31.5.07

Número 217

GRANDE ENCICLOPÉDIA 1° DE ABRIL – PARTE II

 

Este é, ouso afirmar, o livro mais raro que temos na biblioteca de casa. Como já disse, foi comprado de um turco sorridente na Tríplice Fronteira, em um sebo que ficou aberto por cerca de quinze minutos. Sua capa não apresenta um design inovador para a época (2062): feita de um material sintético que imita o couro, apresenta um azul muito escuro. O título, em baixo relevo, está todo escrito em letras maiúsculas, com uma tipologia sóbria dotada de leves serifas. Pequenos e sistemáticos arranhões nas letras me fazem crer que, um dia, elas tiveram outro tom. Talvez dourado, como era comum em antigas enciclopédias. Ou não, já que o exemplar é em todo surpreendente. Acompanhe outros verbetes:

 

• Dóris Casoy – Bailarina, modelo e apresentadora de TV. Sua passagem midiática foi marcada por um enorme poder de indignação, evidente já nas passarelas e fotografias de moda. Segundo consta, foi de Dóris Casoy o mais famoso bordão contra o escandaloso mau gosto de alguns papas da alta costura: bastava vestir algo ridículo para bradar "isso é uma vergonha". Depois de altos e baixos como apresentadora de TV, ressuscitou para a fama ao sobreviver a uma queda de oito andares. Chegou a ser cotada, por motivos óbvios, para voltar ao Fantástico (o Show da Vida). Ou apresentar o Acredite se quiser. Mas preferiu dedicar-se a um programa assistencial denominado Dóris Apara Maiores, no qual ela colocava telhas de amianto nos andares térreos de prédios de suicidas em potencial.

 

• Nelson Nerd – O menor maior cantor que o Brasil conheceu. Junto com a arte, nutria uma obsessão pela informática – segundo Nelson, apoiado por todos os parentes Nerds, uma vertente do conhecimento que rumava para a sua envergadura ideal. Investiu parte dos ganhos advindos de seu desproporcional sucesso em empresas destinadas às novas mídias, cada vez mais reduzidas. Há relatos de que seu centrinho de pesquisas estava no caminho de antecipar-se às grandes corporações no desenvolvimento da tecnologia MP3 e MP4, quando Nelson jogou tudo para cima (na medida do possível, é claro). Vendeu suas patentes e propriedades, abandonou os fãs e foi cantar em Liliput. Dizem que se tornou o maior artista do lugar.

 

• Simon & Guarabyra – Dupla que nasceu de um trio: Simon, Dylan (Bob Dylan) & Guarabyra. Os compositores e cantores foram os criadores de uma nova vertente da música, vinda do casamento do folk norte-americano e do spiritual caipira, denominada Rock Santeiro. Tornaram-se referência mundial ao compor a trilha da novela "A primeira noite de um cabra safado" (história de um motorista de táxi brasileiro em Nova Iorque – Dustin Hoffman – que se apaixonava por uma coroa – Vera Fischer). Influenciaram outra dupla, esta nacional, que também saiu de um trio: Sá, Rodrix (Zé Rodrix) & Garfunkel. A dupla Sá & Garfunkel, após se antecipar ao aquecimento global cantantando ... o Sertão vai virar mar..., traduziu de Simon e Guarabyra o sucesso mundial Bridge Over Troubled Water . Em bom português: Brinque de outro troço, Walter.

25.5.07

Número 216

PEDÁGIO INVERTIDO

 

Bem-vindos à mais nova polêmica sobre a educação brasileira: a proposta de o Governo Federal premiar a aprovação dos alunos carentes com dinheiro vivo no final do ano letivo, via Bolsa-Família. As autoridades esperam, assim, combater dois problemas com um só disparo (munição sacada no bolso do contribuinte, é claro): evasão escolar e miséria. A idéia não será mais passar de ano, e sim passar no caixa. Uma espécie de pedágio ao contrário: passou, recebeu. Faço uma força enorme para crer que os tais çábios* que nos governam têm sempre razão. Assim, vou seguir-lhes o exemplo e instituir, em casa, um programa semelhante para meus filhos. Explico.

 

Não mais vou investir meu precioso tempo ensinando para as crianças a importância de se fazer refeições balanceadas. Eles não precisam conhecer as particularidades de cada grupo de alimento, as vantagens das frutas, verduras e legumes frescos; o problema da ingestão exagerada de açúcares e carboidratos; as conseqüências do uso abusivo do sal, entre outras boas orientações para toda a vida. Faço assim: eles comem tudo o que lhes é servido e, no final do ano, prometo pagar-lhes R$204,00**.

 

O filho mais velho, que está usando aparelho odontológico, não precisará mais fazê-lo de modo disciplinado por conhecer seus benefícios. Ele não necessita saber que o cuidado com os dentes é uma questão de saúde, afetando desde a digestão, passando pela respiração e chegando até à postura, prevenindo doenças futuras. Eu não vou dizer para ele que, sendo diligente no uso do aparelho, o tempo de tratamento diminuirá. Digo apenas que, colocando-o, no final, ele ganhará R$204,00.

