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Número 452
Rubem Penz
A pizza da moda é metade politicamente correta, metade quotas de inclusão. Sobre a massa, todos devem estar representados, sob pena de o cozinheiro ser taxado de preconceituoso, sexista, racista ou qualquer outro termo terminantemente discriminatório. Há uma ditadura de conduta pronta para condenar quem escolha compor determinado grupo com um ou outro, acusando-o de excluir os demais. Como se a exclusão não fosse inerente a qualquer ato de escolha, em todo critério adotado.
Os norte-americanos, mestres da cozinha padronizada – garantia de lucro em escala –, já se deram conta disso faz muito tempo. Programas infantis, para jovens e seriados adultos, por exemplo, capricham na receita: há sempre uma loira, um oriental, uma latina, um gay, um ruivo, um nerd, um forte, uma gorda, um negro. Há crespos e calvos; altos e nanicos; ingênuos e sacanas; ricos e pobres; urbanos e caipiras. Um mundo de ficção que reflita com esmero de cheff a diversidade humana, tudo em nome da audiência.
Os roteiristas cuidam, também, de fugir dos execráveis estereótipos: é melhor que a loira seja inteligente; o negro, chefe; o latino, honesto; o gay, sério; o idoso, disposto, e assim por diante. Jamais insistir em rótulos depreciativos! A patrulha estará pronta para denunciar a perseguição e o reforço dos preconceitos. Assim, o vilão ideal deverá ser homem, heterossexual, claro de cabelos e de pele, nem jovem nem velho, oriundo da classe média (para cima), escolarizado, gozando de plenas faculdades físicas e mentais... Algo parecido comigo, por exemplo. Já ando me esquivando pelas ruas.
Esse desabafo tem um motivo. Associação Gaúcha de Escritores (AGEs) empossou sua nova diretoria, da qual tenho a honra de fazer parte. Felizes da vida com a oportunidade de colocarmos nossos esforços individuais a serviço da coletividade – é para isso que as pessoas de bem assumem tais encargos –, posamos para a foto e mandamos a notícia aos formadores de opinião, imprensa etc. Para a nossa surpresa, poucos minutos bastaram para a primeira crítica: entre nós sete – presidente, vices e diretores –, há uma só mulher. Deveríamos ter convocado para o registro de imagem o conselho eleito na mesma data: nele, elas estão com superioridade de quatro para um. Aí, pode.
Acreditem: mais do que culpada, a chapa foi acusada de dolo. Para aqueles que só têm no cardápio a tal pizza metade politicamente correta, meia quotas de inclusão, outros arranjos são propositalmente preconceituosos. Nosso presidente não compôs com a maioria de homens: sonegou às mulheres a participação. Em nome da igualdade, a liberdade é banida do cardápio. Aguardamos as manifestações de outras minorias para qualquer momento. Pois, pior do que ter uma só mulher, entre nós não há portadores de deficiências físicas, índios... E os japoneses? Esquecemos dos japoneses!
Número 451
Rubem Penz
Jazz died in 1959
Nicholas Payton
Teria mesmo morrido o Jazz? Ao menos é isso que apregoam alguns músicos mais puristas, estudiosos e consagrados. Mas o que dizer do Tango? Ou do Choro, da Rumba, do Blues, do Rock? (a lista pode ser numerosa) Bom, se o Jazz nos deixou em 1959, tese do trompetista Nicholas Payton, e os demais movimentos anos antes ou depois por extensão de raciocínio, o que nós, artistas, estaríamos fazendo sobre os palcos? Depois da morte, até onde sei, vem o silêncio. E silêncio não há.
Observo que o filosófico tema de vida e morte nas manifestações artísticas rende vastíssima pauta. O pessoal adora digladiar sobre quando nasceu ou morreu determinado estilo, quem foi o pai, a mãe ou o médico que assinou o óbito (depois de receitar tranquilizantes além da conta...). Também quem embalou seu crescimento, com quem se relacionou e se deixou descendentes legítimos ou bastardos.
