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Número 452
Rubem Penz
A pizza da moda é metade politicamente correta, metade quotas de inclusão. Sobre a massa, todos devem estar representados, sob pena de o cozinheiro ser taxado de preconceituoso, sexista, racista ou qualquer outro termo terminantemente discriminatório. Há uma ditadura de conduta pronta para condenar quem escolha compor determinado grupo com um ou outro, acusando-o de excluir os demais. Como se a exclusão não fosse inerente a qualquer ato de escolha, em todo critério adotado.
Os norte-americanos, mestres da cozinha padronizada – garantia de lucro em escala –, já se deram conta disso faz muito tempo. Programas infantis, para jovens e seriados adultos, por exemplo, capricham na receita: há sempre uma loira, um oriental, uma latina, um gay, um ruivo, um nerd, um forte, uma gorda, um negro. Há crespos e calvos; altos e nanicos; ingênuos e sacanas; ricos e pobres; urbanos e caipiras. Um mundo de ficção que reflita com esmero de cheff a diversidade humana, tudo em nome da audiência.
Os roteiristas cuidam, também, de fugir dos execráveis estereótipos: é melhor que a loira seja inteligente; o negro, chefe; o latino, honesto; o gay, sério; o idoso, disposto, e assim por diante. Jamais insistir em rótulos depreciativos! A patrulha estará pronta para denunciar a perseguição e o reforço dos preconceitos. Assim, o vilão ideal deverá ser homem, heterossexual, claro de cabelos e de pele, nem jovem nem velho, oriundo da classe média (para cima), escolarizado, gozando de plenas faculdades físicas e mentais... Algo parecido comigo, por exemplo. Já ando me esquivando pelas ruas.
Esse desabafo tem um motivo. Associação Gaúcha de Escritores (AGEs) empossou sua nova diretoria, da qual tenho a honra de fazer parte. Felizes da vida com a oportunidade de colocarmos nossos esforços individuais a serviço da coletividade – é para isso que as pessoas de bem assumem tais encargos –, posamos para a foto e mandamos a notícia aos formadores de opinião, imprensa etc. Para a nossa surpresa, poucos minutos bastaram para a primeira crítica: entre nós sete – presidente, vices e diretores –, há uma só mulher. Deveríamos ter convocado para o registro de imagem o conselho eleito na mesma data: nele, elas estão com superioridade de quatro para um. Aí, pode.
Acreditem: mais do que culpada, a chapa foi acusada de dolo. Para aqueles que só têm no cardápio a tal pizza metade politicamente correta, meia quotas de inclusão, outros arranjos são propositalmente preconceituosos. Nosso presidente não compôs com a maioria de homens: sonegou às mulheres a participação. Em nome da igualdade, a liberdade é banida do cardápio. Aguardamos as manifestações de outras minorias para qualquer momento. Pois, pior do que ter uma só mulher, entre nós não há portadores de deficiências físicas, índios... E os japoneses? Esquecemos dos japoneses!
Número 451
Rubem Penz
Jazz died in 1959
Nicholas Payton
Teria mesmo morrido o Jazz? Ao menos é isso que apregoam alguns músicos mais puristas, estudiosos e consagrados. Mas o que dizer do Tango? Ou do Choro, da Rumba, do Blues, do Rock? (a lista pode ser numerosa) Bom, se o Jazz nos deixou em 1959, tese do trompetista Nicholas Payton, e os demais movimentos anos antes ou depois por extensão de raciocínio, o que nós, artistas, estaríamos fazendo sobre os palcos? Depois da morte, até onde sei, vem o silêncio. E silêncio não há.
Observo que o filosófico tema de vida e morte nas manifestações artísticas rende vastíssima pauta. O pessoal adora digladiar sobre quando nasceu ou morreu determinado estilo, quem foi o pai, a mãe ou o médico que assinou o óbito (depois de receitar tranquilizantes além da conta...). Também quem embalou seu crescimento, com quem se relacionou e se deixou descendentes legítimos ou bastardos.
A Bossa Nova, por exemplo, alimenta uma farta polêmica sobre sua paternidade. De acordo com Ruy Castro, o verdadeiro pai da música é o pianista Johnny Alf. O senso comum – ou um lobby melhor construído – jura que foi o João Gilberto a fecundar a batida e gerar os primeiros acordes. Um frágil consenso paira sobre o dia e local do parto: teria ocorrido nos estúdios de gravação do álbum Canção do amor Demais, de Elizeth Cardoso. O que nos remete a Tom & Vinícius, outros implicados na fornicação. Além desse pessoal citado, pode-se, fácil, elencar mais dez, vinte candidatos... Aliás, como sempre acontece quando o filho é bonito.