 

Economizarei um esforço gigantesco em cobrar aprendizado escolar, também. Afinal, gasto boa parte do meu tempo demonstrando que o progresso é resultado de investimento pessoal constante e disciplinado. Aponto o conhecimento como a chave que abre as portas para uma vida plena, ao contrário da ignorância – a maior das barreiras. Ensino que cumprir as tarefas, ser pontual, ordeiro e esforçado é uma obrigação estudantil. Quem sabe o mais correto seja prometer, ao final do período letivo, R$204,00, caso passem de ano.

 

Sair no frio bem agasalhado; dizer com licença e obrigado; olhar para os dois lados antes de atravessar a rua; guardar os brinquedos e material escolar depois do uso; segurar corretamente os talheres... Tudo pode ter um preço e, ao final do ano, valer outros R$204,00. No fim da crônica, meus filhos terão aprendido uma grande lição: como faturar R$816,00. Pavlov, e seu cão que salivava ao tocar a sineta, será o meu orientador educacional. Mais: vou fazer igual ao Governo – uma vaquinha entre amigos e parentes para essa quantia vultosa não sair do meu bolso. Çábio é distribuir o dinheiro dos outros!

 

P.S.: Como o Governo sempre cancela os reajustes salariais dos professores, eles ficarão no comando da cancela deste pedágio invertido, vendo passar alunos e verbas.

 

*   Çábio é uma expressão de autoria original de Millôr Fernandes.

** R$204,00 é, segundo a imprensa, o valor em estudo para a aprovação.

17.5.07

Número 215

VOTOS NUPCIAIS

 

Passou o tempo do lar ditatorial. Hoje, na classe média, família e democracia são conceitos casados. Ou, ao menos, deveriam ser. Em casas onde todos trabalham, quanto maior a intimidade com os procedimentos democráticos de convivência, mais harmonia é experimentada. Porém, não pensem que isto é fácil. Dar voz – e voto – para pai, mãe e filhos, exige uma boa dose de preparo. E, claro, há quem exagere na dose. Tipo o casal na manhã de sábado – desjejum mais tranqüilo, filhos dormindo até tarde, leitura do jornal. A esposa abaixa o suplemento de arquitetura:   

 

        Arnaldo: não agüento mais! Quando vamos fazer a bendita reforma na área de serviço?

Sem tirar os olhos da página de esportes, ele responde:

        O processo está tramitando na subcomissão de obras...

        Sim, querido, isso eu sei! Mas já tem quase dois anos e nada de ele avançar para a ordem do dia.

Neste momento, os dois já se olham.

        Marisa, não tenho culpa. Não é a única matéria estacionada. Ainda mais agora, em tempos de aperto. Nosso salário mal e mal dá para despesas ordinárias da pasta, como troca de lâmpadas, pequenos reparos, jardinagem... – volta para a leitura. E sugere: – Uma saída é o desvio de verbas destinadas a supérfluos. Salão de beleza, por exemplo.

        Ah, muito fácil para você avançar na receita dirigida aos outros! Fazemos isso e, depois, quando lascar o esmalte, aparecerem cabelos brancos e sobrarem uns pelinhos inconvenientes, serei eu quem ficará devendo explicações ao eleitorado! – baixa o jornal do marido. Desafia: – Por mim, cortamos a verba do futebol.

        Impossível! Faz tempo que retirei esta rubrica de "lazer e cultura" e coloquei na pasta da saúde. Saúde mental! – retorna à leitura. – E, como já foi votado anteriormente, saúde tem prioridade nesta casa.

        Que ódio! Jamais engoli esta manobra de plenário. Sua e do Júnior! Ninguém me convence de que não compraram o voto da Alicinha com uma promessa de suplementação orçamentária na cantina da escola.

 

Fim-de-semana comprometido. Marisa, inconformada com o descaso de Arnaldo, parte para o contra-ataque. Tranca a pauta de vez. E, à noite, quando ele tenta um acordo de líderes, ela manobra com a base e se retira da sala de votação. Urna lacrada. Sem quorum, o marido só pensa na ditadura.

11.5.07

Número 214

SUPERFILHOS

 

Diz que a mãe do Homem Invisível nunca vê o filho no Dia das Mães. Um exagero, com certeza. Ele sempre vai até a casa dela. Só não aparece, para testar o sexto-sentido da coroa. E, como adivinhações não é o seu forte, ela passa o domingo inteiro pulverizando farinha para cima e tentando pegar a orelha do herói metido a moleque. Principalmente quando precisa ir ao banheiro. O cara não se enxerga!

 

O Batman, sabemos, é órfão de pai e mãe. Ainda criança, viu seu mundo virar de ponta-cabeças com a morte da família – isso nos dá pistas da estranha mania de ser homem-morcego. Por isso, no Dia das Mães, oferece ao Alfred, de presente, panos-de-prato pintados com lindas frutas sorridentes. Pobre homem. Só quem assume a maternidade de corpo e alma sorri de volta para uma maçã, uma pêra ou um moranguinho. Mas o mordomo tem culpas a expiar no cartório. No mínimo, por permitir o rapaz de sair com a cueca por cima da calça.

