REPETÊNCIA
Fazemos o mesmo. O mesmo. Sempre o mesmo.
Qualquer alteração, a qualquer tempo, virá diferir.*
Falei para ele: repetir o ano é o fim. A pior viagem. Inadmissível. Abala nossa auto-estima, destrói a gente por dentro. Estraga o Natal, arruína o Reveillon, mata o ânimo para nossas férias. E pouco me importa o que os outros possam estar pensando. Não é isso que conta. Para mim, a opinião de terceiros, nessa e em qualquer hora, é irrelevante. Minha preocupação é de foro íntimo: as conseqüências da repetência para a vida toda. Sim, pois cada vez que repetimos o ano, é como se o perdêssemos para sempre. Passado.
Falei para ele quando estava em tempo. Sei lá, ainda no começo de outubro, tivemos a oportunidade de tocar no assunto pela última vez. De lá para cá se passaram quase dois meses. Tempo hábil para alguma providência. Sobrando. Tem gente capaz de virar a vida do avesso em sessenta dias! E aí pergunto: o que ele fez? Nada. Certo, nada é exagero. Digamos que nada com relevância para, quem sabe, salvar o ano. Nenhuma atitude afirmativa. E acho que qualquer ação, por menor que fosse, poderia ter dado resultado. Mas não: se ele fosse um carro, teria ficado na banguela. Ou com o motor desligado. A direção, parada. Freio de mão puxado. Agindo assim, só andaria em caso de tornado. Ou enchente, Deus me livre!
Falei, mas ele nem ligou. O pior eu nem te conto: isto sequer está acontecendo pela primeira vez. Sim, daí o meu desespero. Ele já perdeu o ano antes e nem assim toma providências. Repetir virou rotina. Todo mundo avançando e ele lá, marcando passo. De bobeira. Engessado. Satisfeito em fazer tudo outra vez, outra vez, mais uma vez, igualzinho. Todos se ocupando com novidades, conhecendo mais, aprendendo, criando. Olhando para trás com aquela boa sensação de dever cumprido. Cansados, é certo. Uns meio esgotados. Poucos à beira de um ataque de nervos. Mas nem esses últimos em estado tão deplorável quanto ele. É de dar pena.
Antes, em outra ocasião, havia falado sobre piedade. Afinal, posso não ligar para o que os outros pensam. Ele pode não ligar para o que os outros pensam. Mas é impossível controlar o sentimento alheio. Quando despertamos pena, é quase como se estivéssemos deitados no chão. Nocauteados. O árbitro avançando indelével na contagem e nos faltando pernas para levantar. Um lutador pode passar por essa situação: é do jogo. Mas um ser humano não pode assumir essa condição para a vida. Atinge a si e a todos que o amam. Aliás, fica difícil amar quem não se ama. Mais fácil se afastar, negar o problema na esperança de que seja resolvido em um passe de mágica. Repetir o ano, penso agora, é preparar a poção e não ter o feitiço. Puf!
Falei para ele: para o ano que vem, chega de repetência. Ele me olhou com ares de reprovação. É muito dolorido mostrar justo para ele o que é certo ou errado. Esperar dele uma reação. Lembrá-lo que já foi diferente, produtivo, vivaz, sensato. Exemplo de vida! E agora, de um tempo para cá, irreconhecível. Não cogito uma vida de aventuras. Mas, nenhum livro? Nenhum passeio diferente? Nenhum novo amigo? Nenhum novo assunto? Isso que está acontecendo é uma eterna repetição de horas sem serventia, sem encantamento. Sem vida! Quem sabe um hobby? Um animalzinho para se sentir responsável? Faz tempo que dou a idéia de um curso diferente, para o qual tivesse talento. Em vão.
Não sei mais o que faço com meu pai.
*Do poema intitulado Em diferenças, que não considero pronto.
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