Número 428
Rubem Penz
Era um apartamento muito engraçado. Não tinha teto: à noite, o que tinha era um tablado de dança flamenca. Única explicação para tanto salto batendo sobre a cabeça. Mas não parava por aí, não. De manhã, caso resolvesse recuperar o sono perdido sob influência andaluz, o teto virava algo parecido com uma pista de boliche. Há quem tenha compulsão em mudar toda a mobília de lugar, agravada pela incapacidade de elevar os móveis do chão. Logo, a expressão "uma manhã que se arrasta" ganhava outros contornos.
Ninguém podia entrar nele, não. Ao menos sem antes passar por um gradeado de quase três metros de altura à beira da calçada. Ali, um porteiro eletrônico com aquele ruído de linha aberta dava a impressão de que alguém mais escutava a conversa. Depois, outra barreira: a porta do prédio, sempre trancada a sete chaves, com ordem expressa de assim permanecer a qualquer horário. Por fim, mais uma grade, agora diante da porta do apê. Qualquer semelhança com presídios e celas é mera coincidência com nossa (in)segurança pública...
Ninguém podia dormir na rede, porque no apartamento não tinha paredes. O que ele tinha, com boa vontade, eram estruturas divisórias. Pendurar quadros já era uma temeridade, que dirá uma rede... Qualquer broca de maior calibre arrombaria a parede do vizinho. Essa, aliás, era a explicação para não ser necessário som na TV, caso ao lado estivessem ligados no mesmo programa. Também a resposta para sabermos há quantas andava o relacionamento afetivo uns dos outros: primeiro a DR, depois a briga e, mais tarde, a reconciliação. Às vezes, uma segunda reconciliação.
Ninguém podia fazer pipi sem que o ruído circulasse pelo fosso de luz, anunciando para todos no prédio o volume do jato. Essa era a melhor notícia. Pior, mesmo, eram os momentos de indisposição intestinal. Ou quando algum acidente de percurso exigia que chamassem o Hugo – eufemismo simpático para o ato de regurgitar em abundante jorro. A rádio fosso de luz, recuperando-se dos ruídos fisiológicos, transmitia os hits de chuveiro de todos os moradores. Também a terceira reconciliação pós DR, agora sobre a pia ou dentro do box.
Era decorado com humilde esmero: na sala, um sofá de dois lugares herdado de uma tia, caixa de maçã apoiando a TV de 14' e mesa dobrável com quatro cadeiras. No quarto, o colchão repousava direto no carpete, defronte ao armário de duas portas. Na cozinha, a infalível geladeira Frigidaire branca que um dia fora da família.
E era pago com sofrido esmero – quase a metade do salário sumia entre aluguel e condomínio. O restante tinha finalidade bem mais nobre: cerveja para receber os amigos e vinho para impressionar as meninas. Ah, claro: comida suficiente para se manter vivo.
Mas era curtido com muito esmero! Todos aqueles que tiveram apartamentos parecidos com esse, ou mesmo um JK, descobriram a dor e a delícia de ser independente. A delícia vinha do despojamento juvenil, algo tão fora de moda. E a dor também, é claro. Um banho meio frio que o diga.
*Crônica inspirada em A casa, de Vinícius de Moraes
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