27.4.12

Vitórias e outros prejuízos

Número 470

Rubem Penz

Filhos nascem para mudar nosso rumo na vida, para estabelecer nova ordem na escala de valores, para ensinar o que é importante, o que é secundário e o que é imprescindível. Eles nem sempre conseguem cumprir esse objetivo: pais que permanecem focados em si matarão muitas aulas e, com o passar dos anos, suas notas serão insuficientes para prosseguirem na esperada evolução humana. Porém, tal fracasso no enriquecimento de nossa existência, quando ocorrer, não pode ser atribuído aos filhos – sua (nada) simples chegada é a grande lição que oferecem. O restante precisa ser apreendido.

Vejamos um exemplo banal: jogos e brincadeiras esportivas. Desde tempos primitivos, a competição implica em vencidos e vencedores, com todos sabendo em qual dos lados desejamos estar. Aí o pai está diante do filho pequeno, oponente em condições desiguais, mas bravo e cheio de motivação. Surge a dúvida: ganhar ou perder? O destino do jogo é decidido nesse instante. Também aí, começam as lições de vida.

Há pais que enfraquecem suas posições e entregam todos os jogos. Só o filho vence. A felicidade é ofertada com perdulária gentileza. O pai relembra suas dores nas tantas derrotas e jamais deseja que o filho passe por essa tristeza. São aqueles que, na vida, não aprenderam muito bem a perder. Maus perdedores: é isso que eles são. Logo, quase incapazes de ensinar a perder com altivez.

Também existem os pais que jamais amolecem durante os jogos. A criança precisa crescer forjada na dificuldade, pois a vida não dá moleza a ninguém. Desejam incutir nos filhos o desejo messiânico de superação, dão valor aos feitos do David contra Golias, rezam na cartilha do sofrimento para merecer a redenção (quando não a vingança). São aqueles que, na vida, não aprenderam muito bem a vencer. Maus vencedores: é isso que eles são. Logo, quase incapazes de ensinar a vencer com humildade.

No centro, os moderados: pais que fingem derrotas e, vez por outra, impõem a superioridade como uma espécie de alerta. De um lado, miram o ganho de autoestima que só os reforços positivos podem oferecer. De outro, ensinam sua criança a lidar com as frustrações e limitações inerentes do convívio competitivo. São pais que souberam retirar exemplos das derrotas e das vitórias, lidando com ambas de modo a serem relativizadas.

Mas, e as lições aplicadas pelos filhos nos pais, onde estão? A resposta é: criando dilemas como esses, capazes de revisar conceitos. Quem não sabe perder, recebe a oportunidade de aprender para poder ensinar. Quem não sabe vencer também, só que em vetor contrário. Aos moderados, caberá a lição (igualmente difícil) de se entristecer quando "perde" para o filho e se alegrar quando o bate – fingindo o inverso que se passa no coração.

A última opção é ter sempre algo mais importante para fazer quando o filho convida para jogarem, brincarem, competirem. Ausência que poderá ser decisiva na conquista de muitas vitórias e outros prejuízos.


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20.4.12

Invisível

Número 469

Rubem Penz

Veja bem: atenção para a lareira, aqui é onde ligamos a hidromassagem, o acabamento em bronze antigo do corrimão da escada dispensa polimento, mosaicos de cerâmica marcam a divisão de ambientes, luzes indiretas criam um clima intimista... Sim, corretores de imóveis são especialistas em pinçar aquilo que nos enche os olhos (enquanto esvazia nosso bolso). No fundo, sabem que felicidade doméstica passa longe da sofisticação. Porém, uma agrega valor e a outra, não.

Quem faz a alegria do banheiro, por exemplo? Não é a pia em mármore, a argola dourada para as toalhas de rosto ou o vaso sanitário trapezoidal. Para mim, felicidade é luz direta e ventilação farta. Nada substitui um banheiro bem arejado, escolha dos profissionais de arquitetura ainda em fase de projeto. Banhos de luz e as lufadas de frescor valerão mais do que o piso em porcelanato tão glorificado pelo vendedor. Ali, na rotina das manhãs, na saída do chuveiro, ao lavar o rosto, uma lição cotidiana da diferença entre o que é caro e o que não tem preço (claro, podendo, sempre é melhor termos os dois).

