26.3.09

Número 310

FELIZ ANIVERSÁRIO

Todo casamento, seja ele celebrado no altar, no cartório ou em acordos menos formais ‒ mas tão sérios quanto ‒, traz consigo um manancial de regras. Basta lembrar das frases proferidas pelo sacerdote: na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando e respeitando etc e tal. Ou recordar o fato de que, no momento em que firmarmos um contrato de comunhão parcial de bens, por exemplo, toda uma jurisdição estará ali aglutinada. Quando nada é assinado, as leis do concubinato, quer se queira ou não, passam a rechear o colchão matrimonial ‒ conforto para alguns, insônia para outros. O que pouco se fala é dos princípios jamais ditos ou escritos, porém moldados e sacramentados pela tradição. Dentre eles, um dos que mais apavora os homens compila os deveres e direitos de cada uma das partes com relação ao aniversário de casamento.

Há quem defenda que um homem tem o direito de deixar escapar a data em que aconteceram as núpcias. Não que seja esse um direito líquido, muito menos que seja ele certo. Digamos que esteja enquadrado na categoria dos direitos adquiridos. Explico: o primeiro aniversário jamais pode ser esquecido. Jamais! Teoricamente, dentro do intervalo de um ano, ainda ferve nas veias o calor da paixão. Em seu nome, muitos fogos de artifício estarão posicionados para comemorar a data. Ignorar solenemente tal bateria é um pecado inominável, uma insensibilidade brutal, um desperdício ridículo. Do segundo até o quarto aniversário, com ou sem filhos, o lapso passa a ser incomum, mas já existe quem faça jus ao direito de mosquear.

Entre o sexto e o sétimo ano, em média, os homens começam gradativamente a obter um certo direito de esquecer a data que está impressa em baixo relevo no ouro da aliança. Sabe como é: muito trabalho, correria, responsabilidades... Futebol, música, pescarias, chopes, essas coisas de maridos. Com a atenção voltada mais para datas como as do vencimento do cartão de crédito, o prazo do imposto de renda ou a entrega de um relatório, os dias, semanas e meses se embaralham e, quando se vê, o dia chegou. Pior: chegou ontem. Muito pior: chegou semana passada. Aí bate a culpa... Porém, entre o décimo segundo e o décimo terceiro ano de matrimônio, se as falhas persistirem, a tal culpa acabará esquecida também.

Bom, mas se nós homens temos, ou adquirimos, o direito de esquecer a data de aniversário de casamento sem fazer disso um pecado mortal, nem por isso nos furtamos de alguns deveres. É nossa obrigação, claro, cobrar da esposa a razão pela qual ela abandonou um dos seus hábitos mais elementares: o de nos dar indiretas pouco antes do dia chegar. Ora, se ela jamais esquecerá a data, se ela sabe por tradição que corre o risco de ver o dia passar em branco, se ela conta com aquele jantar especial, por que atirar sobre nossos ombros toda a responsabilidade? Isso não faz o menor sentido! Nós crescemos assistindo nossas mães lembrando nossos pais de compromissos dessa natureza. Não é justo que, logo agora, não tenhamos mais esse direito. Devemos reclamar!

Outro dever do homem é o de cuidar especialmente dos quinquênios (nossa, que falta faz o trema...). O quinto, o décimo, o décimo quinto aniversário de casamento, e assim por diante, pede um esforço extraordinário de atenção. Fica abolida a regra das dicas por uma razão sórdida: elas estarão nos testando e, por isso, pouco darão pistas sobre a proximidade da data. Também existe compromisso tácito de presentear a esposa com algo marcante a cada cinco anos. O momento não é bom? Deu um presentão ano passado? Acabamos de nos mudar? Azar o seu! Faça o possível, o impossível e, de preferência, faça uma surpresa. É injusto dizer que as mulheres servem-se da memória tão somente para o mal. As recordações funcionam às vezes para o bem, garanto. Por isso, outro dia maravilhoso e inesquecível contará muitos pontos na relação. Ou, Deus nos livre, no indesejado rompimento. Lembre-se disso.

A propósito, ao meu anjo, Feliz (nosso) Aniversário!

19.3.09

Número 309

AMAR AINDA É?

Sabe você o que é o amor?
Não sabe, eu sei

Carlos Lyra e Vinícius de Moraes

Quando eu conheci o amor, amar era saber o nome e o sobrenome dela. Talvez até o nome da mãe, do pai e dos irmãos. Era transformar seu endereço em passagem para todos os destinos, fazer amizades na turma dela, aparecer nos sábados à tarde só para jogar um vôlei. Amar era somar cinco ou seis motivos para andar à sua volta quando, na verdade, o motivo era um só.

Amar era trocar correspondência. Receber dela a letra de Leãozinho, do Caetano, e responder com versos de Meu Bem Querer, do Djavan. Aliás, amar era ter uma música só para os dois, tal qual os pares das telenovelas. Escutar o mesmo tema uma tarde inteira ao lado dela, como se a poesia pudesse dar conta do passado e do futuro. Amar era ser fiel: a mesma música jamais serviria de trilha para outro amor.