Voltando ao Jazz – e ao passamento – teria o estilo morrido de causas naturais? Suicidou-se prevendo que o então pequeno Kenny G, mal saído das fraldas, aprenderia saxofone? Ou seriam novas correntes de criação a sufocar o Jazz, tomando toda a atenção? Na lógica, podemos inscrever a Bossa Nova como candidata à asfixia, lembrando que ela nascera em 1958, véspera do suposto óbito do outro. Uma quarta hipótese pode defender que nem o Jazz, nem o Elvis, morreram de verdade. Um vive incógnito em Memphis, ganhando a vida como imitador de si mesmo (e longe de ser o melhor). O outro segue saudável em New Orleans, íntegro e altivo no Bairro Francês. Cobrando-me visita, inclusive.
Sem almejar o peso da razão, minha teoria é a seguinte: morreram de verdade o momento e a circunstância que fizeram nascer o Jazz (e o Bolero, a Milonga, a Marcha Rancho, o Frevo...). Aí estão pai e mãe. Os músicos da época foram aqueles aos quais a notícia chegou, cumprindo a função de propagá-la. A magia do artista é ser capaz de compreender o recado; seu valor é dominar a técnica que permita transmitir o recado; seu sentido de vida será o de cumprir tal missão. Porém, nascido o estilo (a vertente, a batida, o movimento), mesmo tendo falecido os pais, o próprio seguiu fecundando novas almas e mentes. O Jazz não morrerá jamais porque ele mesmo trata de sua sucessão. Já não é mais filho: agora é pai e avô. Também é mãe. E pariu com sucesso, quem diria, até o Kenny G...
Número 450
Rubem Penz
Uma das imagens consagradas para significar a união entre as pessoas é a do laço. Durante a vida formamos laços matrimoniais, laços de amizade, laços familiares, profissionais ou de vizinhança. Vínculos que, de alguma forma, nos prendem uns aos outros. Há aqueles fortes como um nó cego: entre pais e filhos, ou entre irmãos, por exemplo. Estes, jamais se desfazem: é preciso cortá-los na carne. Outros, são tênues a ponto de se desmancharem com o ínfimo peso das horas. Nenhum melhor ou pior: apenas diferentes, cumprindo suas funções.
Existem, também, os laços indiretos. Aliás, são os mais frequentes: sou amarrado em música, em bicicleta, em orquídeas ou aeromodelismo e, de algum modo, construo relações com alguém que igualmente seja. Nada além do mesmo gosto nos prende. Isso pode durar uma pequena, porém salvadora, conversa entre dois desconhecidos em um encontro social. Parênteses: só quem já esteve na angustiante situação de convidado para um lugar onde todos são estranhos sabe o valor de encontrar alguém para enlaçar um papo. Assunto que, se morrer ali mesmo, já terá valido muito. Ou, ao contrário, fará nascer o amor verdadeiro, a franca concorrência, uma longa amizade...
Este último foi o caso que me aconteceu vinte e muitos anos atrás. O lacinho casual de dois deslocados numa festa de aniversário bastou para firmar a parceria que compôs a formação musical que tenho até hoje, e cujos parceiros unem-se cada vez mais em laços de afeto. Estranho é lembrar que, daquela tarde, os vínculos que julgávamos fortes se desfizeram, restando firme o singelo fio da meada sobre jazz, influências musicais e amigos músicos. Desde lá, construímos uma farta teia de relações, de intenso e prazeroso convívio. Sem dúvida, me amarro nesses bons amigos!
Professores também são testemunhas de novos laços a cada ano ou semestre, no instante em que o período letivo começa. No meu caso, nas novas turmas de oficina literária, pessoas desconhecidas permanecem algumas horas atadas ao processo criativo. Um pouco por causa da paixão que carrego pela crônica, gênero ideal para a informalidade, de alguma maneira contamino o grupo com tal espírito. E vibro com o companheirismo que nasce e frutifica a partir dos encontros em torno dos textos. Acredito que ainda testemunharei outro nível de desdobramentos – além da boa amizade ou do ódio sincero – entre os colegas de turma. É uma questão de tempo.
E a vida funciona assim: todos nós (sem trocadilho) inseridos no tecido social de laço em laço, sendo uns estratégicos e outros afetivos; uns efêmeros e outros perpétuos. Como ser feliz sem dar um pouco de corda a quem puxa conversa? Mesmo fiada: são as melhores! Pense nisso quando lhe estenderem a mão, ao receber um surpreendente bom dia ou boa noite, se pintar um papo na fila do cinema etc. Não economize novos laços em sua rede de amizades. Jamais saberemos qual nó evitará nosso tombo. Nem quem estará seguro por nossas forças, com braços e almas entrelaçados em mútuo socorro.