A Bossa Nova, por exemplo, alimenta uma farta polêmica sobre sua paternidade. De acordo com Ruy Castro, o verdadeiro pai da música é o pianista Johnny Alf. O senso comum – ou um lobby melhor construído – jura que foi o João Gilberto a fecundar a batida e gerar os primeiros acordes. Um frágil consenso paira sobre o dia e local do parto: teria ocorrido nos estúdios de gravação do álbum Canção do amor Demais, de Elizeth Cardoso. O que nos remete a Tom & Vinícius, outros implicados na fornicação. Além desse pessoal citado, pode-se, fácil, elencar mais dez, vinte candidatos... Aliás, como sempre acontece quando o filho é bonito.
Voltando ao Jazz – e ao passamento – teria o estilo morrido de causas naturais? Suicidou-se prevendo que o então pequeno Kenny G, mal saído das fraldas, aprenderia saxofone? Ou seriam novas correntes de criação a sufocar o Jazz, tomando toda a atenção? Na lógica, podemos inscrever a Bossa Nova como candidata à asfixia, lembrando que ela nascera em 1958, véspera do suposto óbito do outro. Uma quarta hipótese pode defender que nem o Jazz, nem o Elvis, morreram de verdade. Um vive incógnito em Memphis, ganhando a vida como imitador de si mesmo (e longe de ser o melhor). O outro segue saudável em New Orleans, íntegro e altivo no Bairro Francês. Cobrando-me visita, inclusive.
Sem almejar o peso da razão, minha teoria é a seguinte: morreram de verdade o momento e a circunstância que fizeram nascer o Jazz (e o Bolero, a Milonga, a Marcha Rancho, o Frevo...). Aí estão pai e mãe. Os músicos da época foram aqueles aos quais a notícia chegou, cumprindo a função de propagá-la. A magia do artista é ser capaz de compreender o recado; seu valor é dominar a técnica que permita transmitir o recado; seu sentido de vida será o de cumprir tal missão. Porém, nascido o estilo (a vertente, a batida, o movimento), mesmo tendo falecido os pais, o próprio seguiu fecundando novas almas e mentes. O Jazz não morrerá jamais porque ele mesmo trata de sua sucessão. Já não é mais filho: agora é pai e avô. Também é mãe. E pariu com sucesso, quem diria, até o Kenny G...
Número 450
Rubem Penz
Uma das imagens consagradas para significar a união entre as pessoas é a do laço. Durante a vida formamos laços matrimoniais, laços de amizade, laços familiares, profissionais ou de vizinhança. Vínculos que, de alguma forma, nos prendem uns aos outros. Há aqueles fortes como um nó cego: entre pais e filhos, ou entre irmãos, por exemplo. Estes, jamais se desfazem: é preciso cortá-los na carne. Outros, são tênues a ponto de se desmancharem com o ínfimo peso das horas. Nenhum melhor ou pior: apenas diferentes, cumprindo suas funções.
Existem, também, os laços indiretos. Aliás, são os mais frequentes: sou amarrado em música, em bicicleta, em orquídeas ou aeromodelismo e, de algum modo, construo relações com alguém que igualmente seja. Nada além do mesmo gosto nos prende. Isso pode durar uma pequena, porém salvadora, conversa entre dois desconhecidos em um encontro social. Parênteses: só quem já esteve na angustiante situação de convidado para um lugar onde todos são estranhos sabe o valor de encontrar alguém para enlaçar um papo. Assunto que, se morrer ali mesmo, já terá valido muito. Ou, ao contrário, fará nascer o amor verdadeiro, a franca concorrência, uma longa amizade...
Este último foi o caso que me aconteceu vinte e muitos anos atrás. O lacinho casual de dois deslocados numa festa de aniversário bastou para firmar a parceria que compôs a formação musical que tenho até hoje, e cujos parceiros unem-se cada vez mais em laços de afeto. Estranho é lembrar que, daquela tarde, os vínculos que julgávamos fortes se desfizeram, restando firme o singelo fio da meada sobre jazz, influências musicais e amigos músicos. Desde lá, construímos uma farta teia de relações, de intenso e prazeroso convívio. Sem dúvida, me amarro nesses bons amigos!
