27.5.09

Número 319

DEBAIXO DO NARIZ

Quem mexe os invisíveis cordões da moda, das tendências, do comportamento? Boa pergunta... Uma teoria é a de que esses movimentos estão sujeitos às deliberações efetuadas em reuniões seletas, em andares altíssimos de edifícios luxuosos em Nova Iorque, Milão ou Paris. Ou, por outro lado, são fruto de disparos aleatórios e pulverizados de tentativa e erro, combinados com pesquisas mercadológicas. Há quem acredite na simpática ideia de inconsciente coletivo. Algo, porém, é consensual: na moda, nas tendências e no comportamento, vale sempre a antiga lei de Lavoisier, na qual nada se cria ou se perde – tudo se transforma.

Por exemplo, em meu pouco tempo de vida, vi as calças alargarem as bocas de suas pernas feito cortinas; depois, retrocederem até quase não passarem os pés e, novamente, ganharem o formato de sino. Na cintura, elas andaram, entre altos e baixos, variando da borda das costelas ao cúmulo de exigir depilação feminina e cuecas de grife. Na minha infância, bermuda era vestimenta de escoteiro: calção de verdade era curtinho como os da Seleção Brasileira de 74. Agora, nada que esteja acima do meio da coxa é aceito por meu filho. Nem preciso entrar no movediço terreno da indumentária feminina, muito mais oscilante e variável, para comprovar a tese de que tudo o que foi moda um dia, fatalmente, retorna.

Vinha faz tempo pensando nas idas e vindas da moda e, duas semanas atrás, lendo uma tirinha em quadrinhos do Recruta Zero, decidi trazer à tona uma inquietação para compartilhar com os leitores. Antes, para quem desconhece as personagens de Mort Walker, apresento quatro delas e suas características: Sargento Tainha, o brucutu, marcado pelo dente inferior acentuado; Dentinho, o tonto, dentuço feito um Ronaldinho; Zero, o desastrado e preguiçoso, com os olhos escondidos, e Quindim, o mulherengo sedutor, com seu indefectível bigodinho. Pois, ao ver o Quindim cercado de gatinhas, algo me estalou: onde andarão os bigodes? Chegará o dia de eles retornarem à face masculina?

Na década de cinquenta do século passado, época em que o Recruta Zero ganhou fama, nada era mais charmoso do que um bigode sutil. Dos astros de cinema, passando por cantores, homens do jetset internacional e, claro, golpistas sedutores, quase todos os bons partidos cultivavam seus bigodes bem aparados. Rapazes de bigode seguiram na paisagem por outras duas décadas – basta lembrar que o desejado Chico Buarque usava bigode. Antônio Fagundes, também. Aliás, lembro de uma série de atores que recorriam ao bigode para variar de rosto conforme a personagem. Os Beatles, antes de aderirem ao visual barbudão, passaram pela etapa bigoduda. E as mulheres se derretiam.

Alguma coisa aconteceu nos anos oitenta para o bigode ver raspado seu status. Freddie Mercury e Village People podem explicar uma parte do fenômeno, mas não todo. Parece que a maior resistência nasceu em quem, tecnicamente, não usa bigodes: as moças. Hoje, se um homem ameaça deixar o bigode crescer, sua namorada, esposa ou companheira logo protesta. Diz que é anti-higiênico, feio, cafona. Proíbe! Será que parte da crise de papéis e de identidade masculina é causa (ou consequência) da falta de autonomia com nosso rosto? Está na cara: elas temem algo que o bigode simboliza!

Sei não, acho que o bigode voltará a ser moda a qualquer momento. Em breve, todos os zagueiros usarão bigodes. E os atacantes precisarão deixar os seus crescerem para continuar almejando o gol. Os professores usarão bigodes, e os cantores, os fotógrafos, os jornalistas. Nelson Motta voltará a usar o seu. E Pedro Bial. Isso reverterá a tendência de mulheres poderosas e homens submissos. Será o único freio à hipertrofia dos bíceps da Madonna ‒ bigode, ela usaria? Também assumiremos um comportamento mais audacioso nos jogos de sedução, recuperando a esquecida iniciativa. A força de Sansão estava, quem sabe, no cabelo das ventas!

Nossa, vai ver que no bigode está a explicação do imenso poder de José Sarney... O tempo todo ali, embaixo do nosso nariz! Para ele, Gillette já!

22.5.09

Número 318

ÓVULOS FECUNDADOS

Segunda-feira passada, dia 18, acompanhamos mais um Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes – data instituída em 2000 para recordar um crime de enorme repercussão ocorrido em 1973. Para 2009, o mote da campanha institucional de conscientização contra tal violência é Faça bonito: proteja nossas crianças e adolescentes. Diante do tema, decidi revisar meus arquivos em busca de criações para a mesma finalidade – frases escritas por mim para campanhas que, por um motivo ou outro, nunca saíram do papel. Com elas, pretendo trazer reflexões sobre o tema.