 

A casa materna do Multi-homem fica lotada no segundo domingo de maio. A velhinha cozinha tão bem, mas tão bem, que o filho, ao invés de repetir os pratos, repete-se para comer ainda mais. Toma todos os lugares à mesa! Justo ela que fazia piada das amigas com filhos gêmeos... Mas essa não é a maior sacanagem: o mão-de-vaca leva, no tal dia, um único presente! No mesmo bairro, quando a mãe do The Flash pisca, o filho já foi embora.

 

O Homem-de-ferro nunca visita a mãe. Evita as situações emotivas para não chorar – água salgada é um veneno para quem luta contra a ferrugem. Outro que abandona a velha é o Homem Aranha: eles brigaram por causa do preconceito da mãe com uma de suas namoradas, a Viúva-negra. Bem diferente do Homem-de-gelo, que tenta estar com a mãezinha todo ano e, derretido por ela, escorre em minutos pelo ralo da cozinha.

 

O Charada ganha, todos os anos, um indulto para sair da prisão no Dia das Mães. E o que ele faz com isso? Arma uma pegadinha para cima da coitada! Ninguém consegue resolver o enigma de aquela senhora ainda gostar do estrupício... Diz que o Incrível Hulk fica bem calminho no colo da mamãe, enquanto ela lê para ele, com muita paciência, "O menino do dedo verde". E, só a mãe do Coisa ainda continua achando o menino bonito.

 

No domingo, ninguém precisa ser capaz de saltar, ventar, congelar, voar ou subir pelas paredes para salvar o dia. Basta fazer uma visita para a mamãe, ou dar-lhe uma pequena lembrança. Garanto que ela ficará supercontente.

3.5.07

Número 213


PRAGA DIZIMA BODAS

 

Perdão pela ruminância do tema, mas tive uma iluminação. Creio com sinceridade que o Papa Bento XVI condenou os segundos (terceiros, quartos) casamentos por afrontarem um preceito católico: a união sagrada perante Deus. Ok. Mas, digamos que, sei lá, o Pontífice tenha recebido por esses dias a visita do Sr. Fritz, o mais velho joalheiro suíço ainda vivo, este portador de uma reivindicação da categoria:

 

           Zezinho (diminutivo de Joseph Alois), tu sabes que eu e o teu pai fomos muito amigos. Nunca te pedi nada enquanto eras Cardeal. Mas agora, Papa, podes nos dar uma forcinha: estamos na iminência de perder os clientes de Bodas, filho. Ninguém mais fica casado. Isso é uma praga!

 

Praga ou não, a verdade é que, há médio prazo, as festas de Bodas de Prata, Pérola, Rubi, Ouro ou Diamante, para ficar nas mais cotadas, tendem a terminar extintas. Com o fim, os presentes alusivos jamais serão trocados. O Sr. Fritz tem razão para se queixar. As próprias Bodas intermediárias andam esquecidas. Imaginem o seguinte diálogo:

 

             Glória! Alceu! Deixa-me apresentar o Paulo, meu namorado. Sabe, meu anjo, incrível!, esses dois estão casados há... nossa, quantos anos, Glorinha?

             Comemoraremos Bodas de Hematita em novembro, querida – responde, dirigindo terno sorriso ao par.

 

Desnecessário dizer que a amiga, a tal namorada do Paulo, precisou entrar no Google para descobrir o tempo de matrimônio do casal. Mas vou poupar o leitor deste trabalho: em novembro, 28 anos.

 

Se isso (do Sr. Fritz ir ao Vaticano) realmente aconteceu, acho que a estratégia foi mal montada, tanto que o Papa sofreu críticas de muitos formadores de opinião. Caso o joalheiro viesse a me consultar, eu aconselharia rever-se os sistemas de Bodas. Acompanhe o raciocínio: quando saímos de um casamento para outro, não abandonamos os filhos, certo? Então, por que abandonar o tempo de Bodas? Assim, quem rompe nas Bodas de Renda, parte em segundo casamento direto para o Marfim. Igual ao tempo de aposentadoria. De união em união, a mulher receberá o colar de pérolas (30 anos) que bem merece!

 

Claro, não é tão simples. Contar só o tempo de matrimônio da esposa é discriminação. No caso de ambos virem de uniões passadas, é preciso somar os tempos e dividir por dois. Tipo a Marilda: dois anos com o Jair, sete anos e meio com o Ricardo, meio ano com a Dulce (heterodoxo, mas deixa a conta inteira). Total: 10. O Sílvio: quatorze anos com a Maria Aparecida e dois com a Doralice. Total: 16. Então, 10+16=26:2= Bodas de Turmalina. No primeiro aniversário do casal Marilda e Sílvio, comemora-se as Bodas de Rosas.

 

Gente! Até os planos de saúde, com medo de ficarem sem clientes, estão comprando as carências das pessoas. Qual a razão de as Bodas não aderirem a este cálculo? E, quem está com receio de afastar um pretendente por estar numa Boda muito avançada, que faça uma promoção: de Bodas de Louça por Bodas de Latão. Só até sábado, não perca!  


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