Professores também são testemunhas de novos laços a cada ano ou semestre, no instante em que o período letivo começa. No meu caso, nas novas turmas de oficina literária, pessoas desconhecidas permanecem algumas horas atadas ao processo criativo. Um pouco por causa da paixão que carrego pela crônica, gênero ideal para a informalidade, de alguma maneira contamino o grupo com tal espírito. E vibro com o companheirismo que nasce e frutifica a partir dos encontros em torno dos textos. Acredito que ainda testemunharei outro nível de desdobramentos – além da boa amizade ou do ódio sincero – entre os colegas de turma. É uma questão de tempo.
E a vida funciona assim: todos nós (sem trocadilho) inseridos no tecido social de laço em laço, sendo uns estratégicos e outros afetivos; uns efêmeros e outros perpétuos. Como ser feliz sem dar um pouco de corda a quem puxa conversa? Mesmo fiada: são as melhores! Pense nisso quando lhe estenderem a mão, ao receber um surpreendente bom dia ou boa noite, se pintar um papo na fila do cinema etc. Não economize novos laços em sua rede de amizades. Jamais saberemos qual nó evitará nosso tombo. Nem quem estará seguro por nossas forças, com braços e almas entrelaçados em mútuo socorro.
Número 449
Rubem Penz
Os aparelhos eletrônicos estão cada vez mais integrados, uns servindo de plataforma para outros. Nesse espírito, resolvi unir o GPS do carro com os pedais de guitarra só para ver o bicho que dava. Pura curiosidade. Deu certo? Tire suas próprias conclusões:
Mixer. Um dos recursos de pedal é o de misturar outros timbres ao som original do instrumento, vindos de outras fontes. Quando usado no GPS, fez com que o Fernando e a Ângela (duas das possibilidades de locutores programados) falassem ao mesmo tempo. Porém, no primeiro comando uníssono de "vire levemente à esquerda", surgiu uma retroalimentação estranha: o Fernando disse que falou primeiro e a Ângela respondeu que nada disso, fora ela, com certeza. Então Fernando disse que ela nem sabia a diferença de direita e esquerda, quando Ângela acusou Fernando de machista... E, enquanto não desliguei o efeito, as duas vozes ficaram batendo boca. Ponto negativo.
Reverber. Para quem não sabe, a reverberação é utilizada para gerar um efeito de ambiente ao som, que por vezes aparece seco e sem nenhum brilho. Quando exageramos, parece que tudo está sendo dito no meio de um corredor vazio, numa catedral ou num banheiro... Algo como "vihrehhh lehvehmentehhh àhhh esquehrdahhh". Na medida certa, porém, deixa os enunciados mais encantadores. Por isso, seu uso foi aprovado com louvor: o GPS com reverber tornou-se capaz de fazer com que o habitáculo de qualquer Uno Mille ficasse parecendo espaçoso e imponente como o de uma limusine. Ponto positivo.
Distorção. Altamente rock n' roll! Imaginei que a tal Ângela pareceria a Janis Joplin cantando Mercedes-Benz, e, Fernando, o Brian Johnson no Black in Black. Tudo que desejava era um efeito "arranhado" no som, ou algo bisonhamente parecido. Porém, por desígnios misteriosos, a distorção foi mal compreendida pelo circuito e acabou aplicada no sentido das frases. A cada nova direção, o GPS dizia: "inunde a pia sem pressa", "arranhe as paredes pela metade", "adube a lata de aspargos". Cá para nós, eu sempre achei o uso de muita distorção uma grande uma droga, mesmo. Só não imaginava que seria alucinógena! Ponto negativo.
Pitch shifter. Agora sim: valeu muito a experiência! Se o motorista estiver cansado da voz de comando, basta alterar o GPS para outro tom, mais alto ou mais baixo. Alguma coisa como o Fernando soar ora como Arnaldo Antunes, ora como Netinho. E a Ângela variar de Tetê Espínola até Cássia Heller. Além do mais, a melodia das vozes sintetizadas, tão monótona quanto aquelas de aeroporto, ganhou a vantagem de sair sempre afinada, sem jamais semitonar. Ou, no caso, semimonotonar! Ponto positivo.