Lembrei-me disso no desabafo de um amigo bem achegado quando trilhou o caminho da área de serviço para me encontrar. Por ele estar vivendo a contingência de mudar-se para uma casa em fase final de obra (conheço o filme), ele olhou para o nosso tanque como o náufrago para as areias da praia. Lustre, freezer, forno, balcão ou cristaleira? Nada... A vida se decide no basal, na essência. Quase gritou: meu reino por um tanque! Ali, naquele operacional e malfadado recanto do lar, estava sua Pasárgada.

Amigo, disse-me, vocês não fazem ideia da falta que faz um tanque. Um lugar para limpar mãos e braços sujos até o cotovelo, para depositar o que jamais caberá numa pia, para lidar com a dimensão do caos. O tanque é o centromédio do lar: pouco aparece e ninguém admite depender dele. Mas, sem um volante voluntarioso (sem um tanque), tudo fica mais difícil. Tanto que os tanques foram se chegando do arrabalde para perto e, por fim, para dentro de casa. No minúsculo apartamento, ele está lá: na cabeça da área, pronto para o serviço pesado.

Longe de mim fazer a apologia do pobre, mas limpinho; do simples, mas honesto; do improvisado, mas funcional. Só quero lembrar que tudo na vida tem (ou deveria ter) prioridades, e estas não precisam passar necessariamente pelo poder aquisitivo. A quase pronta casa do meu amigo e sua querida esposa é linda, luminosa, aconchegante. Tem uma vista belíssima e inexpugnável, ambientes bem bolados e todo o conforto que se possa pensar. Mesmo assim, o lar não pode ser considerado plenamente habitável sem um prosaico tanque na área de serviço.

Dá até uma vontade de mudar de atitude: ao receber visitas, levá-los pela casa a mostrar o quadro de luz, o tanque, a dispensa, a caixa d'água, o aquecedor de passagem. Tudo antes da espaçosa sala de estar que, como diria o corretor, é composta dois amplos ambientes a formar um "L" com a sala de jantar.

O luxo é aparente, mas frio como ouro. O conforto é invisível, mas quente como o abraço.

 


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12.4.12

Elas por elas

Número 468

Rubem Penz

Elas agora andam em bando. Não, não andam: voam. Voam para fora de casa e aterrissam nos bares em ruidosos bandos. São como enxames ocupando mesas que precisam ser movidas para dar lugar a mais e mais delas. Ninguém mais quer (ou tem) sossego. E falam, e riem, e olham para os lados, para frente, para trás. Dominam a cena. Sabem o nome dos garçons e fazem deles gato e sapato. Nos olhos dos moços, o espelho para medirem o potencial de sedução, para treinarem as artimanhas. Tudo com plena permissão.

Elas agora fumam parelho. Tragam com sofreguidão e soltam a fumaça para o alto. Fazem do vício outrora introspectivo um manifesto. Assumem o papel do menino que buscava no cigarro o passaporte para a vida adulta. Correm o risco do fósforo, sapateiam nas brasas. Celebram a antifertilidade das toxinas e da morte. Nem lembram mais se entraram nessa por querer ou por precisar. O fato é que sem precisar, parecem querer; sem querer, parecem precisar. O Ministério da Saúde as diverte.

Elas agora também bebem. E como! Umas com sabedoria, outras contra a natureza, na onda. Pagam suas contas, pagam para ver, por vezes apagam. Socorrem-se na vertigem, perdoam-se nos excessos. Já houve prisão, hoje há pressa. Sobem as apostas, blefam, blasfemam. Não poupam palavrões, ou se poupam, ou nos poupam. Ai do homem que resolva julgá-las. Guardam na ponta da língua a réplica mais ácida: os homens, em termos de álcool, ou de escândalos, pregam moral sem cuecas.

