PÉ ATRÁS
Até onde sei, os jogos que envolvem lutas partem de uma postura corporal defensiva sólida e equilibrada – joelhos levemente flexionados e pés em desencontro. Boxe, esgrima, judô, capoeira... Seja qual for a escola, todo mestre cuidará para que seu aprendiz não ofereça ao adversário um flanco vulnerável. Até onde sei, ninguém consegue abraçar o próximo assim, com o pé atrás. O que vale para o confronto, não vale para o conforto.
A medo endêmico tem levado especialistas em segurança a ocuparem espaços privilegiados em veículos de comunicação, normalmente contíguos às ensanguentadas editorias de polícia. Suas dicas nos ensinam a entrar e sair de garagens, caminhar pela calçada, portar objetos, sacar dinheiro do banco. Aprendemos a escolher o melhor lugar para estacionar, conduzir de forma protegida uma criança, parar corretamente no sinal vermelho à noite. Passamos a reconhecer movimentos suspeitos em nosso redor, situações nas quais determinados riscos aumentam, rotinas que nos tornam frágeis. Em outras palavras, nos chega a mensagem de que precisamos encarar o mais inocente hábito como sendo uma manobra militar. A ordem é manter, sempre, o pé atrás.
O problema é que esse ar desconfiado, essa postura defensiva, esse eterno sobressalto, tudo acaba contaminando a nossa visão de mundo. O próximo, mais do que nunca, tornou-se um oponente em potencial. Querendo ou não, transmitimos esse medo para nossos filhos, seja em orientações explícitas – replicando as dicas de segurança –, seja em demonstrações involuntárias de temeridade. Aliás, parêntese fundamental, muito estranho seria não fazê-lo, ao menos nas metrópoles brasileiras. Todo o esforço de civilização acaba se perdendo e voltamos a ser o primata que um dia desceu das árvores, tomou a postura ereta e passou a enfrentar os lobos. De diferente, apenas o lobo – agora homem.
Por tudo isso, começa a ficar muito complicado projetar um futuro mais solidário: desde o berço, as crianças são treinadas a manter o pé atrás. Minha geração ainda circulou pelas ruas sem grandes receios, ou pelo menos sem achar que poderia sofrer alguma brutalidade no menor vacilo. Havia, sim, orientações preventivas de parte dos pais. Mas nada que se compare ao comportamento de guerrilha ao qual estamos expostos. O acirramento da violência e os traumas por ela gerados exacerbam o medo, alimentam a solidão e criam uma espiral de hostilidade.
E está se tornando cada vez mais difícil escapar deste círculo vicioso. O exemplo, porém, precisaria obrigatoriamente vir de cima: administração pública honesta, instituições sólidas, polícia confiável, direitos preservados, deveres a cumprir. Muito por isso, tenho sucumbido à desilusão. Quanto mais deveria avançar nossa consciência representativa, efeito direto de muitos anos com liberdade de escolha, menos fé eu deposito no estado brasileiro. Para mim, o poder constituído, em todas as esferas, parece divorciado do bem comum numa escala crescente. Faz um bom tempo que, da mesma forma como sou obrigado a me portar na rua, cumpro a obrigação de comparecer às urnas: com o pé atrás. Postura que torna impossível abraçar qualquer causa. Desconfortáveis, vivemos a ditadura do confronto.
Até onde sei, os jogos que envolvem lutas partem de uma postura corporal defensiva sólida e equilibrada – joelhos levemente flexionados e pés em desencontro. Boxe, esgrima, judô, capoeira... Seja qual for a escola, todo mestre cuidará para que seu aprendiz não ofereça ao adversário um flanco vulnerável. Até onde sei, ninguém consegue abraçar o próximo assim, com o pé atrás. O que vale para o confronto, não vale para o conforto.
A medo endêmico tem levado especialistas em segurança a ocuparem espaços privilegiados em veículos de comunicação, normalmente contíguos às ensanguentadas editorias de polícia. Suas dicas nos ensinam a entrar e sair de garagens, caminhar pela calçada, portar objetos, sacar dinheiro do banco. Aprendemos a escolher o melhor lugar para estacionar, conduzir de forma protegida uma criança, parar corretamente no sinal vermelho à noite. Passamos a reconhecer movimentos suspeitos em nosso redor, situações nas quais determinados riscos aumentam, rotinas que nos tornam frágeis. Em outras palavras, nos chega a mensagem de que precisamos encarar o mais inocente hábito como sendo uma manobra militar. A ordem é manter, sempre, o pé atrás.
O problema é que esse ar desconfiado, essa postura defensiva, esse eterno sobressalto, tudo acaba contaminando a nossa visão de mundo. O próximo, mais do que nunca, tornou-se um oponente em potencial. Querendo ou não, transmitimos esse medo para nossos filhos, seja em orientações explícitas – replicando as dicas de segurança –, seja em demonstrações involuntárias de temeridade. Aliás, parêntese fundamental, muito estranho seria não fazê-lo, ao menos nas metrópoles brasileiras. Todo o esforço de civilização acaba se perdendo e voltamos a ser o primata que um dia desceu das árvores, tomou a postura ereta e passou a enfrentar os lobos. De diferente, apenas o lobo – agora homem.
Por tudo isso, começa a ficar muito complicado projetar um futuro mais solidário: desde o berço, as crianças são treinadas a manter o pé atrás. Minha geração ainda circulou pelas ruas sem grandes receios, ou pelo menos sem achar que poderia sofrer alguma brutalidade no menor vacilo. Havia, sim, orientações preventivas de parte dos pais. Mas nada que se compare ao comportamento de guerrilha ao qual estamos expostos. O acirramento da violência e os traumas por ela gerados exacerbam o medo, alimentam a solidão e criam uma espiral de hostilidade.
E está se tornando cada vez mais difícil escapar deste círculo vicioso. O exemplo, porém, precisaria obrigatoriamente vir de cima: administração pública honesta, instituições sólidas, polícia confiável, direitos preservados, deveres a cumprir. Muito por isso, tenho sucumbido à desilusão. Quanto mais deveria avançar nossa consciência representativa, efeito direto de muitos anos com liberdade de escolha, menos fé eu deposito no estado brasileiro. Para mim, o poder constituído, em todas as esferas, parece divorciado do bem comum numa escala crescente. Faz um bom tempo que, da mesma forma como sou obrigado a me portar na rua, cumpro a obrigação de comparecer às urnas: com o pé atrás. Postura que torna impossível abraçar qualquer causa. Desconfortáveis, vivemos a ditadura do confronto.
2 comentários:
Maravilha!
A crônica, não a situação desconfortável em que nos encontramos, especialmente diante de nossos filhos.
Zulmara,
O pior é que não vejo saída no horizonte brasileiro...
Abração,
Rubem
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