Delay. Este efeito é algo como um atraso, uma espécie de retardo entre o instante em que o som é emitido e o momento em que escutamos. E, de todos os recursos da tal pedaleira testados no GPS do carro, foi o de pior resultado. Nada pode parecer mais irritante do que alguém (no caso uma máquina) ficar nos dizendo: "você deveria ter dobrado levemente à esquerda no cruzamento"; "você deveria ter contornado o viaduto"; "era naquela outra saída de estrada à direita"... Ou, quando finalmente anuncia a chegada, concluir: "você passou duzentos e cinquenta metros do seu objetivo". E aconteceu bem assim. Ponto negativo? Na prática, sim. Mas, como lição, teve seu valor: nem mesmo a melhor orientação tem utilidade quando chega depois do tempo.
Número 448
Rubem Penz
Amigos reunidos. De todos, morrera aquele considerado mais sábio. Quem tinha a frase certa para cada momento, a última palavra, o tom. Alguém quebra o silêncio:
– Ai, ai... Se não fosse assim, seria de outro jeito.
– Se não fosse assim, seria diferente.
– O que você disse?
– Eu disse que se não fosse assim, seria diferente, e não de outro jeito. Era assim que ele dizia.
– Então, se era diferente, era de outro jeito também.
– Não banque o esperto: se não fosse assim, seria diferente. Seja fiel à memória.
– Mas, e se não fosse? Não seria, por exemplo, de outro jeito?
– Sei lá, acho que sim.
– Pois foi o que eu disse: se não fosse assim, seria de outro jeito...
– Tá, que seja... Mas é você quem diz de outro jeito. Ele, dizia diferente.
– Diferente de quem? De mim ou de você?
– De você, óbvio. Ele dizia de outro jeito – de outro jeito!
– Se ele dizia de outro jeito, então dizia do mesmo modo como eu disse.
– Não! Você disse diferente!
– Você disse diferente. Nós dissemos de outro jeito.
– Não adianta, se ninguém dá o braço a torcer, tiramos a prova perguntando adiante. Afinal, todos o conheciam tão bem quanto nós. Pode ser?
– Ok, sabidão. Vai, pergunte.
– Olá, com licença. Conhecia o falecido, né? O jeitão dele... Responda, por favor, se não fosse assim, seria...? Seria...? Seria... Hum?
– De infarto?
– Nãnãnã. Não é isso. A senhora não entendeu. Obrigado.
– E você, você aí, diga: se na fosse assim, seria...?
– Cremado?
– Não, bocó: diferente!
– Embalsamado?
– De outro jeito! Diz: de outro jeito!
– Doado à Faculdade de Medicina?
– Desisto! Então, que seja de outro jeito, como você tanto quer.
– Nada disso: agora eu faço questão que seja diferente.
– Vocês dois, por favor, silêncio! Respeito é bom e eu gosto!
– Respeito é bom e conserva os dentes.
– O que você disse?
– Respeito é bom e conserva os dentes. Era assim que ele dizia...
Número 447
Rubem Penz
Há um sonho
Viagem multicolorida
Às vezes ponto de partida
E às vezes porto de um talvez
Tony Tornado
Já diziam os filósofos Milionário e José Rico que "nessa longa estrada da vida, vou correndo e não posso parar". É caminho sem volta. Relógio? Naquela placa cujos ponteiros estão proibindo o retorno. Uns vão com pressa: pé no fundo. Outros, descendo a Serra com freio motor. Tudo é passageiro (menos o cobrador e o motorista). Pelo retrovisor, o reflexo da saudade. No pára-brisa, muito mais do que insetos mortos: projetos com as vísceras espalhadas por não terem nos encontrado no mesmo sentido – e isso tudo só embaça o vidro caso se queira limpar de forma descuidada.