Proteja de olhos bem abertos quem nos ama de olhos fechados. Todos os que têm filhos, ou qualquer um ao passar pela experiência de estar com uma criança sob seus cuidados, notam o elevado grau de entrega que os pequenos nos confiam. Isso é muito natural. Assim, cabe a nós, adultos, desconfiar por eles – ser seus olhos e ouvidos –, evitando que pessoas mal intencionadas avancem (in) justamente sobre quem, por natureza, está desarmado. É imprescindível estar atento aos sinais!

Quem deseja berços merece as grades. Abuso sexual: a reação é cadeia. Não há razão para taparmos o sol com a peneira: existem pessoas cujo objeto de desejo sexual é o infante. Por mais odioso que possa parecer, mesmo ferindo de morte a vítima e seus familiares, quem apresenta tal comportamento reage a uma compulsão. Pessoas assim precisam ser contidas, seja para tratamento psiquiátrico, seja na prisão. Fora de controle, voltarão a agredir nossas crianças. Com certeza.

Não os deixem dormir com os anjos. Exploração sexual infantil: denuncie este pesadelo. Aqui, a expressão dormir com os anjos apresenta, propositalmente, duplo sentido. E aponta para o fato de não ser justo que o agenciador de crianças para a prostituição durma tranquilo – impune – enquanto o agredido tem sua vida transformada em pesadelo. Denunciar essa situação é mais do que dever: é nossa obrigação.

Não o deixe dormir com os anjos. Abuso sexual infantil: denuncie este pesadelo. Estatísticas demonstram que boa parte dos abusos sexuais são praticados dentro do lar, por pessoas que gozam da intimidade e confiança da vítima. Mães: estejam atentas para os sinais emitidos por seus filhos, acredite neles, procure ajuda especializada. Ninguém merece tanto horror...

Abuso sexual infantil: por um futuro em que ninguém tenha passado. Estudiosos do tema nos ensinam que uma parcela significativa dos abusadores sexuais foram vítimas, quando crianças, do mesmo crime. Por isso, impedir que delitos dessa natureza ocorram no presente é, também, prevenir ocorrências futuras. Afinal, a vítima de hoje poderá se transformar no algoz de amanhã.

Se você quiser indicar alguma das frases acima para entidades que costumam agir contra o abuso e a exploração sexual infantil, sinta-se previamente autorizado. Desde que, é claro, respeitando (indicando) a autoria. Afinal, tais chamadas, como estão, não passam de óvulos fecundados antes de serem colocados no útero. Potencialmente, podem ajudar a despertar consciências. Mas, para isso, precisam ser implantadas em campanhas institucionais. Aliás, desde o primeiro momento, elas foram pensadas sem que alguma remuneração financeira estivesse no horizonte.

Tenho esperança de que, dos tais óvulos, ou de tantas louváveis iniciativas de prevenção, venha a nascer o dia em que a sociedade tema bem menos pela salvaguarda da integridade física e psíquica das crianças.

14.5.09

Número 317

SUPERPODERES

Meus filhos, assim como todas as crianças, adoram a ideia de termos superpoderes. Afinal, os heróis são cultuados justamente por essa razão: podem algumas coisas a mais, além do normal, superiores. Um dia, me perguntaram qual superpoder eu desejaria para mim – uma questão dificílima de responder de improviso. Porém, um desafio dos mais interessantes.

Desejando estar à altura da expectativa deles, meu primeiro impulso foi o de escolher um entre os tantos dotes consagrados na tradição dos heróis. Voar, por exemplo. Este desejo acompanha a humanidade desde sempre. Pensando adiante, ser (tornar-se) invisível é outro fetiche contemplado por diversas obras de ficção, vindo a calhar em determinadas situações. Melhor mesmo só quando combinamos o poder de sumir ao de se materializar em qualquer outro ponto do planeta. Já pensou o quanto quem tivesse tais faculdades economizaria com gasolina ou passagens?

Continuei meu inventário: força desproporcional, visão à distância, alcance de elástico, imortalidade... Fiz um rápido passeio pelas mais diversas qualidades dos super-heróis famosos antes de escolher uma para mim. E acabei abandonando todas. O que respondi aos filhos pareceu ser bastante animador: se eu pudesse escolher um superpoder, ele seria o da eloquência. Sim, o poder do convencimento. Depois de hesitarem por alguns segundos, as crianças concordaram: seria um poder e tanto! Com isso, senti até o gostinho de ter tal capacidade.

O passo seguinte foi imaginarmos o que ganharíamos com o superpoder da persuasão. Conseguiríamos convencer alguém a trocar uma nota de um Real por outra de cem? Melhor: trocar o nosso carro antigo por uma Ferrari zero quilômetros, taco a taco? Melhor ainda: propor qualquer negócio deixando a outra parte com a sensação de que saíra levando vantagem? Namoraríamos os mais desejados astros e estrelas? Teríamos o emprego dos sonhos, o salário dos sonhos... Mas, vem cá, precisaríamos mesmo trabalhar em busca do sustento? Em questão de minutos, descobrimos uma força absurda no poder do convencimento. E, de quebra, o perigo que corremos de, com ele, atropelar a ética e nos locupletarmos. Enfim, fazer uso errado deste poder. Horrível!

