A LINHA TÊNUE
Bezerra entra na loja de armarinhos do Turco. Primeira vez. Seu ar é de desconfiado. Freguesa, é sua Madalena – comprara lá desde os lençóis do enxoval, passando pelas fraldas dos filhos e, mais recentemente, os guardanapos escolares dos netos. Mãos para trás, os olhos para o alto, um leve cantarolar nos lábios. Em poucos passos já está no balcão, diante de Aziz, que lhe sorri encantador.
– Bom dia, freguês! – ele abre os braços com as mãos espalmadas para cima. – O que procura, seja o que for, temos por bom preço!
Bezerra responde o cumprimento com um meio sorriso. Solta as mãos. Fixa o olhar no vidro do balcão. Percorre com o dedo indicador os diversos escaninhos lotados de carretéis. Estaria, na verdade, atrás de algo muito difícil: uma linha a qual todos se referiam, mas que nunca mais vira. Uma linha tênue. Teria dessas?
– Depende, freguês. Depende... – puxa de cima da mesa o carretel de linha verde. – Dessa aqui, por exemplo, agora mesmo levaram um pouco: é a linha tênue que separa a boa intenção da incompetência. Interessa?
Sem tirar os olhos da vitrine, Bezerra nega com a cabeça. Dá duas batidinhas de unha e aponta para a cor de laranja. Ergue o olhar.
– Está mais para essa...
– Ah, a linha que separa a letargia da classe média da ignorância diante do perigo constitucional. Faz tempo que ninguém a percebe. Perdoe a curiosidade, mas o senhor está desconfiando de algo?
– Não, não. Gosto do tom, apenas. Tem bastante dela, ainda?
– Carretel único, freguês, bem no fim – desconversa. – Mercadoria que não gira, comerciante algum repõe.
O Turco puxa a gaveta para si em busca de alternativas:
– Olha, para ser franco, bastante tenho dessa, amarela – apanha o carretel e alcança para Bezerra. – Vê se gosta: é a linha tênue que separa a pretensão de inocência da investigação isenta. Faz anos que está na moda!
– Vê a minha idade, seu Turco! – franze o cenho, olha nos olhos. – E homem velho liga para moda?
Aziz corre com as mãos atrás de algo melhor para oferecer. Pára na linha preta. Muda de idéia: apanha a cinza. Ela separaria a consciência crítica da informação pura e simples.
– Gostei. Meu genro, por exemplo, nem faz idéia que ela possa existir.
Nesse momento, Bezerra tira uma pequena amostra de linha do bolso. Coloca sobre o vidro. Vai ao assunto:
– Essa, a linha tênue que separa a ação política descomprometida da corporação partidária, o senhor tem para vender?
O Turco olha em volta. Estão a sós. Pede licença, sai de trás do balcão. Fecha a porta de vidro da loja. Tranca. Passa correndo e pede com as mãos que o aguarde, diz que está no estoque. Ruma para os fundos.
Bezerra fecha as mãos e comemora. Pega o telefone celular. Busca na agenda do aparelho o nome do amigo repórter de jornal. Chama o número e desiste. Guarda o celular. Pára defronte a vitrine de lingeries, passeia com os olhos.
Espia a porta por onde sumiu Aziz. Volta a apanhar o telefone. Disca para casa. Toca diversas vezes. Ninguém atende. Caminha até a porta de vidro com as mãos nas costas. Ainda segura o celular. Cantarola. Retorna para o balcão. Repara: O Turco levou a amostra! Liga para o repórter. Toca uma vez. Duas, três vezes.
Escuta uma sirene. Parece que é a Polícia.
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