Elas agora rapinam. Miram, farejam, perseguem. Escolhem a presa e escolhem as armas. São num só tempo isca, armadilha e caçador. Gatas que não se contentam em comer a vítima – primeiro, brincam com ela. Manobram, chantageiam, manipulam. Chegaram lá de uma vez por todas: ao comando. Lambem o sabor da tirania, experimentam novas saciedades. E gostam. Eles também gostam.

Jogo empatado, elas por elas, bola ao centro.

Claro que elas não são todas elas. São algumas delas. Parecem muitas porque aparecem mais. Assim como eles também nunca foram todos desse jeito – ou todos iguais, por maior que fosse a campanha em afirmar a regra. O bom, o louvável, é que eles sempre puderam. Hoje elas também podem. Desejar está permitido. Ir ao limite está permitido. Ultrapassá-lo, também. Sem recriminações, cobranças, fogueira, patrulha, compaixão.

Talvez alguns ainda se choquem com tamanha mudança. Eu, não. Da mesa onde estou, apenas admiro. Ali estão elas por elas. Lindas. Felizes. Ou não. E até nisso estamos em igualdade.


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6.4.12

Páscoas passadas

Número 467

Rubem Penz

Cada geração de crianças (cada família) tem sua Páscoa pessoal, intransferível. O sentimento é sempre o mesmo, os símbolos pouco mudam, as mensagens permanecem. Porém, a maneira como tudo acontece vai se moldando aos costumes, ao orçamento, ao tempo.

Aqui, algumas das coisas que fizeram parte das minhas páscoas infantis:

Ovo cozido colorido. Sempre tinha em nossos ninhos. Eram fervidos em água com corantes e a casca ficava vermelha, roxa, verde, azul. O bacana é que a clara também restava colorida, em tom sobre tom.

Cascas de ovo pintadas, recheadas com amendoim doce e tampadas com papel de docinho. Verdadeiras obras de arte. Isso ainda é bem comum em algumas comunidades fundadas por imigrantes europeus, especialmente fora das grandes cidades.

Galinha de açúcar. Era um ninho com uma galinha branca e azul claro, cercada de pintinhos amarelos, toda feita apenas de açúcar. Comer tudo de uma vez só era tarefa para poucos. Eu voltava umas três vezes antes de terminar, colocando os pedaços babados na geladeira. Eca.

Barba de pau. Ninhos com barba de pau colhida nas árvores dos pátios, tudo perfumado com flores de macela. Essa não só fica difícil para os dias de hoje, como soa antiecológico. Quando me dou conta de que peguei essa época, me sinto com cem anos de idade.

Cestos de vime. Cada um tinha o seu, guardado pelas mães de ano para ano. Grandes, resistentes, fundo de madeira, feitos para durar por toda a infância e ainda ficarem íntegros para ser emprestados (doados) para quando os filhos crescessem. Verdadeiras obras de arte.

Moedas, garrafas e cigarros. Devemos presentear crianças pequenas com garrafas de licor feitas de chocolate (por dentro, açúcar cristalizado), moedas e cigarros de chocolate? Pois nós ingerimos álcool, fumamos e fomos piratas com moedas de ouro, tudo sob o patrocínio de pais, tios e avós. Politicamente incorreto, saborosamente delicioso.

Beijo Africano, Beijo de Moça, Kri Crocante e azedinhas com figuras. Inesquecíveis e saborosos beijos. O Kri era uma das delícias Nestlé, e as tais balas azedinhas, depois de um tempo, ficavam nos formatos de flor dentro da boca. Uns vidrinhos bons de cortar a língua!

Coelhos de marzipan (massapão ou maçapão, dependendo do livro de receitas). Nunca apreciei, mas jamais disse isso à tia Elaine, quem mais gostava de nos presentear com a iguaria. Menos mal que eles sempre serviram de moeda de troca por uma barra de chocolate branco, predileção pouco usual.

Chica. Uma cadela Fox Miniatura especializada em roubar bombons e chocolates dos nossos ninhos. Quieta, subia nas mesas e balcões usando poltronas, sofás e cadeiras como escada. Crime descoberto apenas mais tarde, no momento de arredar as poltronas para faxina. Ali, restavam as embalagens caprichosamente abertas com os dentes e com as patinhas.

O leitor certamente terá outra lista.


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