No rádio, alternância entre notícias do mundo, previsão do tempo, condições das estradas, bloqueios... Um manancial de informações que, se bem compreendidas, resumem-se numa única mensagem: vá devagar porque correr não adianta nada. Mas há os que correm, há os que morrem. A alternativa sonora é contar com a companhia da música. Cantar junto num karaokê solitário que, mesmo desafinado, espanta o sono. Parênteses: música de qualidade pode relaxar até o ponto de adormecermos, o que é ótimo numas circunstâncias e péssimo noutras.
Sair da freeway vez que outra é uma possibilidade a ser considerada. Estradas vicinais têm seu charme. Cruzam serpenteando pelas entranhas de localidades deslocadas do tempo, temperadas de modo caseiro, veladas, macias. De tanto em tanto, aquela passagem de nível com um menino meio sentado numa bicicleta, só olhando o movimento. Dá vontade de abanar para ele, que parece o mesmo de sempre, em todo lugar. Parece conosco, também, em outra dimensão, pronto para sumir no fade out do Efeito Doppler. Nem adianta procurar o espelhinho: o guri não estará mais lá ao passarmos adiante.
Há, é claro, os pedágios... A vida, que não é nosso destino e sim nosso caminho, cobra algumas contas. Não escapamos das cancelas nem em sonho: algo, ou alguém, denunciará o passado. E vem a fatura.
Por exemplo: numa recente entrevista na rádio, subitamente (e, pior, por minha provocação), foi-me alcançado um tíquete. Pela memória infinita de um grande amigo, toda audiência soube que, no início dos anos 1970, eu cantava BR3 imitando o Tony Tornado. Também Jesus Cristo, à lá Roberto Carlos – o que, diante da insólita hipótese de eu corporificar o Black Power do Tornado, passa a ser irrelevante. Ninguém fura a cancela da memória do José Alberto Andrade.
Zé, obrigado pela tão cara lembrança! Só não sei o tamanho da conta desse pedágio que chegou de surpresa em 100 kW. Estão, no mínimo, cobrando-me explicações. Até aquele piá na bicicleta sobre a ponte está me abanando com gargalhadas, enquanto eu procuro alguns Cruzeiros no bolso.
Número 445
Rubem Penz
Engana-se quem pensa que é preciso muito para ser infeliz. Ao contrário, a infelicidade está ao alcance de todos, sem medir classe social, idade, sexo, credo ou nacionalidade. Também independe de prática ou habilidade, não exige formação técnica nem superior, pré-requisitos ou apadrinhamento. Por fim, constitui direito de todos sair em busca da desventura.
Para começo de conversa, é consenso que a infelicidade está nos pequenos gestos: a falta de um sorriso aqui, o virar de costas ali, o silêncio acolá. Não procure a infelicidade longe, pois ela pode estar bem ao seu lado. Basta reparar na carranca que lhe brindam a todo instante, seja por algo que você deveria ter feito (e não fez) ou por aquilo que realizou sem perfeição. Os motivos para ser infeliz podem chegar ao acaso – por exemplo, quando o garçom confunde seu pedido. Ainda planejadamente, como no caso do diretor que tudo faz para abiscoitar os méritos nascidos de seu trabalho.
O trânsito da cidade grande também pode vir a ser um manancial inesgotável de infelicidade – é preciso estar atento. Duvido que, ao menos uma vez durante o dia, alguém deixe de cruzar na sua frente sem dar sinal. Então, utilize essa oportunidade para ficar de mal com a vida! Faça mais: persiga-o e dê o troco. Caso tenha acontecido por mera distração, você aproveitará para fazer com que os dois sigam infelizes, num processo contínuo e crescente de frustração coletiva. O errado é esperar pelas colisões para morrer de raiva: para o bem de todos – ugh! – elas não acontecem com tanta frequência assim.