Amar era descobrir encantos possíveis, pois nem todos os dotes nos eram franqueados. Assim, era preciso decorar o formato dos dedos dos pés, perder-se nas penugens da nuca, trilhar cada curva das orelhas, mergulhar nos olhos, curtir todos os segundos de um beijo. Brincar muito, pois, em jogos de sedução, as mãos podiam medir cada palmo de recusas e permissões. Amar era contar os sinais da pele com os dedos, fazer cócegas, dar sustos.

Amar era viver no eterno sobressalto da insegurança. Desconfiar do cochicho da amiga, principalmente quando seguido de sorrisos maliciosos. Temer a aproximação dos meninos mais velhos, manobrando exércitos para delimitar território. Morrer de paixão sem jamais declarar-se. Negar até a morte o que estava escrito na testa. Amar era tentar conhecer o outro no exato momento em que a própria anatomia se mostrava uma estranha.

Amar, para os meninos, era desejar o corpo e barganhar com a alma. Para as meninas, ao contrário, era desejar a alma e negociar com o corpo. Daí o sofrimento dos homens: desde os primeiros ensaios do que era amar, as trocas estavam flagrantemente desequilibradas. Isso explica, mas não justifica, a desonestidade daqueles que surrupiavam a contrapartida. Amar, então, era chorar o desamor nos ombros dos amigos. Amigos que, em alguns casos, morriam de amor em segredo.

Amar era, também, odiar. Odiar, antes de tudo, a própria inexperiência. Odiar o deboche dos outros, as dúvidas ruminantes, as recusas, os enganos. Odiar o ciúme, efeito colateral presente em quase todas as primeiras paixões. Sentir um ódio enorme por continuar amando quando jurávamos nunca mais amar. Amar era odiar o amor não correspondido e aprender a lidar com essa frustração.

Por fim, quando eu descobri o amor, amar era olhar com total desdém para as figuras Amar é..., criadas pela neo-zelandesa Kim Grove Casali, sucesso absoluto entre as meninas nos anos 70. Mesmo assim, comprar para elas cartões e outras lembranças com a adocicada mensagem decorada com infantilizados bonequinhos nus. Com isso, amar era aprender a fazer concessões, driblar nossa natureza de ogro, desde que ajudasse a conquistar a amada.

Será que hoje amar ainda teria chance de ser assim?

11.3.09

Número 308

SOMOS O QUE ESCUTAMOS

Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?

Antunes, Fromer & Brito

Pergunte a um nutricionista o que aconteceria com uma criança ou adolescente cuja dieta fosse resumida a macarrão instantâneo. Mesmo sem ser um estudioso da matéria, posso adiantar com segurança que o jovem teria seu desenvolvimento fisiológico severamente prejudicado, apesar de ele não morrer de fome. Aliás, talvez até engordasse.

Agora, pergunte a um músico (ou poeta) o que aconteceria com uma geração inteira cujas obras prediletas cozinhassem em três minutos, pudessem ser engolidas sem mastigar e tivessem todas o mesmo gosto. E, depois de exigir esforço digestivo nenhum, elas quase nada nutrissem. Pois lamento informar que essa turma de ouvidos e consciências repletos de vento engorda entre nós.

A comparação entre a música popular que roda nos pratos (essa é velha) com o macarrão instantâneo pode até parecer forçada, mas é lamentavelmente correta. O que os produtores têm feito de melhor nos últimos anos é garimpar talentos submissos, moldar, embalar e rotular: sabor poprock, sabor sertanejo, sabor pagode, reagge, funck, melancia. Então, a base pálida é temperada despejando o envelope que contém figurino descolado, coreografia sensual e assessoria de imprensa com seus factóides pontuais.

Se não bastasse, depois de alcançada a fervura popular, artista e fã saem convencidos de que sucesso é sinônimo de qualidade na mesma medida em que barriga cheia é igual à nutrição. E que muitos anos de estudo ou aprimoramento formal é mera perda de tempo: todos querem consumir o que se engole mais rápido, surdos para as nuances. Cardápio turbinado pela internet, onde celebridades nascem, se reproduzem e morrem na velocidade de uma Drosophila Melanogaster.

Porém, atirar nas largas costas do mercado a culpa da sofrível condição da música popular brasileira (MPB), cuja perda de status é tão grande que ninguém mais se orgulha de pertencer à sigla, é uma redução conveniente. Pode-se dizer que miojos melódicos estão cada vez mais presentes nas prateleiras das rádios e demais veículos de comunicação. (Em algum momento foi diferente?) Apesar disso, obras eruditas, instrumentais, folclóricas, vanguardistas etc, bem ou mal, também estão expostas. E melhor estarão posicionadas quanto mais forem consumidas.

