5.11.09

Número 342

LENHAS & LINHAS

Eu era bem pequeno, mas recordo a luta da mãe e suas irmãs para convencerem a minha avó a migrar do seu tradicional fogão à lenha para o fogão com bicos de gás. Frau Seth foi reticente e tinha argumentos inquestionáveis: estava habituada à cocção nas chapas de aço, não via nenhum desconforto em rachar e armazenar lenha e, principalmente, cozinhar em fogão com chamas de gás alterava o sabor dos alimentos. Não procurava a praticidade do moderno nem ligava para a economia de energia e tempo. Também na cozinha da outra avó, Morena, a transição foi nada veloz. Durante muitos e muitos anos os dois modelos acomodaram, lado a lado, a base das panelas.

Meus filhos acompanham outra peleja: não há Cristo que faça a minha mãe usar o forno de microondas. Ela até tem um, mas nem ligado na tomada o pobre permanece. Enlouqueço quando a vejo aquecer o leite na leiteira: um dos meus traumas de juventude era lavar a louça quando lá estava aquela panela de leite com seu tradicional anel de gordura a ser vencido. Haja sabão e Bombril! Ela usa, também, o fogão e três panelinhas para aquecer uma comida pronta, ao invés de servi-la gelada, direto no prato, e colocar no micro.

Minha mãe, de modo cíclico, é reticente e tem argumentos inquestionáveis: está habituada à cocção nas chamas azuis, não vê nenhum desconforto em lavar panelas e, principalmente, o aquecimento em microondas altera o sabor dos alimentos. Minha sogra, não: usa o micro todos os dias. Mesmo assim, reconhece que o eletrodoméstico jamais de substituirá inteiramente o fogão tradicional, o que projeta uma longa convivência de ambos em sua cozinha.

Lembrei disso para meter minha colher torta na entrada do e-book no mercado livreiro com mais efetividade. Fico pensando se a resistência de muitos será bastante eficaz a ponto de frear o processo. Mais: começo a ter muitas dúvidas se ela é, enfim, correta. O motivo para isso é o singelo exercício de imaginar grandes cidades como São Paulo com seus milhões de habitantes cozinhando em charmosos fogões à lenha.

A celulose, qualquer piá sabe, é a matéria prima para se fazer papel. Vem da madeira, aquele elemento que arde no fogão à lenha. Mesmo que na atualidade ela seja obtida exclusivamente de florestas artificiais e renováveis, o processo, no mínimo, utiliza-se de insumos e espaços agriculturáveis. Com o aumento brutal da população humana e a festejada redução dos índices de analfabetismo, o futuro fica complicado. E livros exclusivamente de papel podem ser algo tão anacrônico, poluidor e impraticável quanto fogões queimando lenha nos apartamentos das metrópoles.

E agora? Agora começa o período de tempo indeterminado (eterno?) em que livros tradicionais e eletrônicos passarão a conviver em nossas casas e bibliotecas. Muitas avós, pais, mães e tios serão alvo de incompreensão ao optarem pela compra de grandes volumes de brochuras ao invés de carregarem seus e-books. Se tudo isso resultar no desejável consumo da literatura, alimento insubstituível, tudo bem. Quem sabe, e eu rogo por isso, muito mais se produza e muitos mais terão acesso aos bons livros.

Porém, ninguém me convence de que é igual. Reticente, tenho argumentos inquestionáveis: estou habituado ao apelo tátil das páginas, não vejo nenhum desconforto em suportar o peso de alguns livros e, principalmente, ler em telas altera o sabor do que está escrito.

PS: dia 11/11, 19h30, na Casa do Pensamento, Armazém A do Cais do Porto, na 55ª Feira do Livro de Porto Alegre, estarei na mesa redonda A Literatura na Era Digital: possibilidades e desafios, ao lado de Dodô Azevedo e Luiz Paulo Faccioli. Feito o convite!



4 comentários:

Anônimo disse...

Não resisti !!!! Que eu acompanho seus textos, gosto deles etc e tal é pra mim natural. Hoje, porém, você falou da minha mãe e da minha sogra !
Parecia que estava em casa escutando uma e outra. Muito legal essa identificação que um bom texto promove. Escrevi para te agradecer por isso. Deve ser muito bom dar prazer aos outros.
Obrigada
Sandra Mello

Rubem Penz disse...

Ah, Sandra, tem essas coisas...
Mãe só tem uma, mas todas se parecem um pouco, né?
Fico feliz e agradecido por tuas palavras.
Abraços!
Rubem

Zu Fortes disse...

Bem interessante a analogia.
Gostei.
Abraço.

Rubem Penz disse...

Obrigado, Zu!
A analogia acaba por nos dar a oportunidade para compreendermos o que está acontecendo. E o que virá pela frente!
Abraços, Rubem

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