Família e infelicidade podem ser parceiros. Comece culpando seus pais por tudo o que tenha dado de errado em sua vida. Mas não fique por aí: diga isso para eles tão logo surja a primeira oportunidade. Além de lhes causar grande tristeza, você será brindado com doses elevadas de desgosto para gerir – muitas vezes tão escondidas que nem cinco anos de análise serão capazes de desvendar. É quando vem o melhor: ao descobrir que os pais fizeram das tripas coração para deixar você contente, e que sua ingratidão lhes consumiu os últimos dias de saúde, a infelicidade será sua companhia diária para o resto da existência!
No casamento, ser infeliz é mais fácil do que parece. A união de dois estranhos, somente propiciada pela cegueira da paixão, promete muitos anos de abatimento. Para tanto, use a intimidade que só a aliança carnal permite com o objetivo de conhecer os pontos frágeis do outro, guardando tudo em um paiol de mágoas. Desde a primeira crise, atire sua munição sem dó nem piedade, provocando o movimento igual em sentido contrário. Assim, ambos terão para si muitos ressentimentos na memória, reciprocidade ideal para fazer crescer a conta bancária dos advogados. E o mau humor será a viva herança deixada para os filhos.
Mas não se engane: se o que foi dito até agora induz a pensar que precisamos dos outros para alcançar o fundo do poço, saiba que não. Não, mesmo! A maior infelicidade está contida na solidão. Explico. Ao fazer de tudo para afastar quem lhe deseja o bem – pais, filhos, cônjuge, amigos, colegas –, e tendo o isolamento como consequência, a infelicidade estará mais do que garantida: será só e plenamente sua, sem que precise dividir com mais ninguém! Não é o máximo?
Agora, se com isso tudo você ainda teima em ficar contente com a vida, aí fica difícil de eu ajudar. Daqui a pouco irá até imaginar que se pode ser feliz com mínima dose de paciência, dignidade, carinho e respeito, e que tudo mais chega ao natural. Olha que horror: já posso ver um leve sorriso nascendo em seu rosto...
Número 444
Rubem Penz
( ) 1. Os organizadores de provas olímpicas decidiram modificar a cerimônia de premiação: agora, desde o momento que o atleta passa para as oitavas de final, cumprirá uma cerimônia completa com direito a pódio, hinos, medalhas, louros, festa e fotos. Sabe como é – se ele desistir de competir na próxima prova, não perderá a oportunidade de ser homenageado. Depois, ao galgar as quartas de final, tudo se repetirá. E outra vez na semifinal. Por fim, na final.
( ) 2. Os pais decidiram modificar as comemorações de bodas para seus filhos: quando anunciarem namoro, será preparada uma festa de gala para toda a família e amigos. A menina entrará na Igreja vestida de branco, o menino esperará no altar com fraque e alguns colegas de aula estarão ao lado cumprindo o papel de padrinhos e madrinhas. Um padre abençoará o namoro. Sabe como é – se eles desistirem um do outro, já terão um álbum completo para recordação. Caso resolvam noivar, tudo se repete. No casamento, outra vez: igualzinho.
( ) 3. O cerimonial da República decidiu mudar as regras de posse da Presidência: quando o partido decidir pelo candidato nas prévias, ele já subirá a rampa do Planalto acompanhado do cônjuge e da comitiva. Lá, receberá a faixa do titular e poderá proferir o seu discurso. Se chegar a desistir do pleito, terá o gostinho de uma tomada de posse para recordação. Caso avance para o segundo turno das eleições, tudo se repete. Vencendo, igual.
( ) 4. Muitas escolas de classe média, média alta e alta decidiram turbinar as regras das formaturas: agora, ao cabo do Ensino Fundamental, impõem aos pais o custeio de uma cerimônia de colação de grau quase idêntica ao Ensino Superior. Azar que todos se encontrarão logo depois das férias no Ensino Médio, quando há planos de outra formatura – ou alguém supõe que essas crianças vão interromper os estudos aos 14 anos?
Respostas: 1 F; 2 F; 3 F; 4 V
Sim, a primeira questão é falsa. As regras seguem inalteradas: para merecer o pódio, todo atleta deve cumprir as etapas classificatórias e, mesmo na final, estar entre os três melhores para ser festejado. Claro que chegar até uma Olimpíada é um grande mérito. Mas nem todos alcançam os máximos louros.
