e não foi diferente comigo. Lamentável, doído de verdade, é saber que também puxei, no breque final de repinique, o encerramento de uma Era. Um caso raro em que o samba desandou logo depois do bloco se calar.

3.2.10

Número 355

O CARINHA DE PAU

Era uma vez, em um reinado de faz-de-conta, um soberano falastrão. Pouco ou nada produzia, diziam seus detratores. Na verdade, nem mais nem menos do que seus antecessores e, quem sabe, seus sucessores. Porém, quando o monarca abria a boca para falar, falava e dizia. Tinha em seu discurso aquele não-sei-o-quê capaz de fazer a diferença. Vindas dele, todas as palavras ganhavam sentido e pareciam fatos. Atacava e era inatingível. Mesmo as (muitas) gafes revertiam a seu favor. Sua lábia era reconhecida em reinos distantes.

Um dia (sempre que o narrador começa uma frase assim, o protagonista treme de medo), sem nenhuma explicação ou doença, o rei falastrão ficou afônico. Tudo começou com uma rouquidão suave, apenas em pronunciamentos oficiais. Agravando-se, atacou em entrevistas para rádio e TV. Soaram os alarmas quando ela apareceu nas inaugurações de suas obras. Mas aí foi tarde: certa manhã, o rei acordou sem palavras.

Seu porta-voz (cargo que daquele dia em diante passou a auferir adicional ironia) se adiantou em minimizar o problema. Um homem é muito mais do que suas cordas vocais, disse em alto e bom tom. Uma junta médica havia sido escalada para fazer uma bateria de exames. Outros monarcas já ficaram sem palavras, disse sem que ninguém estivesse disposto a pesquisar se era ou não verdade.

Imediatamente a mudez real causou um alvoroço na corte. Como fariam para ser entendidos pelo povo de agora em diante? E, não sendo a resposta fácil, muito menos a cura do misterioso mal que se abatera sobre a primeira garganta, o reinado começou a sentir as mudanças. Era como se as obras, os benefícios e os projetos acontecessem tão somente nas palavras de seu líder maior. Sem elas, o reinado estava nu.

O secretário da educação deu uma idéia: que o rei escrevesse o discurso com suas próprias palavras para um deles ler. Em dúvida, pediram ao autor que servisse de cobaia. Diante de dezenove reitores das universidades do reinado e dos arredores, o secretário da educação apanhou o discurso. Olhou bem. Leu um pouco em silêncio. Engasgou. Transpirou. Desistiu. Ele não poderia ler o que estava escrito ali. Não daquele jeito. Dificilmente seria demitido, mas temia por sua reputação.

Uma revolta popular começou quase calada. Todos diziam que a corte, ao contrário do rei, não falava o que fazia ou fazia o que falava. Os burgueses começaram a adquirir moeda estrangeira e investir os lucros além muros. O povo partiu para as compras com medo de desabastecimento e, rapidamente, subiu a inflação e a inadimplência. Com elas, os juros. Séculos de economia saudável estavam em risco. A própria monarquia se mostrava fragilizada. Nessas todas, o rei mudo.

Então, em cadeia nacional, o soberano apareceu com um bonequinho de ventríloquo, a sua cara, sentadinho no colo. O porta-voz perguntou: Majestade, o boneco fala pelo senhor? Imediatamente, sem que o rei desfizesse o sorriso, o boneco disse que sim, isso mesmo, podem acreditar! E logo começou a discursar, sacudindo sua cabecinha de pau ora para a direita, ora para a esquerda. Alívio na corte. Apavorada, até mesmo a oposição se uniu para exaltar o grande líder e o pequeno falante. O reinado estava salvo! A economia estava salva! A monarquia estava salva! A vida de todos voltaria a melhorar. Principalmente a do bobo da corte que ganhara o concurso de imitador real, pago a peso de ouro por suas palavras e, principalmente, pelo seu silêncio.