Logo, entre outras, é obrigação dos pais educar o paladar musical dos filhos, ao invés de adotar a confortável tese de que não adianta insistir ‒ eles só gostam de canções de massinha, mesmo. O caso ficará mais grave quando eles chegarem na adolescência: passar pela mais determinante fase de crescimento intelectual e afetivo sem ter a mínima profundidade musical vai gerar, para sempre, uma perda de vitaminas e sais minerais indispensáveis para o desenvolvimento do senso crítico. Sim, pois é na juventude que nossa bagagem estética é consolidada.

Bom, empurrar doses elevadas de jazz goela abaixo da meninada não será solução. Porém, se um jovem chegar até os vinte anos sem ouvir qualquer notícia de Pixinguinha, ou Noel Rosa, Villa Lobos, Cartola, Dorival Caymmi, Tom Jobim, Chico Buarque, Egberto Gismonti, Milton Nascimento etc (a lista é grande), que não coloquem a culpa no KLB, no Latino ou na Cláudia Leite (outra lista enorme). Estes últimos entregam o que prometem e, com certeza, matam a fome. O problema é: nossos jovens devem ter fome de quê? Afinal, serão, até a última migalha, fruto do que escutarem.

6.3.09

Número 307

DELICADO

Ser um homem feminino
Não fere o meu lado masculino

Pepeu Gomes

Experimentei, de modo involuntário, algumas sensações que vejo cotidianas entre as mulheres que me cercam. (Não, não é nada disso que alguém possa estar pensando.) Tudo começou quando decidi escrever sobre o Dia Internacional da Mulher, comemorado em oito de março. Um tema aparentemente fácil de versar, pois admiro muito o sexo feminino, conheço-as razoavelmente bem, sou refém de seus encantos. O que jamais poderia imaginar, porém, aconteceu: como em um roteiro de filme hollyoodiano, uma parte indissociável da personalidade feminina me foi incorporada. Refiro-me à insatisfação crônica.

Estive por dias e dias diante da tela do computador tal qual uma mulher defronte ao roupeiro, ou dentro do closet. Primeiro, olhei para dentro de mim por um longo tempo para concluir apavorado: não tenho palavras para a ocasião! Um colossal exagero, óbvio. Era o espírito feminino pousado em meus ombros sem que pudesse desconfiar. Homens não costumam divagar muito para se vestir ‒ o critério muitas vezes é meramente geográfico, isto é, a posição da camiseta na pilha, a calça que já está no espaldar da cadeira, o sapato mais próximo. Da mesma forma, depois de escolher um tema, masculinamente, tenho a tendência de pouco sofrer até concluir o trabalho. A semana começava diferente...

Se não bastasse, comecei nada menos do que quatro textos sem avançar até o terceiro parágrafo. Havia uma boa chance de todos eles tornarem-se boas crônicas, dependendo de cuidados de elaboração. Mas quem disse que eles me satisfaziam? Então, nenhuma outra hipótese se mostrava mais correta do que o desprezo total às palavras escritas até ali: elas nunca me agradariam. Um detalhe curioso no processo ‒ e que considero mágico ‒ é a forma nublada de minhas dúvidas. Perguntei-me várias vezes o que havia de errado com a crônica nascente e em nenhum momento soube explicar o que estava me perturbando. A única certeza era a vontade de trocar de texto. Mais: trocar de abordagem. Ou trocar tudo, até eu mesmo. Que inferno!

Passada essa fase, e chegando perigosamente no final do prazo hábil, escrevi uma crônica inteira com uma idéia que parecia ótima. Voltei ao texto, fiz ajustes, mudei o título, troquei o final. Pronto! Então, como se fosse uma dama diante do espelho, odiei o resultado. O-di-ei, gente! Quer coisa mais mulherzinha do que produzir meticulosamente um trabalho e considerá-lo um horror tão logo chegue ao seu final? Alguém já viu um homem trocar de terno no penúltimo minuto antes de uma recepção social? Ou mudar o cardápio depois do jantar estar terminado? Ou mesmo retornar na loja com o produto recém adquirido, dizendo, lânguido, que repensou a cor? Pois isso me aconteceu desta vez...

Aqui, agora, peço a Deus que a maldição abandone minha mente. Ok, já aprendi a lição: a mulher estar insatisfeita sem conseguir explicar a razão não é uma condição transitória. Não é nada conosco, homens. Não depende de ciclo hormonal, fase da lua, estação. Acontece quando ela está de férias, trabalhando demais, em novo endereço. Ao contrário do que se pudesse supor, é algo muitíssimo mais delicado: faz parte de sua natureza. É intrínseca. Quando corretamente dosada, bem compreendida, a insatisfação feminina é mola propulsora, agente qualificador, princípio de evolução. Porém, funciona apenas com elas. Homens são mais simples, diretos e objetivos ‒ pão, pão; queijo, queijo. Sofrem muito quando estão em eterna dúvida.

O Rufar dos Tambores está atrasado e o texto vai sem revisão ‒ os leitores já estão buzinando no carro. Dou uma última espiada no espelho da tela e resisto à tentação de mudar algo. Respiro fundo, olho para a tecla ‘delete’, mas decido: ‘enter’.