A segunda questão também é falsa. Véu e grinalda ficam reservados para as noivas de verdade. O menino simpático que está namorando sua filha merece acolhimento e atenção. A rica menina que encantou seu filho fica ainda mais querida frequentando sua casa. Mas, nem por isso se deve convencer o padre a fazer uma cerimônia antes da hora.
A terceira, igualmente, é falsa como uma nota de R$3,00. Ao vencer as prévias, o candidato festeja. Se passar para o segundo turno das eleições, festeja mais (e começa a articular aquilo que se convencionou chamar de "alianças políticas", intenções tão límpidas na nascente, quanto poluídas na foz). Só mesmo ao ser eleito subirá a rampa do Palácio da Alvorada.
Por mais estranho que pareça, a quarta questão é verdadeira. Já passei por isso e escuto queixas de pais cujos filhos terminam agora o Ensino Fundamental. Na época, fui voto vencido quando propus apenas uma festa – o que realmente interessa para a meninada. Soube que, agora, chegaram a hostilizar famílias que decidiram não compactuar com a cerimônia despropositada e desproporcional.
Devemos estar errados: vou lançar a ideia de pódio para todo competidor, chuva de arroz na escadaria da Catedral para namorados, faixa e juramento para os candidatos à Presidência. Vai pegar: ninguém mais parece capaz de contrariar absurdos.
Número 441
Todo inferno está contido nesta única palavra: solidão.
Victor Hugo
Rubem Penz
A solidão me aflige. Mirando-a em busca de sentido (teria?), notei um detalhe: a palavra solidão pode ser o superlativo de sólido. Algo como exageradamente sólido, impenetrável, duríssimo. Para quem procurava pistas, nascia um bom começo. Fui ao dicionário.
Sólido é tudo aquilo que não é cavo ou vazio por dentro. Solidão, por sua vez, prometeria ser o absolutamente preenchido. E não é que pessoas solitárias se vangloriam de serem, no duro, muito independentes! Se bastam, habitam com conforto e alívio o mundo interior, cheio de si. Ah, nesse sentido, não sou nem um pouco sólido... Estou mais para oco. Cabeça oca, coração oco, cheio de espaços para acomodar companhias e novidades. Talvez esteja aí a resposta para minha tristeza quando estou só.
Sólido é o mesmo que coeso, que rígido ou resistente. Logo, solidão seria o super firme, indestrutível. Veja: optar pela solidão é ou não é criar em torno de si um casco, uma fortaleza? Mas, refutando os ataques às suas posições, o sólido (o só) acaba por reprimir, também, aproximações amistosas. Também costuma estar fechado aquele que desconfia de todos. Na contramão, encontramos os se dispõem a negociar, abrir mão, duvidar de si. Conviver, infelizmente, é fragilizar-se.
Sólido é o incontestável e digno de confiança. Solidão, pelo exagero superlativo, seria possuir a sabedoria eterna, imutável e merecedora de plena fé. Bem isso: está sempre solitário o homem que aprisiona a razão, tomando-a apenas para si. Mesmo que não busque o isolamento como um propósito, nele chega por falta de parceiros, pois ninguém suporta quem jamais dá o braço a torcer ou admite o erro. Uma coisa é merecer fé, outra é assumir-se dogma.
Sólida é a substância bem definida. Ato contínuo, solidão deveria ser o conteúdo mais exato. Para quê buscar o outro, se estou bem acabado, pronto, determinado? No fim, sempre há solidão – no mínimo, na hora da morte. Precisamos de companhia apenas durante a caminhada. O solitário já fez suas escolhas e está satisfeito. É feliz assim. Quem está em dúvida, inseguro ou perdido, nunca deseja a solidão.
Na geometria, o sólido encontra-se fechado, delimitado nas três dimensões. Bom exemplo de solidão seria o paralelepípedo, a impenetrável rocha que sequer nos deixa arestas para duvidar de seu estado definitivo. Ele é reto nos ângulos e na vida. O perigo de estar com alguém é quebrar-se em cacos para, depois, reconstituir-se colando os fragmentos. Amando, convivendo, aberto para relações, o homem expõe suas falhas. O solitário não corre esse risco. Limite, isso é com ele.
