6.5.11

Espelhados

Número 420

Rubem Penz

Nenhuma diferença entre os dois, dissera o corretor de imóveis, eles são absolutamente espelhados. Então o rapaz optou por alugar o apartamento 702. A mudança aconteceria em poucos dias. Para a moça da sala de espera, e que se ergueu enquanto ele se despedia satisfeito, não restou escolha. Porém, caso houvesse, teria mesmo ficado com o 701: 7+1=8, o número do infinito. Sorte. Também pressa – suas coisas já estavam a caminho, vindas do Espírito Santo.

Cruzaram-se novamente bem no meio do corredor do sétimo andar. Ele trazia nas mãos o tocadiscos Technics SL 1210 MK2, uma preciosidade. O grosso das coisas subiria pelo elevador de serviço. Ela levava consigo algumas pastas com trabalho e uma expressão de noite mal dormida. A famosa cara de poucos amigos. Nem bom-dia, nem olá, nem ao menos um oi.

Ao cair da tarde, diante da janela, enquanto ele se deixava impressionar pela nova paisagem ao som de Aretha Franklin, Natural Woman, uma luz estranha acendeu à suas costas. Entrava através porta do banheiro, invadindo a sala de estar. Foi conferir e, para grande espanto, ali estava a mesma moça da manhã com o olhar fixo para ele. Bem do outro lado do grande espelho que ocupava toda a parede sobre a pia. Ele abanou, fez uma careta, dançou para ela que, alheia, apenas conferia as próprias olheiras. Absolutamente espelhados, lembrou. E sorriu.

Maravilha! It's cool, diria se fosse personagem de comédia romântica. Acompanhou um xixizinho, o lavar das mãos e, quando ela apagou a luz, ao partir, o reflexo original voltou para o espelho, ainda que fugidio em razão da penumbra. Ele tratou de acender suas duas luzes: a do teto e o spot do espelho. Tateou, percutiu, quase encostou o rosto para ver se havia algum truque. Normal. Anormal. Sensacional!

Eram dias muito ocupados e noites com ainda mais interesses para conferir. Ele, satisfeito com a paisagem, nem fazia muita questão de encontrar a bela vizinha pessoalmente. Ainda mais que ela estava sempre com aquela cara de me deixa só e não perturba. Tão linda e asseada, mas fria como o toque no vidro. Seria timidez ou soberba? Chegou a forçar um esbarrão na garagem, entre os carros, esperando o enunciado: você não se enxerga no espelho? A resposta na ponta da língua – Não!

Desde o princípio, também, ele desconfiou que o efeito espelhado pudesse acontecer de lá para cá, cuidando para não fazer algo que viesse a chocá-la. Ao contrário, caprichava nas poses, caras e bocas como se estivesse participando do mesmo Big Brother que tanto o distraía. Resolveu usar e abusar do artifício da nudez. Entretanto, nada de ela o perceber, logo ele que tinha tanto orgulho de seus dotes. Nem bom-dia, nem olá, nem ao menos um oi.

Quando ela partiu, e mal transcorrera o ano de contrato, ele foi incansável ao batalhar por uma chave do 701. Precisava muito saber se era visto pela vizinha, dúvida atroz. No grande espelho sobre a pia, escrito com batom vermelho, adeus.


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4 comentários:

Anônimo disse...

Bem que ele poderia ter visto de banheiro dele escrito: "seuda"

Rubem Penz disse...

Cheguei a pensar nisso. Mas optei pela palavra no vidro por 3 motivos: um simbólico, outro por ser o "ponto de contato" entre os apartamentos e, por fim, por licença poética. Mas, na fria letra, bem que o escrito poderia aparecer espelhado do outro lado... Valeu! Abraços, Rubem

Jussara disse...

Amigo Rubem.
Gostei demais da crônica. Mas dá um pouquinho de medo imaginar o quão expostos podemos estar. Porque isso acontece mesmo. Eu, ao menos, acredito...
O tema é interessante demais.Conheces o livro Laura e Júlio do espanhol Juan José Millás? Trata também de apartamentos espelhados. Olha só: 'o apartamento serve como uma espécie de vitrine, por meio da qual passa a espionar a vida d...'
Não vou contar mais nada!

Rubem Penz disse...

Jussara, querida, não conheço o livro. Deve ser ótimo. Minha ideia nasceu do termo "espelhado" nos imóveis, combinada com a profusão de câmeras de vigilância. E a ambientação no banheiro era para invadir o cômodo mais íntimo, mesmo, desejando um certo desconforto em nos imaginarmos na situação. Que bom ter agradado uma leitora tão exigente! Abraços, Rubem

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