Lembrei disso pensando em nossos Poderes da República. Excetuando o Judiciário, para o qual os candidatos prestam concurso público (e isso está longe de torná-lo infalível), os outros poderosos galgam suas posições por intermédio do voto. Logo, usam da persuasão para assumirem o Poder Legislativo e Executivo. E, revestidos destes Poderes, fazem o quê? Lamentavelmente, parece que nada do que esperamos dos super-heróis, isto é, proteger os fracos e oprimidos. O noticiário tampouco indica que lutem pela justiça, prendam os facínoras, impeçam as tragédias. Quem dera... Na verdade, alguns usam os superpoderes oferecidos pela democracia para levar vantagem em tudo, segundo a antiga (e famosa) Lei de Gérson.

Fiquei superdeprimido: o poder superior que desejei para mim, julgando-me superoriginal, já é exercido em diversas instâncias. Políticos superpersuasivos são eleitos e, imediatamente, passam a poder diversos poderes: podem voar (sem pagar), podem sumir (e fazer aparecerem laranjas), têm a força das leis a seu favor, usam a máquina estatal para tudo ver, esticam sua influência como um elástico sem fim... Alguns até são imortais. Além disso, ficam furiosos quando, abusando do poder, são flagrados pela igualmente poderosa imprensa.

Da próxima vez em que os filhos falarem sobre o tema, vou desejar diferente: quero só deixar de ser Superimbecil. Quando crescerem, compreenderão.

8.5.09

Número 316

ESPERANÇA

Abre teus braços e canta
A última esperança
A esperança divina de amar em paz

Tom e Vinícius

Se esperança tivesse uma forma, ela seria esférica. Pois assim, redonda, é a forma da mulher que espera um filho. E nenhum outro momento é tão rico em esperança quanto o da gestação. Ele permeia cada sorriso, sublima o desconforto, supera a dor prometida. Ele inunda o coração de modo a fazer passar por ali os melhores fluidos. Ele cativa quem está próximo, ou mesmo quem só passa ao largo. Na gravidez, a mulher espera para si, para o filho e para todos nós um futuro melhor. Espera, também, estar apta para nutrir a vida que se renova. Espera que o pai saiba compartilhar tamanha responsabilidade. Espera viver o suficiente para ver seu fruto tornar-se frondosa árvore. Espera alcançar os netos. Nossa: é esperança que não acaba mais!

Nenhuma mulher perde por esperar. O final de sua espera, ao contrário, coincide com o momento de se ganhar. É quando a felicidade não cabe mais em si: rompe, transborda, derrama-se. E, depois de deixar o ventre, é no seio materno que o filho se alimenta de esperança, de afeto e de vida. O colo da mãe é o endereço do encontro sublime de duas vidas que esperavam uma pela outra – uma dentro da outra –, para firmarem um contrato jamais escrito, mas implícito e reconhecido por suas normas, direitos e deveres. A sociedade espera que as partes cumpram seus papéis. Outra vez, ou seria sempre, é esperança que não encontra fim.

A cada manhã, toda mãe espera ver seu filho despertar. Viverá na esperança de que nada de mal lhe aconteça; de que, com o passar do tempo, caminhe com suas próprias pernas; de que tenha juízo e discernimento; de que encontre bons amigos para compartilhar a vida. Viverá na esperança de que pouco (ou nada) ele sofra por amor. Vã esperança... A mãe espera que o filho seja estudioso na medida de sua capacidade, seja humilde para reconhecer-se aprendiz, seja perseverante e, com isso tudo, possa ter o êxito almejado. Pois o fracasso do filho será também o seu fracasso, sua desesperança.

No entardecer da vida, a mãe espera ter o filho ainda à sua volta. Contará os dias até o final de semana; ou as férias, Natal, Ano Novo. Contará também as novidades adiante e, quando menos o filho esperar, conhecidos distantes saberão detalhes de sua vida. Emoldurará fotografias em portarretratos coloridos, expostos na sala de estar para louvar a certeza de ter oferecido a melhor educação. Escondidas, bem escondidas nas gavetas da cômoda, ficarão algumas desconfianças sobre eventuais falhas aqui ou ali. E a mãe morrerá na esperança de que nada disso seja encontrado por noras e genros de má vontade, loucos para se depararem com explicações, por exemplo, para as manias do cônjuge à mesa. Mesmo na hora da partida, na memória da mãe habitará a esperança.

Faça qualquer maldade com sua mãe. Faça-a sofrer, deixe-a com saudade, ria de seu jeito antiquado, seja presunçoso ou soberbo. Até aplique corretivos, se ela voltar a ser uma criança. É grande a chance de ser perdoado bem no fundo do coração. Pior: ela tomará para si a culpa de, quem sabe, ser justamente punida e maltratada. Só um pecado jamais terá perdão: tirar de sua mãe a esperança. Não imagino ter sido outro o erro do rapaz que, conforme notícia recente, viciado em crack, levou a mãe ao desespero de matá-lo.

Morta a esperança, já não temos mais uma mãe. Já não temos mais nada. E, no vácuo e na vertigem do nada, que vida haverá?