Por essas e por outras que não me sinto sólido e, também por isso, sofro ao me flagrar só. Falta-me conteúdo, resistência, exatidão. Duvido tanto de mim, que jamais espero que outros depositem fé. Vivo para criar, e criação é ausência de certezas, limites ou dogmas. A solidão é meu inferno, mesmo que no paraíso das companhias haja muita desilusão e dor. Ainda assim, escolho o convívio – tenho, com ele, lucro líquido e etérea esperança.
Número 440
Rubem Penz
Livros, sites, artigos e palestras de autoajuda prometem uma vida melhor, mais feliz e realizada para todos. Aproveitando a onda, vou dedicar umas linhas para aqueles que curtem uma depressãozinha. Gostam de sofrer. Existe isso! Não deve ser o seu caso, claro. Mas valem as dicas, para quando mudar de ideia:
Pode começar a se deprimir, quando... Todos os seus amigos, colegas de trabalho e parentes se queixam por receberem milhares de spams, mas nem essas mensagens chegam a seu endereço eletrônico.
Pode começar a se deprimir, quando... O cartão de aniversário que você ganhou no escritório está com outro nome escrito por baixo do seu, e nem tiveram a decência de apagar direito.
Pode começar a se deprimir, quando... O flanelinha vem correndo em sua direção gritando "bem cuidado, aí!" e, enquanto você sorri oferecendo a moeda, ele passa direto, mirando outro carro, reluzente.
Pode começar a se deprimir, quando... Diante da árvore de Natal, o único para quem não havia presentes é você. E, ao reparar nisso, tardiamente, sua mãe diz que esqueceu lá no armário. Porém, vai buscar levando um pacote vazio, que volta com um par de meias do seu falecido pai.
Pode começar a se deprimir, quando... A menina do bufê no qual você almoça há cinco anos sabe o nome de todos, identificando a comanda antes mesmo de falarem. Menos a sua.
Pode começar a se deprimir, quando... No sorteio do amigo secreto, um colega olha para você, coça a cabeça e pede para fazerem tudo de novo, alegando que tirou a si mesmo. E o nome dele está no seu papelzinho.
Pode começar a se deprimir, quando... A melhor coisa que aconteceu para você durante o ano foi ultrapassar o número de pontos na carteira de motorista, permitindo-lhe fazer o curso de reciclagem e conhecer novas pessoas.
Pode começar a se deprimir, quando... Na assembléia de condomínio, houver 30 minutos de desesperado empurra-empurra entre os vizinhos para saber quem aceita ser o novo síndico, logo depois de você ter lançado o seu nome.
Pode começar a se deprimir, quando... Aquela creche que você nem sabe se existe mesmo, ou se é golpe, passa a ligar pedindo que você suspenda o depósito bancário, pois não consta mais no cadastro de colaboradores.
Pode começar a se deprimir, quando... No cartão de dia dos pais, seu filho lhe desenha com uma raquete nas mãos. E quem, na verdade, joga tênis é o cara que começou a namorar de sua ex-mulher há pouco mais de uma semana.
Pode começar a se deprimir, quando... Em casa, apenas o seu cão demonstra algum contentamento em ver você. Mesmo assim, exclusivamente nas horas das refeições e de passear.
Pode começar a se deprimir, quando... Ninguém ri de suas melhores piadas, ao mesmo tempo em que se dobram em gargalhadas quando você está tentando falar sério.
Pode começar a se deprimir, quando... Todos os amigos de sua esposa vão aturdidos visitá-la na maternidade e, vendo que o nenê se parece com muito você, dizem, com alívio, "nossa, ainda bem!".
Pode começar a se deprimir, de verdade, quando... Todos acharem essa crônica exagerada e cheia de hipóteses improváveis, mas, mudando um detalhe aqui e outro ali, ela é a história de sua vida.